Professor da rede pública. Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Brasil pode mergulhar de vez no
obscurantismo nos próximos dias caso a lei de terrorismo, ou a lei da
“desordem” de Beltrame ou outra similar seja aprovada. Seria o ápice de um
processo de recrudescimento do regime que já está em pleno andamento nos
últimos anos.
É um equívoco creditar esse processo
apenas à Copa do Mundo da FIFA, ainda que as exigências dessa entidade contribuam
para o cenário mencionado. O contexto de crise econômica do capitalismo exige a
ampliação das taxas de exploração para a manutenção da reprodução e acumulação
do capital. E isso só pode se sustentar com o fechamento cada vez maior do
regime democrático formal, o que tem ocorrido em vários países, aprofundando a
crise de representação e de credibilidade da democracia burguesa.
A crise, obviamente, apresenta-se de
formas distintas em diferentes países nos diferentes períodos. Em 2008, quando
ela estoura, o Brasil se vê obrigado a mudar a sua política de priorizar o
mercado externo e passar a vender no mercado inteiro. Como a renda do
brasileiro é baixa o consumo passou a ser estimulado através do crédito. Mas,
conforme já tinha demonstrado a experiência externa, tal medida, chamada
erroneamente de anticrise, possui limites e eles estão sendo atingidos.
Ocorre que as classes dominantes não
possuem um programa econômico alternativo. E para aprofundar o existente será
preciso, como já foi dito, fechar cada vez mais o regime. Assim a triste e
lamentável morte do cinegrafista da Bandeirantes, Santiago Andrade, caiu como
uma luva para os planos do andar de cima. Por isso ela tem sido explorada
largamente pela grande mídia, que já teve outros profissionais vitimizados
fatalmente sem o mesmo destaque. Se ela não tivesse ocorrido outra desculpa
seria arranjada.
O crescente recrudescimento do regime
Foi mencionado que o processo de
endurecimento do regime no Brasil transcende a questão da Copa do Mundo da
FIFA. Alguns fatos deixam isso muito claro:
- Em 2011, operários da Usina
Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, fizeram uma grande greve denunciando as
condições degradantes de trabalho. O Governo Dilma enviou a Força Nacional para
reprimir os trabalhadores e avalizou a demissão de 6 mil operários, alegando
que o problema era o excesso de trabalhadores no canteiro de obras. No ano
seguinte os operários voltaram a reclamar das condições de trabalho, em uma
nova greve, receberam o rótulo de "vândalos" e "bandidos"
do Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto
Carvalho, a Força Nacional foi enviada, mais de 20 trabalhadores foram presos,
dos quais 12 simplesmente desapareceram! [1]
- Na Usina de Belo Monte, no Pará, a
repressão transcende o movimento operário. Se a Força Nacional é acionada
quando estes se levantam contra as degradantes condições de trabalho (como no
ano passado onde a própria FN recolheu os crachás de 450 trabalhadores que
acabaram demitidos), esta também é utlizada para reprimir as comunidades
indígenas, como ocorrido no ano passado. No referido episódio chegou-se a
multar um jornalista por ter gravado a ação policial e a Polícia Federal foi
acionada para apurar quem eram os não índios que participaram do movimento.
Some-se a isso a descoberta de um espião do governo no Movimento Xingú Vivo, o
tráfico de pessoas e a exploração sexual praticados ao lado do canteiro de
obras e as amesças de expropriação dos pequenos agricultores. O carro da
Polícia Civil do Pará com o logotipo da Norte Energia evidencia quais
interesses são protegidos pelos governos na referida obra. [2]
- Mostrando que o modos operandi é o
mesmo em todas as grandes obras do PAC, no ano passado 16 trabalhadores da
Hidrelétrica Ferreira Gomes, no Amapá, foram presos após uma greve que
denunciava as condições precárias de trabalho. [3]
- Também no ano passado foi descoberta
a espionagem do movimento sindical do Porto de Suape, em Pernambuco, pela Abin,
medida defendida e justificada por Gilberto Carvalho. [4]
- A truculenta desocupação do
Pinheirinho, em São José dos Campos, promovida pelo Governo Alckmin (PSDB) em
2012. Na mesma época, no Distrito Federal, o petista Agnelo Queiroz também
promovia uma desocupação truculenta onde 29 pessoas foram presas. [5]
- No ano passado o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI) publicou dados que mostravam que a média de índios
assassinados nos governos de Lula e Dilma era superior ao do governo FHC. De
acordo com a Funai em dez anos os governos petistas homologaram apenas 84 áreas
indígenas contra 148 de FHC. No presente momento o Governo Dilma enviou o
Exército para reprimir os Tupinambás, em Olivença, na Bahia, após enganá-los
com a homologação das terras. A intervenção militar está amparada pela Portaria
Normativa 3.461, da qual falaremos mais adiante. [6]
- No leilão de Libra foram mobilizados
o Exército, a Marinha, a Força Nacional, a Polícia Federal, a Polícia Militar,
a Polícia Civil e a Guarda Municipal. Houve dura repressão aos manifestantes.
[7]
Há outros casos mas achamos suficientes
os já citados. Vejamos agora as medidas buscadas e/ou aprovadas nos últimos
anos:
- Em julho de 2012, a Presidente Dilma
aprovou o "PROTEGER", sistema que visaria proteger os setores
estratégicos do país - mais de 13.300 locais entre hidrelétricas,
termelétricas, refinarias, estradas, telecomunicações, portos, aeroportos, etc.
O referido sistema prevê a militarização das lutas sociais, ou seja, o uso do
Exército contra os movimentos sociais e sindicais. Tal medida foi celebrada por
jornalistas da grande mídia. [8]
- Em setembro do ano passado a Ambev e
o Itaú, ambos patrocinadores da Copa, se reuniram com a Presidente Dilma,
pedindo medidas contra os protestos. A partir daí o projeto de lei de
terrorismo passou a andar dentro do Congresso e em janeiro o Senador Romero
Jucá (PMDB) mencionou a necessidade de votar o quanto antes a matéria. [9]
- Há pouco tempo o Ministério da Defesa
publicou a Portaria Normativa 3.461 de 19 de dezembro de 2013. O documento de
70 páginas usa o conceito de "Guerra de Massa" para justificar o uso
das Forças Armadas contra os manifestantes, classificados como "Forças
Oponentes", prevê a infiltração de agentes do governo e uma estratégia
para ganhar o apoio da opinião pública para a repressão:
"Por se tratar de um tipo de
operação que visa a garantir ou restaurar a lei e a ordem, será de capital
importância que a população deposite confiança na tropa que realizará a
operação. Esta confiança é conquistada, entre outros itens, pelo
estabelecimento de orientações voltadas para o respeito à população e a sua
correta compreensão e execução darão segurança aos executantes, constituindo-se
em um fatorpositivo para sua atuação." [10]
Esse item corrobora o que fora
assinalado antes: se não houvesse ocorrido a morte de Santiago outro motivo
seria buscado ou produzido, isso se a própria morte do cinegrafista não foi
produzida para o fechamento do regime, afinal a atuação do advogado dos
suspeitos, Jonas Tadeu, é bastante estranha. [11]
E há forma mais eficaz de ganhar a
população para reprimir manifestantes cuja pauta lhe é simpática senão tornando
os mesmos diabólicos, horrendos e terroristas aos olhos do grande público?
O papel da grande mídia
Como se pode perceber conforme as
medidas “anticrise” vão entrando em esgotamento crescem as contradições
sociais, o andar de baixo se dispõe a lutar cada vez mais e o de cima reprime
com mais frequência e intensidade.
A grande mídia não é apenas porta-voz
dos interesses dominantes, ela própria é parte das classes dominantes. Por isso
se opõe de forma decidida às greves, às lutas dos índios, dos sem-terras, dos
sem-tetos e às manifestações de rua. Busca criminalizar todas essas lutas e
caluniar os atores políticos das classes populares.
Quando as jornadas
de junho começaram ela não vacilou em pedir pela repressão
dos manifestantes. Foram atendidas, seus próprios trabalhadores foram
espancados e gravemente feridos, sem que se exigisse e acompanhasse punição aos
responsáveis - no caso a PM de São Paulo. [12]
A repressão indignou a população, que
engrossou os protestos, fazendo com que jornalistas como José Datena e Arnaldo
Jabor se retratassem publicamente. A grande mídia buscou então se relocalizar
nos protestos tentando dizer qual seria a forma correta de ativismo sem, no
entanto, deixar de manipular para criminalizar, quando era possível, como fez a
Rede Globo na final da Copa das Confederações. [13]
A chama de junho não foi apagada até
agora e as tentativas de manipulação midiática seguiram como no caso do molotov
jogado por um P2 e a posterior tentativa de incriminar o ativista Bruno
Ferreira Telles, durante a visita do Papa ao Rio, versão difundida pela grande
mídia e desmentida pelas redes sociais. [14]
O ano de 2014 começou com uma série de
greves, atos contra aumento das passagens, protestos que questionam a Copa do
Mundo e comunidades se rebelando contra a falta de água, luz e a morte de seus
jovens pela polícia. Cresce o nível de consciência da população em uma ponta e
o medo dos poderosos na outra.
Em todos esses eventos a grande mídia
busca deslegitimar de alguma forma o movimento dos de baixo. Na greve dos
rodoviários de Porto Alegre, o jornalista Paulo Sant'Ana, do jornal Zero
Hora-RBS-Globo, pediu pela prisão dos trabalhadores, desde o primeiro dia. O
jornal Zero Hora buscou a todo o momento jogar a população contra os grevistas,
o que não surtiu efeito dada a proximidade dos rodoviários com as comunidades e
ao avanço no nível de consciência da população. [15]
A morte do cinegrafista Santiago
Andrade surgiu como uma “oportunidade”, como disse O
Globo, não só de tentar conter e fazer
regredir esse nível de consciência mas de promover uma verdadeira caçada
política e ideológica - inclusive nas universidades - com o intuito de remover
os protestos. O Editorial de O Globo de
12 de fevereiro de 2014 não deixa nada a desejar ao seu Editorial de 2 de abril
de 1964 que celebrou o golpe militar [16]. Assim fica completamente
desmoralizada a tese do governismo de que as manifestações em curso
beneficiariam a direita.
O reacionarismo governista
Em um momento em que a grande mídia
clama abertamente pelo golpismo chama atenção o fato do governismo, que tanto
gosta de chamá-la de PIG (Partido da Imprensa Golpista), guardar um silêncio no
mínimo cúmplice.
Com algumas poucas exceções, a maior
parte da blogosfera governista tem se mantido no mais absoluto imobilismo
diante das absurdas calúnias difundidas pela grande mídia contra o PSOL, o PSTU
e o conjunto dos manifestantes em versões frágeis criadas por um advogado
suspeito.
Essa postura não é inocente. Assim como
as classes dominantes e a grande mídia o governismo também se sente incomodado
com os protestos, até porque muitos deles se dirigem aos seus próprios
governos. Não foi por acaso que os senadores petistas Jorge Viana e Paulo Paim
tenham se apressado a pedir pela aprovação da lei de terrorismo [17].
Como vimos anteriormente o
recrudescimento do regime é protagonizado pelo próprio PT com repressões de
movimentos sindicais e sociais e aprovação de medidas autoritárias.
Mas o PT não é apenas o principal
fiador do atual sistema sócio-político ele é parte integrante dos que se
beneficiam dele. Alguns de seus quadros se tornaram empresários, consultores e
gestores de fundos de pensão. São sócios de grandes empresas nacionais e
estrangeiras. Ganham com a especulação, com as privatizações e com os cortes de
direitos dos trabalhadores.
Esses quadros integram outro setor
social, com interesses não apenas distintos mas antagônicos aos do conjunto do
andar de baixo. É, portanto, mais do que simples colaboração de classes. Por
isso o movimento dos de baixo tem sido combatido pelo governismo tanto quanto o
é pela Rede Globo e por articulistas direitistas como Reinaldo Azevedo.
Embora juristas apontem ser
desnecessário a criação de novas leis [idem 16], a repercussão negativa da lei
de terrorismo pode fazer com que as classes dominantes e a classe política
elaborem e aprovem outra lei com a mesma essência. O Ministro da Justiça do
Governo Dilma, José Eduardo Cardozo, andou falando em “regulamentar” as
manifestações [18]. Não se pode deixar enganar pelo jogo de palavras. É muito
comum se fazer uma coisa negando-a. Não se aumenta a jornada de trabalho, se
cria um banco de horas. Não se acaba com as leis trabalhistas, flexibiliza-as.
Não se acaba com o direito de greve, se exige 70% da força de trabalho.
Seja como for a tentativa de acabar com
as lutas dos de baixo pode fracassar, como fracassaram manipulações anteriores,
até porque com o esgotamento das medidas “anticrise” e o aprofundamento da
crise capitalista, os ataques aos direitos dos de baixo serão cada vez maiores
não os deixando outra alternativa que não seja se organizar e lutar. O sonho
das classes dominantes de lucrar, explorar e roubar sossegadamente, às custas
do andar de baixo e escudadas em uma lei de exceção [19], pode ter o efeito
contrário e se transformar no seu mais terrível pesadelo.
_________________________________________________
[1] As rebeliões nas obras do PAC
(27/03/2011):
Para o capital, mais benesses; para o
povo, o Exército (12/08/2012):
Ministro de Dilma chama trabalhadores
de vândalos e bandidos (07/04/2012):
Jirau: operários presos, torturados,
humilhados e desaparecidos. Ano X, nº 91, 1ª quinzena de julho de 2012.
Operários de Jirau presos e torturados
no Presídio Urso Branco, sem atendimento médico e correndo risco de morte
(16/05/2012):
Greves operárias nos canteiros das
usinas do Pac no Rio Madeira, Pecém, Suape e São Domingos. Ano IX, nº 76, abril
de 2011.
[2] Brasil: aumenta o entreguismo e a
repressão (12/05/2013):
Belo Monte: Movimento Xingu Vivo sofre
espionagem (25/02/2013):
Operário torturado em Jirau, de novo
preso e sujeito a julgamento (25/01/2013):
[3] Liberdade para os operários do PAC
presos no Amapá! (12/02/2013):
[4] Carvalho: Abin monitorou Suape por
razões econômicas (10/04/2013):
[5] Desocupação no DF mostra que PT não
se diferencia do PSDB (12/02/2012):
[6] “Somente no Governo Lula 452 índios foram
assassinados. No Governo Dilma foram 108 até o momento. Juntando as duas
gestões petistas tem-se uma média de 56 índios mortos por ano contra 20,8 de
FHC. Um aumento de 269%!” (Um
recorde macabro.09/06/2013):
O Exército Brasileiro em Território
Tupinambá de Olivença – O uso sistemático do terror para oprimir ou impor a
vontade (14/02/2014):
[7] Leilão de Libra: entreguismo,
mentiras, repressão e contradições (29/10/2013):
[8] Para o capital, mais benesses; para
o povo, o Exército (12/08/2012):
[9] Temendo protestos na Copa,
patrocinadores já apelam a Dilma (26/09/2013):
Congresso aprova projeto de lei que
tipifica crime de terrorismo no Brasil (27/11/2013):
“Nós temos que ter prioridade com
esta questão. Não podemos ficar em descoberto, sem ter uma punição dura e forte
contra qualquer ação terrorista e, portanto, é importante que essa lei possa
ser votada rapidamente” (Romero Jucá. Congresso
pode aprovar até março lei que define crime de terrorismo. 06/01/2014):
[10] Dilma se rende à Lei e Ordem: a
ditadura da burguesia mostra a sua cara (22/01/2014):
[11] O Jogo dos “7 erros” do advogado
do chefe da milícia (15/02/2014):
[12] O povo pede passagem (17/06/2014):
[13] Manipulação Global (04/07/2013):
[14] “A violência que ocorre contra as manifestações é
também semeada pela mídia. Quem se lembra, por exemplo, quando em julho de
2013, por ocasião da visita do papa ao Rio de Janeiro, a Rede Globo de
Televisão editou imagens e acusou, de modo leviano e irresponsável, o ativista
Bruno Ferreira Telles de ter atirado um "coquetel molotov" contra a
polícia? Em seguida, no entanto, foram levantados fatos e convincentes
indícios, por iniciativa exclusiva dos demais manifestantes, de que: a) o
artefato havia sido atirado por um policial infiltrado (P2), fato jamais
esclarecido pelo Estado ou pela referida rede de televisão; b) que toda a
edição de imagens da Rede Globo era falsa, quando não abertamente mentirosa e,
por isso mesmo, criminosa; c) que as acusações faziam parte de uma estratégia
da empresa de comunicação em parceria com o governo do Estado para criminalizar
e desacreditar o movimento. Mais ainda: quem se lembra da atuação do Promotor
Público em entrevista à referida emissora, condenando sem provas e totalmente
fora de seu campo de atuação um manifestante por “tentativa de homicídio”?
Ainda aguardamos os pedidos de desculpas da emissora da família Marinho e do
agente público em questão pela exploração leviana e vil desses episódios.” (Nota
Pública Sobre os Acontecimentos na Central do Brasil. Publicado
em 15/02/2014 no Centro de Mídia Independente):
[15] Greve dos Rodoviários de Porto
Alegre: uma autêntica rebelião de base (02/02/2014):
[16] As revelações de um editorial
(15/02/2014):
[17] “O senador Paulo Paim (PT-RS) também defendeu a
aprovação rápida do projeto. Ele tinha apresentado um requerimento solicitando
que a matéria fosse analisada na Comissão de Direitos Humanos do Senado, o que
atrasaria a análise em plenário, mas decidiu retirar o pedido. “Em vez de nós
debatermos lá na Comissão de Direitos Humanos, eu renuncio ao meu requerimento
e nós votamos a matéria aqui, em um amplo debate, de forma tal que aqueles que
cometem crimes – e esse é o fato real de um crime – possam ser punidos com o
rigor da lei, exemplarmente”, disse o senador.” (Senadores
querem aprovação de lei antiterrorismo depois da morte de cinegrafista.11/02/2014):
[18] José Eduardo Cardozo: "Chega.
É hora de dar um basta" (15/02/2014):
[19] EMPRESAS REDOBRAM PRESSÃO POR
SEGURANÇA. Patrocinadoras estreitam contatos com secretarias de segurança
pública e pressionam governo federal (10/02/2014):
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