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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A Moral e a Atividade Revolucionária - Parte I

Nahuel Moreno

 

 

 

 

 

(Moral Bolche ou Moral Espontaneísta?)

Nahuel Moreno

1969

 

 

Apresentação

Neste caderno reproduzimos o documento "Moral Bolche ou Espontaneísta?", mais conhecido como "Documento de Moral". Moreno escreveu este material em 1969, quando voltou à Argentina depois de estar preso no Peru. Quando voltou, encontrou no partido argentino uma situação de relaxamento nas normas morais, com manifestações concretas que afetavam o desenvolvimento da organização e de seus militantes.

Preocupado, Moreno resolveu sistematizar os princípios marxistas relativos à moral, ou seja, às normas de comportamento individual. Se levamos em consideração que a Argentina tinha entrado, poucos meses antes, em uma situação pré-revolucionária e que o partido tinha que elaborar urgentemente sua política e sua atividade frente às novas circunstâncias, o fato de que Moreno assumisse mais uma tarefa além das muitas que tinha por fazer demonstra a importância que dava à formação partidária e à necessidade de que os quadros e militantes tivessem critérios claros nesse terreno.

O texto que publicamos pela primeira vez em português, começa com uma análise do problema moral em geral: que é a moral, como sistema de normas que respondem a um determinado tipo de sociedade e que mudam historicamente. Analisa os diversos tipos de moral que existem nesta etapa de decadência da sociedade capitalista: a moral burguesa, a moral lumpen e a moral espontaneísta, que expressa a rebeldia pequeno-burguesa contra a moral tradicional burguesa e se aproxima da moral lumpen.

Estas considerações mais gerais abrem o caminho para desenvolver o que é mais importante no documento: definir qual é nossa moral, a moral dos socialistas revolucionários. O marxismo não estabelece normas rígidas de comportamento pessoal, o partido respeita a vida pessoal.

Mas tem, sim, um critério rígido, dado pelo objetivo pelo qual entramos no partido e militamos nele: construí-lo como ferramenta para fazer a revolução operária.

"Nossa moral, diz Moreno, é uma moral para uma luta implacável para derrotar um inimigo não menos implacável, os exploradores e o imperialismo".

Aqui recordamos as palavras de Lenine:

"A vitória sobre a burguesia é impossível sem uma guerra prolongada, tenaz, desesperada, a morte; uma guerra que requer serenidade, disciplina, firmeza, inflexibilidade e vontade única".

Essas condições indispensáveis para a vitória devem ser o alicerce sobre o qual construímos nossas normas de conduta.

Moreno esclarece que:

"nossa moral não ignora, e não poderia ignorar porque é uma parte importante da realidade, as necessidades biológicas ou culturais, ou do desenvolvimento individual, nem a liberdade e o prazer, mas exige que estejam subordinados e sejam assimiladas em função de nossas normas morais, que têm seu objetivo central: a revolução e o partido".

Colocar o partido como eixo da conduta moral tem uma conseqüência muito concreta e humana: a relação com os companheiros de luta, os camaradas do partido:

"a vida, a moral, a consciência e o próprio corpo físico do camarada de partido valem muito mais que si mesmo". "Não há, nem pode haver, sacrifício que não possamos fazer em favor do camarada". "Apesar de que, na mais ampla maioria, os companheiros não se conhecem entre si, as obrigações morais continuam existindo e não são menos necessárias; são companheiros e basta".

No relacionamento entre camaradas deve existir um respeito e uma confiança mútuos, que surgem do fato de que temos em comum a tarefa mais importante de nossa vida e de que, sempre perseguidos pelo estado, os burocratas e os reformistas, só poderemos nos apoiar uns nos outros.

A segurança e a própria vida de cada um esta nas mãos de seus companheiros. É por isso também que nas questões de moral partidária e revolucionária, somos implacáveis: porque não aceitamos pôr em risco a organização e cada um de seus militantes por causa do comportamento irresponsável de alguns deles.

Por isso, o partido não só tem uma moral, como tem também uma disciplina e sanciona os que a violam ou cometem atos de traição contra a classe ou o partido. As pressões de classe, dos aparatos contra-revolucionários e do reformismo (que expressam, todas elas, as pressões da sociedade capitalista dentro do partido) provocam desvios mais ou menos graves em nossas fileiras.

Como dizia Lenine:

"O capitalismo morto apodrece, se decompõe entre nós, infectando o ar com seus vírus e envenenando nossa vida: o que é velho, podre e morto se agarra, com milhares de vínculos e ataduras, a tudo o que é novo, fresco e vivo".

Isto, que Lenine assinalava em relação ao estado operário soviético, onde os capitalistas já tinham sido expropriados, é mil vezes mais valido entre nós, que estamos submersos no sistema capitalista. Só podemos enfrentar esse perigo permanente com critérios morais firmes, colocando sempre as necessidades da classe, da revolução e da organização por cima de toda consideração pessoal.

E, além desse controle que cada um deve exercer sobre si mesmo, tem que estar o controle coletivo da disciplina partidária, que a ferramenta que garante que possamos atuar como um só homem e evitar que o comportamento individual de alguém prejudique a tarefa comum.

Vivemos em uma época de combate, que exige de nós disposição para o esforço, para o sacrifício e para a renúncia a desejos e gostos pessoais. Devemos adotar como nossas as palavras com que o partido bolchevique recrutava militantes durante a guerra civil na Rússia:

"Venha ao partido que não lhe promete privilégios nem vantagens. Se alcançarmos a vitória, construiremos um mundo novo. Se formos derrotados, lutaremos até o último homem".

Não queremos nos estender mais, pois o texto de Moreno é suficientemente claro. Só falta esclarecer um fato histórico que demonstra a utilidade que a discussão deste documento teve para o partido argentino. No último capitulo, Moreno expressa sua preocupação de que as faltas morais que observou pudessem produzir (e apontava sintomas disso) um enfraquecimento da atitude dos militantes diante da repressão.

Alguns anos depois que o "Documento de moral" foi distribuído e discutido em todo o partido, a Argentina entrou na noite da barbárie fascista. A firmeza de nossos companheiros foi exemplar. Nossos desaparecidos morreram sem abrir um nome ou um endereço; nossos presos, em sua imensa maioria, suportaram as torturas sem entregar um só dado e mantiveram na prisão uma conduta moral que lhes valeu o respeito dos próprios repressores e de nossos adversários políticos.

O partido continuou militando em meio às maiores dificuldades, passou a prova e assim, pôde (depois da queda da ditadura) voltar atividade legal ainda com mais força que antes.

Trotsky disse:

"Combatemos em nome do maior bem da Humanidade, em nome de sua regeneração, para tira-la das sombras e da escravidão".

Essa é uma tarefa grandiosa que justifica a dedicação de nossa vida e a adoção de um comportamento individual de acordo com as necessidades da luta. Neste terreno, os ensinamentos deixados por Moreno vão mais alem deste documento; estão contidos, principalmente, no exemplo de sua vida militante.
Francisco Morais

Parte I


Moral Bolche ou Moral Espontaneísta?
Meu contato com o partido, devido minha situação, tem sido durante estes meses através da correspondência. Não posso me queixar porque tem sido bastante intenso. Sem querer, levado pelo intercâmbio de cartas, fui me metendo no problema moral, desviando-me um tanto de meu projeto de escrever um trabalho sobre a situação peruana. É que vários dos companheiros e companheiras que me escreviam esboçavam ou defendiam posições sobre a moral que eu considerava alheias as nossas tradições e concepções.

"Há que ser honesto consigo mesmo", me escrevem, repetindo uma velha frase minha aprendida dos mestres; "tenho ânsias de viver e quero satisfaze-las"; "a primavera, o cheiro das flores, a conversa com as companheiras ou amigas fazem com que se possa passar qualquer coisa e tudo o que ocorrer está bem"; "não tenho que ter esquemas ou dogmas no problema sexual ou moral"; "nossa moral é fazer o que gostamos em qualquer momento".

Destas formulações teóricas passaram a dar-me todo um programa concreto de ação moral, "que louco é o companheiro tal que vive pensando em sua companheira presa, diz que cada vez a quer mais, quando a separação física por razões objetivas provoca inevitavelmente desamor, afastamento", "com minha companheira presa atuo de forma diferente, saio ou trato de sair com outras companheiras, assim consigo uma espera "ativa" e não "estática" etc., etc... Todas estas são citações textuais ou quase textuais, com ligeiras modificações para evitar sua identificação.

Antes da divisão "os combatentes" [1*] atacaram os companheiros da Zonal Norte por terem, segundo eles, essa moral. Naquele momento nos levantamos indignados contra tal infâmia e falsidade, que provinha justamente de dirigentes cuja moral pessoal era verdadeiramente repugnante, da pior que tenho visto em minha longa militância. Acreditava que essa polêmica com os combatentes havia aclarado o panorama. Parece que não é assim.

Na última escola de quadros tive a intenção de tocar neste tema, já que o considerava parte importante da educação militante. Por razões de tempo, me foi impossível fazê-lo.

Creio que a grande quantidade de novos companheiros, a debilidade de sua formação, a falta de tradição marxista revolucionária, como o grave perigo de que companheiros de prestigio por serem ou haverem sido parte da direção nacional, tenham essas falsas posições e possam influir nos novos quadros partidários, exige que de uma vez por todas abordemos o problema.

Sem dar muitas voltas direi que considero que existe todo um setor do partido que por um grave processo degenerativo, social, político, sua lumpenização, tem adotado posições sobre o problema moral que atentam contra a marcha e o fortalecimento de nossa organização.

O tema toca, por outro lado, de forma muito mais profunda na realidade contemporânea. Vivemos a época mais revolucionaria da história, o salto da sociedade de classes, da pré-história humana para a sua história. Isso significa que estamos passando de formas de vida, costumes, relações econômicas, entre os sexos, das distintas esferas da atividade social arcaicas às novas.

Porém estas últimas estão muito longe de se terem cristalizado, justamente porque estamos numa época de transição.

Nestes períodos históricos nenhuma norma se fixa, se cristaliza; se derrubam umas, aparecem outras. A moral não uma exceção, pelo contrario, é um dos aspectos da vida que sofre uma maior comoção. Os velhos valores entram em crise antes que triunfem os novos e que os mesmos tenham se estruturado. Todas as épocas de mudanças revolucionária, nos tem mostrado uma situação similar de confusão moral, de amoralismo oficial, de choques entre distintas morais.

O renascimento italiano com seus Papas, os Borgia, ou seus artistas, como Benvenutto Cellini, nos mostra um amoralismo que nos deixa estupefatos. A decadência do Império Romano, com suas orgias, seus imperadores "marido de todas mulheres e mulher de todos os maridos da corte" outra prova do que vínhamos dizendo.

Que destas épocas tenham surgido as tremendas morais de Savonarola, Calvino, a primeira; o catolicismo dos primeiros séculos, a segunda, não faz mais que confirmar que na luta contra o amoralismo oficial, decadente, se foram estruturando uma nova moral, que refletia uma nova época e classe.

Os companheiros que captamos, são, principalmente, estudantes, vêem de uma sociedade em falência, repugnante, com pais separados ou que traem um ao outro; com amigos ou conhecidos que relatam orgias sexuais reais ou imaginarias; com filmes que se divertem em descrever todas as variantes de perversão sexual, com a leitura diária sobre a quantidade de maconha ou ácido lisérgico que consome a juventude norte-americana ou européia; com filmes pornográficos japoneses ou suecos que superam tudo o produzido na pré-guerra pelos franceses ou alemães; com pederastas ou lésbicas; com crimes ou assaltos vários; com delinqüentes públicos transformados em grandes personagens que gozam de todos os favores e prestígio social; com uma escala aristocrática onde as artistas de cinema e televisão, rodeadas de playboys, são supra sumo da moda, dos costumes, da moral; com uma frieza entre os sexos nos países avançados, onde se esta produzindo a liberação da mulher, que preocupa aos sociólogos; com a pílula como elemento fundamental na liberação da mulher. Estes companheiros chegam ao partido vindos de uma sociedade totalmente corrompida, sem valores de nenhuma espécie, onde a família, a amizade e as relações entre os sexos estão totalmente em crise. Isto não pode menos que refletir-se nas próprias filas partidárias, já que não vivemos enlatados a vácuo, mas sim dentro dessa sociedade.

Frente a esta situação se impõe a necessidade de precisarmos então que classe de moral temos, e inclusive se temos alguma.

Como Encaram Teórica e Praticamente Nossos Mestres o Problema Moral

O "Velho", em seu conhecido folheto "A Moral Deles e a Nossa" (ou Moral e Revolução) deu as linhas gerais da moral revolucionaria. Combatendo a concepção da pequena-burguesia, principalmente a intelectual, que sustentava e sustenta que há uma moral acima das classes que obriga a todos os homens a respeitar certos princípios, deveres morais, reivindicou a relatividade e o caráter de classe de nossa moral, como da moral em geral.

Nada de princípios absolutos, gerais, para a moral; a base da nossa é a revolução proletária. Tudo que a favoreça em nossa conduta é moral, entra dentro de nossos valores: tudo que a debilite ou vá diretamente contra a revolução, é imoral. Estes princípios nos obrigam a colocar o eterno problema dos meios e dos fins.

Como sabemos que tal meio ou atitude moral serve à revolução? "Os fins justificam os meios" dizia a velha moral dos jesuítas. Trotsky respondia; "sim, sempre que os meios levem aos fins". Ou seja, entre fins e meios há uma dialética, já que nem todos os meios são viáveis, úteis.

Mentir ao movimento de massas não serve para nada ainda que quem o faça tenha as melhores intenções, já que rebaixa o nível de compreensão dos fenômenos políticos e sociais pelos trabalhadores. É, portanto, não só um erro político, senão uma grave falta moral. Porém, um companheiro que tem uma missão dentro de um ambiente inimigo tem que mentir sistematicamente, porque sua mentira vai a favor do desenvolvimento do partido e da revolução.

Se por exemplo, um companheiro despedido da Kaiser de Córdoba vem a Buenos Aires para buscar trabalho, por ter sido incluído nas listas negras da patronal cordobesa, logicamente não dirá a verdade aos novos patrões: "fui demitido da Kaiser porque era ativista sindical". Sua mentira é valida, estritamente moral.
Os intelectuais pequeno-burgueses assustados pelos que dizem que existe um principio moral sagrado, "não mentir", dizem: "portanto esse companheiro cordobés de vocês é um imoral de marca maior, vive mentindo a todos os patrões de Buenos Aires a quem pede trabalho".

Este principio moral situado por Trotsky: servir à revolução como critério básico deixa muito campo livre para a independência e desenvolvimento pessoal no campo das relações entre os sexos, a família e os outros companheiros. As diferenças apreciáveis na vida de nossos grandes mestres o demonstra.

Não é segredo que Marx teve relações pessoais que alguns críticos modernos consideram de "moral vitoriana": fidelidade absoluta no matrimônio, relações exageradamente sérias com suas filhas, que noivaram e se casaram com todas as convenções da lei (inclusive a que se uniu livremente a seu companheiro inglês, que depois se suicidou, também o fez de forma bastante séria), aparentemente certa atitude depreciativa frente as relações de Engels com suas companheiras irlandesas, as duas irmãs, que nunca visitaram a família Marx (ainda que não me conste, me dizem que Bernstein, em um de seus livros, comenta que na casa de Marx eram muito mal vistas as relações deste com a irlandesa).

Engels era o oposto de Marx. Em lugar de uma só noiva como este, que depois foi sua esposa, ainda com um bom lote (quando da revolução alemã de 48, chegou vários dias depois de combinado porque havia passado por Alsácia e Lorena a pé, onde "havia muitas mulheres lindas e bons vinhos" foi sua desculpa). Marx vivia assustado com as manias de Engels pela equitação e as " relações sociais".

Os mexeriqueiros europeus, que também existem em grande quantidade, estão muito preocupados averiguando se andava com as duas irmãs ao mesmo tempo. O "Velho" comentava a correspondência dos dois amigos diz que surgem como maravilhas humanas, principalmente Engels. Eu compartilho desta opinião.

Entre Lenine e Trotsky há diferenças parecidas às existentes entre Engels e Marx respectivamente. Trotsky se casa duas vezes e tem relações sérias, quase "vitorianas", segundo os seus críticos europeus. Lenine, segundo insinua Deutsher e asseguram os fofoqueiros de turno, parece que teve algumas relações com suas ajudantes.

Segundo os comentários que corriam em Moscou em fins da década de 20, o segredo da capitulação de sua magnífica companheira, Krupskaia, à Stalin, era a chantagem de que havia sido objeto por parte desse chacal: se não capitulasse a denunciaria como não tendo sido a companheira de Lenine e tiraria de sua manga alguns dos casos deste para ser reivindicada como tal.

Por outro lado, Pola Negri, em suas memórias que li, não me contaram, relata que na Suíça, onde ela trabalhava em um cabaré ou algo parecido, havia estado com um homem de pequena estatura que foi a pessoa mais extraordinária que havia conhecido em toda sua vida. Essa pessoa era Lenine. Se isto for certo e não uma manobra publicitária de Pola Negri, duvido muito que a amizade entre ambos tenha sido justamente para jogar cartas.

Por um problema que Trotsky teve ao final de sua vida com sua companheira nos inteiramos do tipo de relação que tinham. Parece que o "Velho" e a senhora de Diego Rivera haviam se simpatizado em demasia, até provocar a indignação da Velha.

Isto provocou uma emocionante troca de cartas entre os dois Velhos: Don Leon lhe dizia em sua carta que ele jamais lhe havia pedido satisfação sobre as relações dela com seu secretário durante a guerra civil, apesar das presunções ou comentários de que tinham relações. Isto revela que Trotsky tinha a concepção de que cada um dos cônjuges era livre para fazer o que quisesse, sem ter que prestar contas ao outro: a independência pessoal mais absoluta.

Deixando de lado que a Velha esclareceu o equivoco e a falsa versão ou presunção e que o Velho não recebeu mais a senhora de Diego Rivera, a posição que surge pela correspondência é contraditória, porque embora nela Trotsky afirma que nunca pediu prestação de contas, de fato nas duas cartas trocadas há, uma indireta e sutil intenção de prestação de contas, de estabelecer relações francas, verdadeiras, entre ambos e não da liberdade total absoluta e secreta.

Deste breve resumo, podemos tirar uma conclusão: que nossos mestres, dentro da moral geral que todos eles observaram no desenvolver da revolução, tiveram pronunciados matizes diferenciadas, inclusive contraditórios, na moral cotidiana com o outro sexo, a família e os companheiros, provocados por razões da época ou formação individual. A constatação deste fato pode nos levar a uma conclusão apressada e perigosa: que não há nenhuma relação entre a moral geral revolucionária e a que temos que empregar todos os dias em nossa vida de relação mais íntima. Dito de outra maneira, que não há normas ou linhas concretas em nossa moral, mas apenas generalidades.

Creio que pelo contrário, este é um terreno, como tantos outros, que não aprofundamos e que essa é a razão pela qual podemos tirar essa falsa conclusão. Não é casual que nesta etapa da revolução, como de nosso partido, comecemos a estudar o problema, tratando de solucionar, de descobrir, as leis que nos permitam retirar da lei geral de nossa moral, de que tudo o que ajuda à revolução e ao partido revolucionário é lícito, as normas justas de atuação cotidiana, principalmente em relação aos companheiros, nossas famílias e especialmente com o outro sexo.

O Que é a Moral?


Para avançar neste terreno, devemos começar por nos colocarmos de acordo em o que é a moral, o que significam os valores e deveres morais.

O homem vive em sociedade, formando parte de agrupamentos humanos, classes, grupos, famílias, nações, bairros. Essas estruturas sociais, para se manterem e se desenvolverem necessitam impor aos indivíduos que a formam, uma série de normas, obrigações, que garantam a conquista de objetivos como a solidez dessas estruturas. Essas normas que toda estrutura social impõe a seus indivíduos, são justamente as Morais.

A ciência moderna, tende a dividir essas normas entre as mais abstratas, que estuda a ética, e as mais concretas, os deveres, que analisa uma nova ciência, a deontologia ou ciência dos deveres. Não quero me perder nos detalhes, que para o nosso caso são secundários.

O importante é compreender o papel social fundamental que cumprem as normas sociais: o meio de garantir que o indivíduo, pressionado pelos valores e deveres de sua organização social, responda às necessidades desta.

Um exemplo: um sindicato é uma organização social, tem portanto, normas e deveres morais para com seus integrantes. Estas, entre outras, são as seguintes: acatar sempre o que os operários resolvam por maioria, ser solidário com todo pessoal em greve, não "furar greves" nunca. Estas normas garantem a solidez, desenvolvimento e conquista dos objetivos da organização sindical.

Se não existissem ou se não se cumprissem, essa organização desapareceria em curto prazo. Estas normas morais se impõem por convencimentos dos indivíduos e por pressão moral e até física da organização social sobre eles. O que caracteriza é a pressão moral, ou seja, de opinião coletiva da organização.

Em torno deste último aspecto, surgem os pontos de contato e as diferenças entre o direito e a moral. Em um sentido, o direito é a moral mais um garrote, o do Estado ou qualquer outra superestrutura. Mas o direito é muito mais que isso, já que regulamenta muito mais relações que a moral. Enquanto esta apenas dá normas para a atuação individual dentro da organização, o jurídico dá leis ou resoluções que tratam de regulamentar todas as relações existentes na sociedade, entre as classes, os grupos, os indivíduos, de todos eles entre si, mas em benefício de uma classe e aplicado por um estado a serviço da mesma classe.

Dai que o direito utiliza os meios diretamente compulsivos, a cadeia, as penalidades, próprios da força do estado, enquanto a moral utiliza a persuasão ou o repúdio moral, isto é, de opinião de grupo.
Algo semelhante ocorre com os costumes. Todo agrupamento tem seus hábitos de vida; se cumprimentam de tal forma, nós por exemplo, nos dizemos "como vai companheiro", outras organizações de esquerda "como vão camaradas". Fazem-se bailes ou almoços, ou ambas atividades de uma vez.

Cada agrupamento social tem seus hábitos cotidianos de viver, são os costumes. Têm há ver com a pratica diária de existência desse agrupamento. Estes hábitos ou costumes cotidianos são fundamentais para a subsistência do agrupamento, mas não fazem à essência das relações, os costumes ou alguns deles, podem mudar sem afetar em nada o agrupamento.

Também alguns indivíduos podem ser diferentes, não cumprimentam dizendo "como vai companheiro", mas sim, "como vão amigos e amigas", é contra o costume, mas não afeta em nada a estrutura do agrupamento, neste caso nosso partido.

Os costumes são elemento espontâneo do agrupamento, tomado em sua média estatística. A moral funde suas raízes nos costumes, mas bem diferente, não é toda a vida cotidiana como esta última, mas um aspecto privilegiado desta, aquele aspecto que faz à sobrevivência da estrutura social de que se trata e, portanto, são normas estritas, severas, essenciais para serem aplicadas por indivíduos.

Aclaram-se assim as três escalas deste aspecto da vida social. - Os costumes é o espontâneo, o geral e o cotidiano da vida e práxis de todo agrupamento social. A moral são as regras, normas, deveres que garantem a sobrevivência, desenvolvimento e fins do agrupamento social, através dos indivíduos que o formam.

O direito é uma superestrutura que tende a regulamentar todas as relações, não só as excepcionais e essenciais, como as morais, mas todas, desde as horas de reunião de um partido, até as relações entre as classes no direito público do estado burguês.

Toda classe, organização social, tem então, seus costumes, moral e direito. Nosso partido, o partido bolchevique argentino, o PRT, não é uma exceção. Todos nós sabemos que temos nossos costumes, alguns parecem ter se esquecido que também temos uma moral e temos nosso direito (o estatuto).

A Crise da Moral Burguesa

A burguesia, em sua época de ascenso e plenitude, impôs uma sólida moral. A base dessa moral era dada pelas necessidades da acumulação primitiva capitalista. A célula fundamental dela era a família patriarcal burguesa, com muitos filhos e o domínio absoluto do pai, os máximos valores eram os familiares.

O futuro, com seu afã de engrandecimento, condicionava todos os valores morais. A poupança, a economia, a obediência servil dos filhos e da mulher ao chefe da família, a acumulação de um capital antes de se casar, o que levava a que se casassem já maduros, o casamento acertado entre famílias para que as filhas se casassem o mais rápido possível, quase meninas, para que não fossem uma carga para o processo de acumulação, caracterizava esta moral.

Como vemos, predominava a organização familiar e uma moral adequada a essa organização, cujo objetivo era a acumulação capitalista. Tudo era sacrificado pelo futuro, principalmente o presente. Os homens se casavam já maduros porque haviam sacrificado sua juventude para a acumulação da fortuna que lhes permitiria constituir um lar burguês, com a marcha acumulativa assegurada. Primeiro a fortuna, depois o casamento, era a regra moral.

As meninas, para assegurar seu futuro, eram obrigadas a casar com velhos que poderiam ser seus pais ou avós, se lhes frustrava, por toda vida, suas possibilidades instintivas, para lhes assegurar um futuro econômico.

Entre essa moral oficial e as necessidades biológicas, produzia-se uma dicotomia, uma grave contradição, insolúvel dentro dos marcos estritos daquela. Dai que essa moral entrasse em contradição com o costume, era hipócrita, já que solucionava ou tentava solucionar suas contradições por meios ocultos e hipócritas.

Para os homens: os prostíbulos; para os jovens, especialmente os da burguesia, as vedetes ou "malas gruas" como com ironia as definiam os franceses do fim do século, porque levantavam seus candidatos desde o palco, ou diretamente a amante cara.

Para as pobres mulheres, condenadas a uma moral oficial masculina, a "traição" de seu velho esposo ou, se as circunstâncias o impedissem, o anamoramento romântico, "impossível", cheio de versos "cursi" que escondiam aparências mais realistas.

Mas, em geral, a mulher burguesa esteve condenada sob esta moral a não satisfazer suas necessidades biológicas ou culturais, já que os cartões postais ou os versinhos do apaixonado do momento não podiam satisfazer essas necessidades prementes.

No século passado, e em grande parte no presente, segundo os sexólogos, a maior parte das matronas da burguesia morriam sem haver conhecido o ato sexual integralmente e as que conseguiam eram uma exceção, que quase sempre se dava em uma idade relativamente madura, depois dos 30 anos.

Paralelamente a estes problemas morais e de costume, foi-se produzindo outros, à medida que a burguesia acumulava: a necessidade de gozar do conquistado. A conseqüência disto, foi que, das duas caras da moral burguesa, a pública e a restrita, a hipócrita e a oculta (o adultério, as amantes, os prostíbulos), o desenvolvimento capitalista foi dando proeminência a esta última. Isto significava que a necessidade de acumulação primitiva deixava lugar ao andamento normal, não opressivo dessa mesma acumulação.

Poderíamos falar de duas morais burguesas, uma a de acumulação primitiva, outra, a da burguesia em seu apogeu. Na primeira domina o futuro, tudo ou quase tudo era sacrificado por ele. O presente se esconde e é solucionado de forma clandestina. Em seu apogeu, produz-se um bastardo equilíbrio entre o futuro e o presente, a hipocrisia se torna pública, e a burguesia aceita gozar o presente, sem renegar o futuro. Mas as graves contradições continuaram existindo.

Os grandes descobrimentos de Freud não podem ser explicados sem os enfocar como conseqüência da observação destas graves contradições da moral predominante de sua época, em Viena.

Freud utilizou a ciência para descobrir a hipocrisia dessa moral e o lado oculto dela, o biológico. Este século o da decadência da burguesia, com ela cai em pedaços sua moral, esta entra em uma crise tão brutal como o regime que a fundou.



A família patriarcal burguesa da etapa de ascenso, desaparece, se rompe, para dar lugar a relações entre os sexos e os membros da família anárquica, crítica, onde o elemento fundamental é a transformação de cada indivíduo em desfrutador do mundo e do outro sexo.

Esta moral reflete a passagem da acumulação capitalista desesperada à tentativa da burguesia de gozar o presente. É a putrefação do indivíduo burguês levado aos seus últimos extremos, o das relações pessoais e sexuais. Os setores mais cultos, rebeldes ou desclassificados da própria burguesia, apelam impudicamente a um giro ao biológico, o imediato, quer dizer, o abandono de toda moral, de toda perspectiva para o futuro. A psicanálise fica na moda nos anos 20, principalmente nos Estados Unidos.

Todo o espontâneo e as necessidades biológicas encontram justificação e explicação na psicanálise. Tudo esta bem e permitido, o passado e o biológico, tudo é explicado e justificado. Uma classe sem futuro, logicamente teria que cair, como todas as classes que na história perderam toda sua perspectiva, em um amoralismo.

Mas a putrefação moral da burguesia teria que avançar ainda mais. Com o neocapitalismo, com o controle dos mercados pelos grandes monopólios que o caracterizam, pela manipulação dos consumidores através da propaganda, a perda da moral já é total, nem sequer é um amoralismo, já que se transforma em um consumo, em hábitos, reflexos condicionados e solucionados pelos grandes monopólios.

Já a moral, ou falta de moral, nada tem a ver com pessoas de carne e osso, mas com objetos ou pessoas-objetos. Até as necessidades biológicas mais primárias são manejadas, manipuladas, pelos que controlam o mercado, que rebaixam assim a moral a um ramo a mais do mercado monopolista.

A vida se torna aborrecida, a moral desapareceu, já não são deveres que os homens impõem a si mesmos, para defender uma estrutura social, mas reflexos condicionados, costumes, satisfação por esses reflexos, de necessidades biológicas ou sociais. Entramos em uma época de falta de moral ou de uma ética congelada.

A esta moral da burguesia em decadência, se combina, com seus aspectos característicos, a outra moral, que é sua sombra rebelde, em certo sentido seu rosto verdadeiro, a moral dos setores deslocados das grandes cidades.

A Moral Lumpen

Nas favelas desta etapa neocapitalista estão congregadas multidões que estão relativamente à margem do mercado capitalista, sua ligação com ele, com seus fetiches, é muito menor que a dos outros consumidores. Seu regime de vida é instável. São grandes concentrações de desclassificados, lumpens. Muitos deles se transformam em operários, outros não; mas o elemento determinante está dado por essa caracterização. Os companheiros que trabalharam sobre a greve portuária, conhecem na própria carne a verdade do que estamos dizendo. Que moral têm esses conglomerados?

Não necessitamos investigar muito, existe um livro magnífico que não só estudou uma família desse conglomerado, mas que retirou algumas conclusões significativas. Refiro-me a "Os Filhos de Sánchez" de Oscar Lewis; o autor, depois de assinalar que as conclusões podem ser aplicadas às grandes cidades, diz o seguinte: "outros aspectos incluem uma forte orientação para o tempo presente, com relativamente pouca capacidade de retardar seus desejos e de planejar para o futuro, um sentimento de resignação e de fatalismo baseado nas realidades de difícil situação de sua vida".

Os membros da classe média, e isto inclui logicamente a maioria dos investigadores das ciências sociais, tendem a se concentrar nos aspectos da cultura da pobreza e tendem a associar valores negativos e características tais como a orientação centrada no momento presente, a orientação concreta versus a abstrata. Não pretendo idealizar nem romantizar a cultura da pobreza. Como disse alguém: "É mais fácil louvar a pobreza do que vive-la".

No entanto, não devemos passar por cima de alguns dos aspectos positivos que podem surgir daí. Viver o presente pode desenvolver uma capacidade de espontaneidade, de desfrutamento do sensual, a aceitação dos impulsos, que freqüentemente esta tolhida em nosso homem da classe média, orientado para o futuro. O uso freqüente da violência significa uma saída fácil para a hostilidade, de modo que os que vivem na cultura da pobreza sofrem menos a repressão da classe média. Lewis deu um nome próprio da sociologia norte-americana a este fenômeno: cultura da pobreza, aparentemente não tem nada que ver com as categorias marxistas, é uma definição por lugar de moradia.

Mas Lewis é um extraordinário observador além de estudioso. Isto o leva a fazer marxismo, e do bom; a "cultura da pobreza" - nos diz - "só teria aplicação nas pessoas que estejam no fundo da escala sócio-econômica, os trabalhadores mais pobres, os camponeses mais pobres, os cultivadores de plantações e essa grande massa heterogênea de pequenos artesãos e comerciantes, os quais em geral se classificam como "lumpen proletariado". E para que não nos restem dúvidas de que se trata da moral e cultura dos lumpens, nos esclarece, "gostaria de distinguir claramente entre o empobrecimento e a cultura da pobreza.

Nem todos os pobres vivem nem desenvolvem necessariamente uma cultura da pobreza". E, rematando suas conclusões, nos diz: "Quando os pobres adquirem consciência de classe, se tornam membros de organizações sindicais ou quando adotam uma visão internacionalista do mundo, já não fazem parte da cultura da pobreza, ainda que continuem sendo desesperadamente pobres". Lewis não sabe que afiliados ao nosso partido, nossa internacional, existem "canalhas", chamando-os assim, já que não são imberbes militantes que estão na cultura da pobreza, na acepção de Lewis, que não têm nenhuma "capacidade de retardar seus desejos". Mas essa exceção não anula a correta definição do autor, que não tem porque conhecer os processos  excepcionais e degenerativos.

A Rebelião Burguesa e Pequeno-Burguesa Contra a Sua Moral o Existencialismo e Espontaneísmo

Dado o objetivo específico do livro de Lewis, este não tira todas as conclusões gerais de algumas de suas observações mais interessantes: inclusive entra em contradição aparente com algumas delas. Lewis intui que a cultura da pobreza, da desclassificação, a lumpenização, com todos seus valores morais, não é própria somente do lumpen tradicional, mas que todas as classes podem lumpenizar.

Por exemplo, sublinha "a cultura ou sub-cultura da pobreza nasce de uma diversidade de contextos históricos, mais comum que se desenvolva quando um sistema social estratificado e econômico atravessa um processo de desintegração ou de substituição por outro, como no caso da estratificação de feudalismo ao capitalismo, ou no transcurso da revolução industrial". Diretamente não liga neste caso a cultura da pobreza ao baixo nível econômico-social, mas a uma etapa de transição, que provoca desclassamento, ainda que ele não o diga assim.

Isto se vê confirmado pela contradição formal em que cai ao assinalar como opostas a cultura da pobreza, em nossos termos "lumpen", e a da classe média, mas de relance dá a melhor definição que conheço do existencialismo como corrente filosófico-social: "talvez esta realidade do momento (presente) seja a que os escritores existencialistas de classe média, tratam de recuperar tão desesperadamente, mas que a cultura da pobreza experimenta como um fenômeno natural e cotidiano".

É que Lewis não sabe que a classe média, durante a primeira guerra mundial, em alguns de seus extratos, de forma cada vez maior desde a segunda guerra mundial, encontra-se como que sem futuro, que a sociedade imperialista ou neo-capitalista a condena ao presente de uma vida automatizada pelos reflexos do mercado, ao irracionalismo da vida sob o capitalismo, ou seja, o condena a não ter futuro e portanto a não ter moral. Produz-se então, uma rebeldia dentro dos marcos burgueses contra os valores da burguesia em nome de suas próprias categorias.

Tanto o sub-realismo como o existencialismo refletem essa situação sem saída de estratos muito importantes da pequena-burguesia. Mas para intelectuais pequeno-burgueses, no fim das contas, sua rebeldia é levar os princípios burgueses e pequeno-burgueses até suas últimas conseqüências. A liberdade individual como opção é uma das categorias morais principais do existencialismo, ou seja, o principio de fazer o que se quiser. A satisfação das necessidades mais primarias, o imediato, o biológico é a outra reivindicação, a vida, a existência. O individualismo é a terceira categoria.

É uma filosofia e moral da pequena-burguesia lumpenizante, desclassificada, sem perspectiva, que se refugia ou busca desesperadamente no biológico e no individuo uma tábua de salvação. Sua moral é o amoralismo, já que ao colocar como suprema norma o satisfazer e optar individualmente, elimina-se o elemento funda mental de toda moral, a relação de necessidade entre o grupo e o indivíduo que forma parte dele.

Este último pós-guerra explica o auge e o apogeu do existencialismo, quando a Europa capitalista ainda não havia conseguido se recuperar e o stalinismo frustrava a perspectiva revolucionária. Entre os dois fogos da decadência total da sociedade capitalista européia e o oportunismo dos grandes partidos de massas, surgiu uma terceira via, a do individualismo mais extremo, a do existencialismo, a da conceitualização filosófica e moral da rebeldia dessa pequena-burguesia, junto com seu desclassamento.


Porém este um fenômeno generalizado nas épocas de crises. Setores e mais setores destas classes dominantes ou em certo sentido privilegiadas, como a classe média, vão rebelando-se desde distintos níveis e partindo de categorias ou consignas das próprias classes dominantes em sua época de ascenso.

Porém sejamos claros, essa rebeldia chega a formular o aparato conceitual dos lumpens, redescobre a moral lumpen, sem a riqueza espontânea destes, com o pecado original de ser intelectualizada. Enquanto os lumpens são individualistas ao extremo, gozadores da vida e de todos os seus impulsos, vivedores do presente, que vivem optando "livremente" negando-se a aceitar o mundo da necessidade, ainda que este termina sempre se impondo, os manda para a prisão ou incendeia a favela, diretamente, sem programa, sem linha expressa, são assim porque o são e basta; os existencialistas fazem um programa e uma filosofia desse amoralismo e individualismo. É sua miséria e seu calcanhar de Aquiles elevar a uma religião o que nos lumpens é sua vida. Por outro lado é muito profundo o processo porque reflete a lumpenização de setores da pequena-burguesia produzida pelas próprias crises da sociedade burguesa.

O Espontaneísmo

A pequena-burguesia desclassada do último pós-guerra foi assimilada pelo "milagre europeu", ou seja, pelo neocapitalismo. Encontrou um futuro na "forma de vida norte americana", os automóveis, refrigerantes, apartamentos e férias. O existencialismo desapareceu, ficou como o sub-realismo da anterior guerra, relegado ao devaneio das curiosidades filosóficas ou morais.

Porém dentro do neocapitalismo, a pequena-burguesia o estudantado como reflexo de toda sociedade, iriam sofrer tanto ou mais, ainda que de forma diferente, que durante o pós-guerra. A alienação, a proletarização, a venda não somente de sua força de trabalho mas também sua personalidade, a falta de perspectivas científicas e humanas para os estudantes dentro do neocapitalismo, provocaram uma nova rebelião com características comuns e com diferenças pronunciadas com seus pais, avós, os sub-realistas e existencialistas, o espontaneísmo das grandes rebeliões estudantis do ano 68.

Antes de mais nada esta não foi de pequenos estratos, de intelectuais e outros setores de pouca significação numérica, mas de grandes massas estudantis, acompanhadas, às vezes, de setores da juventude operária, como em maio de 68 na França. É um movimento muito mais progressivo que os anteriores, porque não é somente uma rebelião individual levada aos extremos de atacar todos os tabus e valores presentes e passados da sociedade burguesa em nome de uma moral de desclassados, mas um movimento que tende a ser de massas.

Na realidade se deu o processo intelectual que sofreu Carlos Astrada [1N]], o grande filósofo argentino. Este começou como um convencido existencialista para depois superar o existencialismo em um ponto; de individual o transformou em coletivo, de massas. Aceitava todas as categorias existencialistas, opção, existência ou vida, liberdade, porém negava a do indivíduo, ele acreditava que todas as categorias se davam ligadas aos grandes grupos humanos, inclusive as classes.

Havia opção e existência das classes. Seu próximo passo foi afirmar que o determinante era o mundo da necessidade para dar o salto do existencialismo ao marxismo. Salto entre parêntesis, que nosso partido o ajudou a dar. Isto foi o que ocorreu com os intelectuais, os estudantes e setores da classe média dos grandes movimentos de 68. Aplicaram os conceitos de Astrada à realidade, isso é o espontaneísmo.

Esta passagem do existencialismo ao espontaneísmo só pode ser compreendida pela existência do neocapitalismo. Este, com seus grandes monopólios que controlam não só o mercado mas toda a vida contemporânea, com suas ganâncias políticas e sindicais, os grandes partidos e sindicatos que controlam o movimento de massas a serviço dos estados e dos grandes monopólios, ainda que se chamem comunistas, cuja função é castrar todo movimento ou ação das massas, provocou uma reação compreensível na juventude, o repúdio a todo intermediário ou organizador do movimento de massas, que estas façam espontaneamente o que queiram, a ação pela ação mesma.

Que ainda não se tenham elevado a compreensão de que o que há que questionar são as organizações e os intermediários do movimento de massas, que se trata e se necessita de sindicatos, partidos, sovietes, guerrilhas revolucionárias que disputem esse papel de intermediários às organizações enfeudadas nos monopólios, é lastimável, mas um fato compreensível.

O espontaneísmo é o repúdio a essas organizações traidoras sem haver ainda encontrado o caminho. Como tal é muito progressivo. Questiona as organizações oportunistas e reivindica as ações do movimento de massas.

No terreno moral, o espontaneísmo não é tão progressivo, ao contrário, é uma recaída no existencialismo, por uma razão simples: ao contrario da política que coordena e dá objetivo às ações do movimento de massas, a moral regulamenta as relações do individuo com seu grupo, sempre são normas para serem aplicadas por indivíduos.

Dai que o espontaneísmo, a ação por ela mesma, no terreno moral, nos leva ao amoralismo, à moral de individualismo, das opções de "fazer o que tenhamos vontade", de não ter normas. Este "não ter normas" em política, neste momento de sufocante predomínio dos grandes aparatos burocráticos, é positivo; não o é tanto no terreno moral, ou pelo menos não é superior aos aspectos progressivos, de reivindicação da imediatez contra os tabus e normas da burguesia, que já tinham as morais anteriores surrealista e existencialistas. É uma reação a elas. Portanto, não supera os marcos de rebeldia dentro das próprias estruturas burguesas.

Uma prova conclusiva de tudo isso, de como a burguesia cai em predações e como o espontaneísmo moral, em última instância, é como definia Lenine o anarquismo, liberalismo burguês com 40 graus de febre, dado por um fato sintomático, o programa moral da ala esquerda da juventude conservadora britânica.

Li casualmente um artigo no "The Daily Telegraph" de 25 de setembro de 1969. O tema me pareceu em principio pouco interessante: "Como são os jovens conservadores?" por um tal de T.E. Utley. Depois de assinalar que é um "sério movimento de massas que cresce com imensa velocidade", continua em outra parte dizendo qual seu programa: "Há, por outro lado, minorias ruidosas, tal como a representada pela capacitada e estridente jovem parceria Erie e Lynda Chalker da juventude conservadora da Grande Londres"... Este jovens conservadores prepararam uma pauta de reivindicações (Bill of Right) com 15 liberdades que incluem "a liberdade de expressão sexual" e "liberdade de tomar drogas...". "Estes jovens conservadores exigem uma legislação liberal, de cujos aspectos muitos são a aplicação na esfera moral dos princípios econômicos".


A prova conclusiva do que vimos dizendo: os jovens conservadores, levando ao absurdo as liberdades burguesas, chegam a ter um programa moral igual ao dos espontaneístas. Lamentavelmente, também igual ao programa moral pessoal de alguns companheiros relevantes do partido.

Esta moral é irmã siamesa da cultura da pobreza. Nada disso quer dizer que de maneira absoluta este programa moral, inclusive a dos jovens conservadores, não possa ser útil à revolução em um momento determinado, como já veremos em outro capitulo deste trabalho.

Mas, o que sim podemos afirmar já, é que se algum velho camarada ou algum dirigente tem esta mesma moral, nele é um processo claramente degenerativo, de uma moral bolche e prole para lumpen, onde se encontra com os setores desclassificados de todas as classes, portanto é ele, o desclassificado do movimento marxista, não por isso ou talvez por isso, seja o único repugnante e canalhesco.

A Moral Guerrilheira

Contra todas essas morais e políticas da decomposição de troca, da transformação, do vazio, da falta de política e de moral, levantou-se neste pós-guerra a moral guerrilheira, uma ética e consciência dos deveres que nos deve fazer meditar muitíssimo, porque é tão objetiva, ou seja, existente, como todas as que relatamos, que se pode contar e até tocar.

Apesar de que os espontaneístas reivindicam e defendem os movimentos guerrilheiros, estão há anos luz, no extremo oposto do programa e da moral guerrilheira, ainda que profundas razões de classe façam com que tenham pontos comuns, seu caráter não proletário.

A guerrilha não é uma luta esporádica, mas ao contrário, é uma guerra longa que exige uma disciplina e organização férreas. É a negação do espontaneísmo, justamente a máxima expressão do organizado, do anti-espontâneo. É uma guerra com milhares de combatentes, como tal tem uma moral adequada a essas necessidades.

Sua moral é tão severa como sua organização e tão sacrificada como sua luta. Todo o imediato, o sexual, a alimentação, como todas as necessidades culturais imediatas ou mediatas, são sacrificadas às necessidades da luta armada, o fator decisivo que restringe ou medeia tudo, inclusive a moral.

O canalha que andasse fazendo espontaneísmo moral, que dissesse ou fizesse as monstruosidades que me escreveram, na guerrilha certamente seria fuzilado. Todos os desejos, necessidades, são subordinadas e inclusive adiadas pelas necessidades da luta guerrilheira.

Podem se passar anos sem ter relações sexuais, acossados na montanha pelas forças inimigas e quando encontram as camponesas são proibidos de ter relações com elas. Podem estar mortos de fome, mas terão que agüentar essas necessidades fisiológicas de primeira ordem, em vez de roubar, saquear algo do camponês.

Seu companheiro cairá ferido na emboscada inimiga, deverá ficar ao lado do companheiro para arrastá-lo enquanto esta vivo, para fora da emboscada com o risco da própria vida. A vida do companheiro vale muito mais que a dele, porque ele está são e pode se salvar e o companheiro ferido, mas a moral guerrilheira exige que nenhum guerrilheiro caia vivo em mãos do inimigo para evitar as torturas.


Esta moral guerrilheira levou até os últimos extremos a liquidação ou castração do imediato e do cultural, em beneficio do futuro, da luta, da guerrilha. Graças a este sentido do dever, como um de seus principais elemento, pode triunfar. Negou todas as necessidades humanas para impor a máxima necessidade, a da revolução e a guerra civil contra os exploradores.

Há elementos, ou às vezes uma linha sectária nesta moral guerrilheira, há reminiscências do puritanismo. Não é casual já que a moral guerrilheira sintetiza muitos elementos, superando-os, das morais anteriores progressivas, revolucionárias desde o cristianismo antigo, até o puritanismo, a negação do imediato e as outras necessidades humanas, em função da necessidade principal.

Desta moral podemos dizer o mesmo que dissemos de seu máximo expoente, Che Guevara, pode ter erros, tem erros, não é a solução equilibrada, total, mediada do problema, mas, essencialmente a máxima expressão objetiva, neste pós-guerra, de moral revolucionária. A única coexistente com a nossa, que ainda não tem maior peso objetivo.

Por fim, depois das canalhices habituais em um setor do partido, da falta de moral de todas as correntes burguesas, pequeno-burguesas e lumpens que estudamos, chegamos a um porto seguro, a uma "moral revolucionária", como a havia defini
do Trotsky: todas as ações estão super ditadas ao triunfo da revolução.

Nossa moral é a negação de todas as outras, ainda que possam ter pontos comuns com algumas delas em determinados momentos, mas é a prima irmã da moral guerrilheira. Já pisamos no chão, entramos no caminho da revolução, de sua política, mística, teoria e moral. Já saímos das Catacumbas e isso é importante - Que bem fez o ar fresco!


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Moralistas e Sicofantas Contra o Marxismo

O panfleto A Moral Deles e a Nossa teve pelo menos o mérito de haver obrigado certos filistinos e sicofantas a desmascararem-se completamente. Os primeiros recortes da imprensa francesa e belga que me chegaram às mãos atestam-no. O mais claro no género é a recensão surgida no jornal católico parisiense La Croix. Estes Senhores têm o seu próprio sistema e não têm vergonha nenhuma de o defender: defendem a moral absoluta, e, em primeiro lugar, o algoz Franco — é a vontade de Deus. Por detrás deles segue um Higienista Celeste que recolhe e limpa todas as porcarias e todo o lixo que deixam atrás de si. Não é de espantar que condenem como desprezável a moral de revolucionários que assumem pessoalmente a sua própria responsabilidade. Neste momento, o que nos interessa, não são os traficantes de indulgências, mas os moralistas que dispensam Deus, ao mesmo tempo que procuram substitui-lo por si próprios.

O jornal «socialista» bruxelense Le Peuple — onde vai esconder-se a virtude! — não viu nada no meu livro para além de uma receita criminosa para formar células secretas com vista ao mais imoral de todos os objectivos: o de socavar o prestígio e os rendimentos da burocracia operária belga. É claro que se poderia retorquir que tal burocracia está maculada por inúmeras traições e puras escroquerias (bastar-nos-ia recordar a história do Banco Operário!), que essa mesma burocracia asfixia todo e qualquer lampejo de pensamento crítico na classe operária, que, na sua moral prática, ela não é em nada superior à sua aliada política, a hierarquia católica. Mas, antes do mais, só pessoas muito mal educadas mencionariam tais coisas desagradáveis; em segundo lugar, todos estes senhores, sejam quais forem os seus pecados veniais, fazem grandes provisões dos mais altos princípios de moral. Henri de Man vela pessoalmente por isso e, ante a sua elevada autoridade, nós, os bolcheviques, não poderemos naturalmente esperar nenhuma indulgência.

Antes de passarmos a outros moralistas, detenhamo-nos por um momento num prière d'insérer publicado pelos editores franceses do nosso livrinho. Pela sua própria natureza, um prière d'insérer recomenda um livro, ou, pelo menos, descreve objectivamente o seu conteúdo. Aquele que nos aparece pela frente é um prospecto de tipo inteiramente diferente. Bastaria dar um só exemplo:

«Trotsky pensa que o seu partido, que já esteve no poder e que hoje se encontra na oposição, representou sempre o verdadeiro proletariado e que ele próprio representou sempre a verdadeira moral. Conclui daqui por exemplo, o seguinte: fuzilar reféns é acto que assume significados completamente diferentes consoante a ordem for dada por Estaline, ou por Trotsky...»

A citação é perfeitamente suficiente para caracterizar o comentador que se encontra nos bastidores. O autor tem o direito incontestável de controlar o prière d'insérer do seu livro. Mas, como, no caso que nos ocupa, o autor se encontrava na altura do outro lado do mar, um «amigo», aproveitando-se aparentemente da falta de informação do editor, consegue infiltrar-se no ninho alheio e nele depositar o seu ovinho —oh! um ovinho muito pequeno, quase virginal. Quem é o autor deste «prière d'insérer»? Victor Serge, que traduziu o livro e que é também o seu crítico mais severo, poderia facilmente dar-nos a informação. Não ficaria surpreendido se se viesse a descobrir que o prospecto tinha sido escrito... não por Victor Serge, é claro, mas por um discípulo que imitasse tão bem as ideias como o estilo do mestre. Mas, talvez, no fim de contas, quem o escreveu tenha sido o próprio mestre, quer dizer, Victor Serge, na qualidade de «amigo» do autor.

«Moral de Hotentote!»

Suvarine e outros sicofantas lançaram imediatamente mão desta declaração do «prière d'insérer», o que lhes poupou o trabalho de escogitarem sofismas envenenados. Se Trotsky faz reféns, está bem; se é Estaline quem o faz, está mal. Face a tal «moral de Hotentote» não é difícil arvorar uma nobre indignação. Contudo, nada é mais fácil do que demonstrar, com base em exemplo muito recente, o vazio e a falsidade desta indignação. Victor Serge tornou-se publicamente membro do POUM (Partido Operário de Unidade Marxista), partido catalão que tinha as suas próprias milícias na frente, durante a guerra civil. Na frente de batalha, como se sabe, fuzila-se e mata-se. Poderemos portanto dizer:

«Para Victor Serge, os massacres têm sentidos muito diferentes, consoante a ordem provier do general Franco, ou dos dirigentes do próprio partido de Victor Serge».

Se o nosso moralista tivesse tentado reflectir um pouco sobre o significado dos seus próprios actos, antes de se abalançar a instruir os outros, teria provavelmente dito o seguinte: mas os trabalhadores espanhóis lutavam pela emancipação do povo, enquanto os bandos de Franco lutavam por reduzi-lo à escravidão! Serge não poderá inventar outra resposta. Por outras palavras, terá que repetir o «argumento de Hotentote»(1) de Trotsky sobre os reféns.

Ainda a propósito de reféns

No entanto, é possível e até provável que os nossos moralistas se recusem a dizer francamente o que se passa e tentem tergiversar: «matar na frente de batalha, é uma coisa; fuzilar reféns, é outra muito diversa!» Como demonstraremos, este argumento é totalmente estúpido. Mas detenhamo-nos por um instante no terreno escolhido pelo nosso adversário. Dizeis então que o sistema dos reféns é imoral «em si»? Bom: era isso que queríamos saber. Mas este sistema foi praticado no decurso de todas as guerras civis da História antiga e moderna. É evidente que decorre da própria natureza da guerra civil. Só poderemos tirar uma conclusão daqui, a saber, a de que a própria natureza da guerra civil é imoral. É esse o ponto de vista do jornal La Croix que estima que é necessário obedecer aos poderes instituídos, pois o poder emana de Deus. E Victor Serge? Não tem nenhum ponto de vista ponderado e assente: depositar um ovinho em ninho alheio é uma coisa, definir a própria posição perante problemas históricos complexos, é outra muito diversa! Admito de bom grado que pessoas de moralidade tão transcendente como Azaña, Caballero, Negrin e Companhia, se oponham a que se façam quaisquer reféns no campo fascista: dos dois lados há burgueses, ligados entre si por laços materiais e familiares, e convictos de que, em caso e derrota, não só se salvarão, como preservarão também os seus meios de subsistência. À sua maneira, têm razão. Mas os fascistas, pelo seu lado, aprisionaram reféns entre os revolucionários proletários e, pelo seu lado, os revolucionários fizeram reféns na burguesia fascista, pois sabiam que ameaça representaria para si e para os seus irmãos de classe uma derrota mesmo parcial e temporária.

Victor Serge, quanto a ele, não sabe dizer exactamente o que quer: purgar a guerra civil do sistema dos reféns, ou purgar a história humana da guerra civil?

Sendo incapaz de abordar os fenómenos nas suas relações internas, o moralista pequeno-burguês pensa de maneira episódica, fragmentária, desgarrada. Artificialmente isolada, a questão dos reféns é, para ele, um problema «particular» independente das condições gerais que geram as lutas armadas entre as classes. A guerra civil é a expressão suprema da luta de classes. Tentar subordiná-la a «normas» abstractas significa, de facto, desarmar os trabalhadores face a um inimigo armado até aos dentes. O moralista pequeno-burguês é o irmão mais novo do pacifista burguês que deseja «humanizar» a guerra, proibindo a utilização de gases tóxicos, o bombardeamento de cidades abertas, etc. Politicamente, tais programas só servem para desviar as massas de pensarem na revolução como único meio de pôr fim à guerra.

O medo à opinião pública burguesa

Ensarilhado nestas contradições, o moralista poderia talvez argumentar que uma luta «aberta» e «consciente» entre os dois campos é uma coisa, mas que a captura de não-participantes nessa luta é outra. Contudo, este argumento não é mais do que uma miserável e estúpida escapatória. No campo de Franco batiam-se dezenas de milhar de homens enganados e recrutados à força. Os exércitos republicanos dispararam sobre esses infelizes cativos de um general reaccionário e mataram muitos desses homens. Seria moral ou imoral isto? E mais: a guerra moderna, com a sua artilharia de longo alcance, com o seu cortejo de destruições, de fome, de incêndios e epidemias, implica inevitavelmente a perda de centenas de milhar e de milhões de indivíduos, incluindo velhos e crianças, que não participam directamente na luta. As pessoas detidas como reféns encontram-se pelo menos ligadas por laços de classe e de solidariedade familiar a um dos campos, ou aos dirigentes desse campo. Fazendo reféns, pode-se proceder a uma selecção consciente. Um projéctil disparado por um canhão ou largado de um avião é enviado ao acaso e pode destruir facilmente não só os inimigos, mas também os amigos, os seus pais e filhos. Porque razão então os nossos moralistas isolam a questão dos reféns e fecham os olhos ao conteúdo da guerra civil no seu conjunto? Porque não são particularmente corajosos. Como homens de «esquerda», receiam romper abertamente com a revolução. Como pequeno-burgueses que são, têm medo de cortar as pontes com a opinião pública oficial. Ao condenarem o sistema dos reféns sentem-se em boa companhia — contra os bolcheviques. Mantêm covardemente o silêncio sobre a Espanha. Victor Serge protestará contra o facto de os trabalhadores espanhóis, os anarquistas e os poumistas terem feito reféns... mas só daqui a vinte anos.

O Código Moral da guerra civil

Há uma outra descoberta de Victor Serge que pertence à mesma categoria: a saber, a descoberta de que a degenerescência dos bolcheviques remonta ao tempo em que à Tcheka foi conferido o direito de decidir a sorte das pessoas à porta fechada. Serge brinca com o conceito de revolução, escreve poemas a respeito do assunto, mas é incapaz de compreender o que é uma revolução.

Os processos públicos só são possíveis em regimes estáveis. Quanto à guerra civil, é uma situação de extrema instabilidade para a sociedade e o Estado. Assim como é impossível publicar nos jornais os planos do Estado-maior, também é impossível revelar em processos públicos os pormenores das conjuras, pois estas últimas estão intimamente ligadas ao desenrolar da guerra civil. Não há dúvida absolutamente nenhuma que os processos à porta fechada aumentam consideravelmente a hipótese de erro. Isso significa muito simplesmente e isso de bom grado aceitamos, que as condições de guerra civil são pouco favoráveis ao exercício da justiça imparcial. E que será preciso dizer mais?

Propomos que Victor Serge seja nomeado presidente de uma comissão de inquérito composta, por exemplo, por Marceau Pivert, Souvarine, Waldo Frack, Max Eastman, Magdeleine Paz e outros para redigir um código moral da guerra civil. Antecipadamente, poderemos dizer que o seu carácter geral seria bem claro. Durante a guerra civil, ambos os lados comprometem-se a não fazer reféns. Os processos públicos mantêm-se em vigor. Para que se desenrolem correctamente, mantém-se total liberdade de imprensa enquanto durarem as hostilidades. Como o bombardeamento das cidades é prejudicial à saúde pública, à liberdade de imprensa e à inviolabilidade do indivíduo, proibir-se-à formalmente esse procedimento. Por outras razões diferentes ou semelhantes, proscrever-se-à a utilização da artilharia. E, como as espingardas, as granadas de mão e até as baionetas exercem incontestavelmente uma influência nefasta sobre os seres humanos assim como sobre a democracia em geral a utilização de armas, quer de fogo, quer brancas, é formalmente proibida durante o conflito.

Código maravilhoso! Magnífico monumento à honra da retórica de Victor Serge e Magdeleine Paz! Contudo, enquanto este código continuar a não ser aceite como regra de conduta por todos os opressores e oprimidos, as classes em luta procurarão alcançar a vitória por todos os meios, enquanto os moralistas pequeno-burgueses continuarão a errar na confusão entre os dois campos, como fizeram até aqui. Subjectivamente, simpatizam com o oprimido — ninguém o duvida. Objectivamente, continuam prisioneiros da moral da classe dirigente e procuram impô-la aos oprimidos em vez de os auxiliarem a elaborar a moral de insurreição.

As massas não são para aqui chamadas!

Victor Serge pôs a nu de passagem aquilo que teria provocado a derrocada do partido bolchevique: um centralismo excessivo, uma desconfiança relativamente à luta ideológica, uma ausência de espírito libertário. Mais confiança nas massas, mais liberdade! Tudo isto está fora do espaço e do tempo. Mas as massas não são de maneira nenhuma homogéneas! Há massas revolucionárias; há massas passivas, há massas reaccionárias. As mesmas massas são inspiradas por disposições e objectivos diferentes em diferentes períodos. É justamente por esta razão que é indispensável uma organização centralizada da vanguarda. Só um partido que exerça a autoridade que adquiriu é capaz de superar as flutuações próprias das massas. Recobrir as massas com os traços da santidade e reduzir o próprio programa a uma «democracia» amorfa, corresponderia a dissolver-nos na classe tal como ela é, a transformarmo-nos de vanguarda em guarda atrasada e, do mesmo modo, a renunciarmos às tarefas revolucionárias. Por outro lado, se a ditadura do proletariado significa algo é antes do mais que a vanguarda da classe se encontra armada com os recursos do Estado para repelir os perigos, inclusivamente os que emanam das próprias camadas atrasadas do proletariado. Tudo isto é elementar; tudo isto foi demonstrado pela experiência da Rússia e confirmado pela experiência da Espanha.

Mas todo o segredo está em que, ao pedir a liberdade para as «massas», na realidade Victor Serge está a pedir a liberdade para si e para os seus pares; quer dizer, pede para ser libertado de todos os controles, de toda e qualquer disciplina e, inclusivamente, se possível, de toda e qualquer crítica a seu respeito. As massas não são para aqui chamadas! Quando o nosso «democrata» corre da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, semeando a confusão e a dúvida, julga-se a encarnação de uma salutar liberdade de pensamento. Mas quando nós avaliamos dum ponto de vista marxista as vacilações dum intelectual pequeno-burguês desiludido, parece-lhe isto um ultrage à sua individualidade. Alia-se então a todos os confusionistas para partir em cruzada contra o nosso despotismo e o nosso sectarismo.

A democracia no interior de um partido não é um objectivo em si. Deve ser completada e ligada pelo centralismo. Para um marxista a questão foi sempre esta: democracia, para quê, para que programa? O quadro do programa é simultaneamente o quadro da democracia. Victor Serge pedia que a Quarta Internacional concedesse liberdade de acção a todos os confusionistas, aos sectários e aos centristas do POUM, do tipo Vereecken, ou Marceau Pivert, aos burocratas conservadores do tipo Sneevliet, ou a simples aventureiros género R. Molinier. Por outro lado, Victor Serge auxiliou sistematicamente as organizações centristas a expulsar das suas fileiras os partidários da Quarta Internacional. Nós conhecemos perfeitamente este tipo de democracia; é complacente, acomodatícia, conciliadora... para com a direita; ao mesmo tempo, é exigente, mal-intencionada e pérfida...para com a esquerda. Representa pura e simplesmente o regime de auto-defesa do centrismo pequeno-burguês.

A luta contra o marxismo

Se Victor Serge adoptasse uma atitude séria para com os problemas teóricos, teria certos escrúpulos em apresentar-se como «inovador» e limitar-se-ia a remeter-se para Bernstein, Struvé e todos os revisionistas do século passado que tentaram enxertar o kantismo no marxismo, ou, por outras palavras, subordinar a luta de classes do proletariado a princípios que se apresentam como sendo-lhes superiores. Como fez Kant, eles descrevem o «imperativo categórico» (a ideia do dever) como uma norma absoluta da moral, válida para toda a gente. Na realidade era uma questão de dever para com a sociedade burguesa. À sua maneira, Bernstein, Struvé, Vorlander tinham uma atitude séria para com a teoria. Pediam abertamente um regresso a Kant. Victor Serge e os seus pares não sentem a menor responsabilidade para com o pensamento científico. Atêm-se a ilusões, a insinuações, quando muito a generalizações literárias. No entanto, embora as suas ideias sejam totalmente falsas, parece que vão reunir-se às fileiras de uma velha causa desacreditada: a de submeter o marxismo ao kantismo, a de paralisar a revolução socialista por meio de normas «absolutas», que representam de facto generalizações filosóficas dos interesses da burguesia — não da burguesia actual, é certo, mas da burguesia defunta da era do livre-câmbio e da democracia. A burguesia imperialista observa essas normas ainda menos do que a sua avó liberal. Mas considera de olhar benevolente as tentativas dos pregadores pequeno-burgueses para introduzirem a confusão, a perturbação e a hesitação nas fileiras do proletariado revolucionário. O objectivo essencial, não só de Hitler, mas também dos liberais e dos democratas é o de desacreditarem o bolchevismo, num momento em que a sua legitimidade ameaça tornar-se perfeitamente clara para as massas. O bolchevismo, o marxismo — eis o inimigo!

Quando o «irmão» Victor Basch, grão-sacerdote da moral democrática fabricou, com o auxílio do seu «irmão» Rosenmark, um documento falso para defender os processos de Moscovo, desmascarou-se publicamente. Provada a sua falsificação, bateu no peito e exclamou: «Então eu sou parcial? Eu sempre denunciei o terror de Lenine e de Trotsky!» Basch punha assim a nu duma forma flagrante o móbil profundo dos moralistas da democracia: algumas pessoas podem calar-se a respeito dos processos de Moscovo, outras podem atacar os mesmos processos, outros ainda podem defender esses mesmíssimos processos; mas a sua comum preocupação é a de utilizar os supracitados para condenarem a «moral» de Lenine e de Trotsky, quer dizer, os métodos da revolução proletária. Neste domínio são todos irmãos.

No prospecto escandaloso que acima foi citado, declara-se que eu desenvolvo os meus pontos de vista sobre a moral «apoiando-(me) em Lenine». Pode pensar-se que esta frase mal definida, reproduzida por outras publicações, significa que eu desenvolvo os princípios teóricos de Lenine. Mas, ao que sei, Lenine não escreveu nada sobre a moral. De facto, Victor Serge queria dizer algo muito diferente, a saber, que as minhas ideias são uma generalização da prática de Lenine, o «amoralista». Ele procura desacreditar a personalidade de Lenine com base nos meus juízos e os meus juízos com base na personalidade de Lenine. Com isto, mais não faz do que adular a tendência geral reaccionária dirigida contra o bolchevismo e o marxismo no seu conjunto.

Souvarine o sicofanta

Ex-pacifista, ex-comunista, ex-trotsquista, ex-comunista-democrático, ex-marxista... ex-Souvarine, quase se poderia dizer, Souvarine, ataca a revolução proletária e os revolucionários com tanto mais descaramento quanto não sabe o que quer. Este homem gosta de coleccionar citações, documentos, vírgulas e aspas, empilhar dossiers e, ao demais, sabe manejar a pena. De início, julgou que esta bagagem lhe duraria para toda a vida; mas depressa foi obrigado a reconhecer que além disso precisava de saber pensar. O seu livro sobre Estaline, apesar da abundância de citações e dos factos interessantes que aduz, é um testemunho da sua própria indigência. Souvarine não compreende o que é a revolução nem o que é a contra-revolução. Aplica ao processo histórico os critérios dum pequeno raciocinador que se sente ferido para sempre pela humanidade pecadora. A desproporção entre o seu espírito crítico e a sua importância criadora corrói-o como um ácido. Daí a sua constante exasperação e a sua falta da mais elementar honestidade na apreciação das ideias, dos homens e dos acontecimentos, tudo recoberto por um moralismo ressequido. Como todos os cínicos e os misantropos, Souvarine sente-se organicamente atraído pela reacção.

Terá Souvarine rompido realmente com o marxismo? Nunca o ouvimos falar disso. Ele prefere o equívoco: é o seu elemento natural. Na sua crítica ao meu panfleto, escreve: «Trotsky, mais uma vez, monta o cavalicoque da luta de classes, seu brinquedo favorito...» Para o marxista de outrora, a luta de classes é... o cavalicoque de Trotsky». Não é de surpreender que Souvarine pelo seu lado tenha preferido cavalgar o cão morto da moral eterna. À concepção marxista contrapõe ele «o sentido da justiça... sem consideração pelas diferenças de classes». Seja como for, é reconfortante saber-se que a nossa sociedade se encontra baseada num «sentido da justiça». Na próxima guerra, Souvarine irá sem dúvida expor a sua teoria aos soldados das trincheiras; enquanto isso, pode-se ir entretendo a fazer outro tanto com os inválidos da guerra que passou, com os desempregados, as crianças abandonadas e as prostitutas. Confessamos desde já que se ele saísse um pouco arranhado desta história, o nosso «sentido da justiça» não estaria do seu lado.

As críticas feitas por este apologista desavergonhado da justiça burguesa «sem entrar em linha de conta com as diferenças de classe» baseiam-se integralmente no «prière d'insérer» inspirado por Victor Serge. Este último, pelo seu lado, nas suas «teorizações» não vai além de uma série de empréstimos que bebe em Souvarine que, pelo menos, possui a vantagem de exprimir o que Victor Serge não ousa dizer.

Com fingida indignação — nada há de sincero nele — Souvarine escreve que, dado que Trotsky condena a moral dos democratas, dos reformistas, dos estalinistas e dos anarquistas, disso decorre que o único representante da moral é «o partido de Trotsky», e, como esse partido «não existe», em última análise, a encarnação da moral é o próprio Trotsky. Como evitar uma risada perante tais propósitos? Aparentemente, Souvarine imagina que é capaz de estabelecer a distinção entre o que existe e o que não existe. Trata-se de assunto simples enquanto o que está em jogo não vai além dos ovos mexidos ou dum par de suspensórios. Mas à escala do processo histórico, tal distinção escapa ao discernimento de Souvarine. «O que existe», nasce ou morre, desenvolve-se ou desintegra-se; o que existe só pode ser compreendido por aquele que lhe compreende as tendências internas.

Poder-se-ia contar pelos dedos da mão o número de pessoas que mantiveram uma posição revolucionária quando rebentou a última guerra. Toda a cena política oficial se encontrava praticamente recoberta pelas diversas nuances do chauvinismo. Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Lenine pareciam indivíduos isolados, impotentes. Mas haverá a mínima dúvida de que a sua moral era superior à moral bestial da «união sagrada»? A política revolucionária de Liebknecht não era de maneira nenhuma «individualista», como na altura parecia ao filistino patriota médio. Pelo contrário, Liebknecht, e só ele, reflectia e prefigurava as profundas tendências revolucionárias das massas. A evolução posterior dos acontecimentos confirmaram isso integralmente. Não temer hoje uma ruptura completa com a opinião pública oficial, de forma a conquistar o direito de amanhã vir a exprimir as ideias e os sentimentos das massas insurgidas, eis um modo particular de existência que difere da existência empírica dos formalistas pequeno-burgueses. Todos os partidos da sociedade capitalista, todos os moralistas e os sicofantas perecerão sob os escombros da catástrofe eminente. O único partido que sobreviverá será o partido da revolução socialista mundial, muito embora pareça hoje em dia inexistente para os racionalistas cegos, exactamente como lhes havia parecido inexistente o partido de Lenine e de Liebknecht durante a última guerra.

Os revolucionários e os portadores de infecções

Engels escreveu um dia que ele e Marx tinham ficado toda a vida em minoria e que se «tinham sentido muito bem». Os períodos em que o movimento das classes oprimidas se eleva ao nível das tarefas gerais da revolução representam as excepções muito raras da história. Bem mais frequentes do que as vitórias são as derrotas dos oprimidos. Após cada derrota vem um período longo de reacção que remete os revolucionários para um estado de cruel isolamento. Em tais períodos, os pseudo-revolucionários, os «cavaleiros de uma hora», como diz um poeta russo, ou traem abertamente a causa dos oprimidos, ou correm em busca da forma de salvação que lhes permita evitar a ruptura com um ou outro dos campos em presença. Na nossa época é inconcebível encontrar-se uma forma conciliadora no domínio da economia política ou da sociologia; as contradições de classe há muito que destruíram a fórmula de «harmonia» defendida pelos liberais e pelos reformistas democratas. Resta o domínio da religião e da moral transcendente. Os «socialistas-revolucionários» russos tentaram salvar a democracia por meio da aliança com a Igreja. Marceau Pivert substitui a igreja pela maçonaria. Aparentemente, Victor Serge ainda não aderiu a nenhuma loja, mas não sente qualquer dificuldade em encontrar uma linguagem contra o marxismo semelhante à de Marceau Pivert
Duas classes decidem da sorte da humanidade: a burguesia imperialista e o proletariado. O último recurso da burguesia é o fascismo, que substitui os critérios históricos e sociais por normas biológicas e zoológicas, de forma a libertar-se de toda e qualquer restrição na luta pela propriedade capitalista. A civilização só pode ser salva pela revolução socialista. Para realizar essa transformação completa, o proletariado necessita de todas as suas forças, de toda a sua determinação, de toda a sua audácia, de toda a sua paixão implacável. Sobretudo, deverá estar totalmente liberto das ficções da religião, da «democracia» e da moral transcendental, que são outras tantas cadeias forjadas pelo inimigo para o dominar e o reduzir à escravidão. Só e moral aquilo que prepara o proletariado para o derrube total e definitivo da bestialidade capitalista, e nada mais. A salvação da revolução — eis a lei suprema.

Uma compreensão clara da correlação entre as duas classes — a burguesia e o proletariado na época da sua luta mortal — revela-nos o significado objectivo do papel dos moralistas pequeno-burgueses. O seu traço essencial é a impotência: impotência social resultante da degradação económica da pequena-burguesia; Impotência ideológica devido ao medo desta classe face ao monstruoso ímpeto da luta das classes Daqui nasce a tendência do pequeno-burguês educado ou ignorante, para entravar a luta de classes. Quando não consegue atingir esse objectivo por meio da moral eterna — e isso não o pode conseguir — o pequeno- burguês lança-se nos braços do fascismo que entrava a luta de classes por meio de mitos e do machado do carrasco O moralismo de Victor Serge e dos seus pares é uma ponte que liga a revolução com a reacção. Souvarine já se encontra do outro lado da ponte. A menor concessão a estas tendências significa o principio da capitulação perante a reacção. Que estes portadores de infecções vão inocular as normas da moral em Hitler, Mussolini, Chamberlain e Daladier. Quanto a nós, o programa da Revolução Proletária basta-nos.

Coyoacan, 9 de Junho de 1939