Segunda Parte
Capítulo VIII - O Filisteu e o Revolucionário
Numa das numerosas antologias consagradas a Lenine, chamou-me a atenção um artigo do escritor inglês Wells com o seguinte título: "O sonhador do Kremlin".(1)
OS compiladores dessa antologia observam que "até espíritos avançados como o de Wells foram incapazes de apreender o sentido da revolução proletária que teve lugar na Rússia."
Parece não ser este um motivo suficiente para incluir um artigo de Wells num volume dedicado ao chefe dessa revolução. Não quero porém discutir com os compiladores sobre este ponto: quanto a mim, li com certo interesse algumas das páginas de Wells; com certo interesse, digo, mas ver-se-á mais adiante que o autor não tem nisso qualquer interferência.
Revejo nitidamente a época em que Wells visitou Moscovo. Foi durante o Inverno de fome e de frio de l920-l92l. Sentia-se no ambiente o pressentimento, a inquietação das complicações que a Primavera deveria trazer. Moscovo esfomeada encontrava-se soterrada em montanhas de neve. A política económica estava em vésperas duma alteração brusca.
Recordo-me muito bem da impressão que Vladimir Ilitch guardou da sua conversa com Wells:
- Que burguês! Que filisteu, repetia, levantando os braços por cima da escrivaninha, rindo e suspirando, com esse riso e esses suspiros que exprimiam nele uma certa vergonha secreta sentida relativamente a outrem.
- Ah! Que filisteu! repetia, retomando a conversa. Quando me disse isto, tinha chegado o momento em que se iria abrir a sessão do bureau político; e, em suma, Lenine limitou-se a repetir várias vezes a apreciação sobre Wells que acabo de relatar. Mas ela era mais que suficiente. Na verdade, eu não tinha lido muita coisa de Wells e nunca o vira. Fazia, contudo, uma ideia bastante clara desse socialista de salão, pertencente à Fabian Society(2), desse literato de grande fantasia e utopia que acabava de lançar uma vista de olhos sobre a experiência comunista. A exclamação de Lenine, e sobretudo o tom em que fora proferida, completavam sem dificuldade a minha impressão.
E eis que um artigo de Wells, introduzido por vias quase providenciais na compilação de textos sobre Lenine, despertava
na minha memória este grito: "Que filisteu!", recheando-o de um conteúdo vivo. Pois se Lenine está praticamente ausente do artigo de Wells a ele consagrado, em compensação lá encontraremos Wells em pessoa.
Comecemos pelo princípio, por essa queixa de Wells que lhe serve de preâmbulo à matéria: o pobre foi obrigado - imaginem só - a empreender demoradas diligências para obter uma entrevista com Lenine; isso "enervou-o extremamente". E porquê, expliquem-me por favor? Seria Lenine que chamara Wells? Comprometera-se a recebê-lo? Poderia perder tempo? Muito pelo contrário, nessas duras jornadas de então, cada minuto do seu tempo estava tomado e contado; não lhe era fácil encontrar uma hora para receber Wells. Até um estranho o devia compreender sem dificuldade.
Mas infelizmente, Wells, na sua qualidade de estrangeiro ilustre e apesar de todo o seu "socialismo" de Inglês muito conservador e de feição imperialista, encontrava-se imbuído da certeza de que, ao visitar Lenine, prodigava uma grande honra ao chefe, bem como ao seu país de bárbaros.
Desde a primeira à última linha, nota-se intensamente esta autosuficiência pouco justificada.
A descrição psicológica de Lenine começa, como era de esperar, por uma grande descoberta, uma revelação. Fiquem a saber que Lenine "não era, de forma alguma, um homem de letras".
Com efeito, quem melhor do que Wells, profissional de Literatura, poderia decidir sobre este assunto? "Os curtos e violentos panfletos que aparecem em Moscovo com a sua assinatura (!) estão cheios de considerações falsas sobre a psicologia dos operárias do Ocidente!.. Exprimem muito pouco o fundo real do pensamento de Lenine."
O respeitável gentleman ignora, bem entendido, que Lenine é o autor de grande número de obras duma importância capital sobre a questão agrária, sobre as teorias económicas, a sociologia, a filosofia.
Wells conhece apenas um certo número de "curtos e violentos panfletos"; afirma que aparecem "com a assinatura de Lenine", dando assim a entender que são escritos por outros. Quanto ao "verdadeiro fundo do pensamento de Lenine", não é possível encontrá-lo nas dezenas de tomos de que é autor, mais sim na conversa de uma hora a que condescendeu generosamente o muito ilustre e muito sábio viajante da Grã-Bretanha.
Podia esperar-se, pelo menos, que Wells soubesse descrever de modo interessante a fisionomia de Lenine, e se tivesse dado um pouco de relevo ao esboço poderíamos perdoar-lhe todas as banalidades inspiradas pelo seu socialismo da Fabian Society. Mas não se encontra no artigo qualquer vestígio disso.
"Lenine tem um rosto agradável, moreno (!), cuja expressão muda constantemente; tem um sorriso vivo..."
"Lenine parece-se muito pouco com as suas fotografias..." "Gesticulava um pouco durante a conversa..."
Para além destas fórmulas banais de um repórter habituado a preencher as colunas dos jornais burgueses, Wells nada soube dizer.
Acresce ainda ter descoberto que a testa de Lenine lembra o crânio alongado e ligeiramente assimétrico de Artur Balfour e que, no seu conjunto, "é um homem muito pequeno: quando está sentado na borda da cadeira, os pés mal tocam no chão".
No que se refere ao crânio de Artur Balfour, nada podemos dizer desse objecto venerável, admitindo sem custo que seja alongado. Mas, quanto ao resto, que indecente impropriedade de termos! Lenine tinha os cabelos de um louro arruivado; é, consequentemente impossível atribuir-lhe uma tez "morena". Era de estatura média, talvez até ligeiramente abaixo da média; mas quanto a produzir a impressão de "um homem muito pequeno" que estando sentado mal chegava ao chão, isso só pôde suceder a Wells, o qual chegava, qual Gulliver da civilização, ao Norte povoado de comunistas liliputianos.
Wells notou também que Lenine, durante os silêncios da conversa, tinha o hábito de levantar uma das pálpebras com um dedo:
"Este hábito, observa o sagaz escritor, provém talvez de um defeito de visão."
Nós conhecíamos esse gesto, Lenine fazia-o quando se encontrava perante um estrangeiro, um homem com quem nada tinha em comum: lançava então um olhar vivo ao personagem, através dos dedos de uma mão, colocada como viseira na frente do rosto. O "defeito de visão" de Lenine derivava do facto de que então ele lia no pensamento do seu interlocutor, apercebia-se da sua importância enfática e limitada, da sua presunção e ignorância de "civilizado" e, seguidamente, tendo absorvido esta imagem, abanava a cabeça e repetia: "Que filisteu! Que monstro pequeno-burguês!"
O camarada Rothstein assistia à conversa, e Wells fez, a este respeito, uma descoberta admirável: segundo ele, a presença desta testemunha "caracteriza a situação actual na Rússia"; Rothstein - ouçam isto e não vos espanteis - controlava Lenine em nome do Comissariado dos Negócios Estrangeiros devido à excessiva sinceridade de Lenine e à sua imprudência de sonhador. Que dizer desta observação impagável! Ao entrar no Kremlin, Wells trazia no espírito toda a porcaria jornalística fabricada pela burguesia internacional; o seu olhar perspicaz - sem "defeito", evidentemente - descobria no gabinete de Lenine tudo o que tinha apreendido da leitura ,do Times ou de qualquer outro reservatório de bisbilhotices devotas e graciosas.
Mas como foi então essa conversa? A este respeito, Wells apenas nos transmite lugares-comuns sem valor, que nos mostram como é lamentável, como é pobre o reflexo do pensamento de Lenine nos crânios de que não temos, aliás, de contestar a simetria.
Wells tinha vindo com a ideia de que "teria de discutir com um convicto doutrinador, marxista, mas o que sucedeu foi completamente diferente". Isto não nos admira. Sabemos já que "o fundo do pensamento de Lenine" não se evidenciou neste período de mais de trinta anos que preenche a sua actividade política, a sua actividade de escritor, mas sim numa conversa com um bravo burguês britânico. "Tinham-me dito, continua Wells, que Lenine gostava de dar lições, mas absteve-se de o fazer comigo." De facto, como dar lições a um gentleman tão impregnado do elevado sentimento da sua dignidade? De um modo geral não é verdade que Lenine gostasse de dar lições. O que é verdadeiro é o facto de ele saber falar de uma forma muito instrutiva. Contudo, apenas falava assim quando julgava o seu interlocutor capaz de aprender alguma coisa. Nesse caso, não poupava tempo, nem esforços. Mas perante o maravilhoso Gulliver, que se encontrava, graças ao acaso, no gabinete do "pequeno homem", Lenine deve ter adquirido, após dois ou três minutos de conversa, esta convicção capaz de inspirar a entrada do Inferno: "Perdei toda a esperança..."
Falaram das grandes cidades. Wells confessa-nos que na Rússia teve pela primeira vez essa ideia notável de que o aspecto das grandes cidades depende sobretudo do movimento das lojas e dos mercados. Comunicou a descoberta ao seu interlocutor. Lenine "reconheceu" que num regime Comunista as cidades deverão diminuir consideravelmente de extensão. Wells "indicou" a Lenine que a restauração das cidades exigiria um trabalho formidável e que grande parte dos maiores edifícios de Petrogrado conservaria apenas o valor de monumentos históricos. Lenine concordou com esta incomparável conclusão de Wells.
"Parece-me, acrescenta este, que foi agradável para ele conversar com um homem que compreendia as inevitáveis consequências do colectivismo, consequências essas que escapam à compreensão de grande número dos seus adeptos".
Têm aqui a dimensão do nível de Wells.
Ele considera como resultado da sua extraordinária perspicácia a descoberta de que, num regime comunista, as enormes concentrações urbanas actuais deverão desaparecer e que muitos monstros da arquitectura capitalista dos nossos dias apenas terão o valor de monumentos históricos (a não ser que não mereçam a honra de ser destruídos).
Com efeito, como poderiam esses pobres comunistas (esses "fastidiosos fanáticos da luta ,de classes", no dizer de Wells) chegar a semelhantes descobertas - que foram, como sabemos, explicadas há muito, num comentário de divulgação acrescentado ao antigo programa da social-democracia alemã? Não diremos - pois não se devem minimizar as pessoas - que tudo isto era já conhecido dos utopistas clássicos do socialismo.
Compreendeis agora, assim o espero, o motivo por que Wells, no decorrer da conversa, "não notou de modo algum" esse famoso riso de Lenine de que lhe tinham falado tanto: é evidente que Lenine não tinha vontade de rir. Temo até que o seu movimento reflexo não o tenha conduzido a um extremo completamente oposto ao do riso. Porém Ilitch teve de servir-se então daquela mão tão ágil e tão inteligente que sabia sempre esconder a um interlocutor demasiado ocupado consigo próprio um bocejar malcriado.
Como vimos, Lenine não deu nenhuma lição a Wells, por razões que julgamos totalmente satisfatórias. Em compensação, Wells insistiu ainda mais em instruir Lenine. Esforçou-se por fazê-lo compreender essa ideia absolutamente nova de que, para o êxito do socialismo, "não bastava reconstruir o lado material da existência, mas que era preciso transformar a psicologia de todo o povo". Informou Lenine que "os Russos, pela sua natureza, eram individualistas e comerciantes". Explicou-lhe que o comunismo "avançava demasiado depressa", destruindo antes de poder construir, assim como outras verdades desta espécie.
"Isto conduziu-nos, diz Wells, ao ponto essencial, onde nos encontrámos separados, isto é, estabelecemos uma diferença entre o colectivismo evolucionista e o marxismo.
Por colectivismo evolucionista devemos entender uma mistura ao gosto da Fabian Society, onde entram o liberalismo, a filantropia, uma Legislação social utilizando meios tão económicos quanto possíveis e as meditações dominicais sobre um futuro melhor.
O próprio Wells formula da seguinte maneira a essência do seu colectivismo evolucionista:
" Creio que, através de um sistema regularmente estabelecido de educação da sociedade, o capitalismo actual pode civilizar-se e transformar-se num regime colectivo."
Omite dizer-nos quem se encarregará de aplicar "um sistema de educação" e a quem esse sistema deverá ser aplicado: deveremos pensar que os lordes de crânio alongado estabelecerão o seu sistema para o proletariado inglês, ou que, ao contrário, o proletariado passará por sobre os crânios dos lordes? Oh! não, tudo menos esta última solução! (Para que serviriam os membros instruídos da Fabian Society, os homens de pensamento, de imaginação desinteressada, os gentlemen e as ladies, o Snr. Wells e a Snr.ª Snowden, senão para civilizar a sociedade capitalista produzindo de forma regular e sistemática o que se esconde nos seus crânios; para que serviriam senão para transformar esta sociedade num Estado colectivo, dum modo progressivo, tão razoável e tão feliz que até a dinastia real da Grã-Bretanha se não apercebe disso?
Eis o que Wells explicava a Lenine; e Lenine teve de ouvir isto tudo.
"Para mim - observou Wells com indulgência - conversar com esse extraordinário homenzinho constituiu uma verdadeira descontracção (!)."
E para Lenine? Que prova de paciência! Pronunciou, sem dúvida, em aparte, algumas palavras russas muito expressivas e extremamente saborosas. Absteve-se de as traduzir para o inglês, não só porque o seu vocabulário nesta língua não devia ser muito extenso mas também por motivos de delicadeza. Ilitch era muito bem educado. Não pôde limitar-se, todavia, a um silêncio cortês.
"Foi forçado - relata Wells - a replicar-me que o capitalismo moderno é incuravelmente ávido e pródigo, sendo impossível ensinar-lhe o que quer que seja."
Lenine citou um certo número de factos que são, aliás, sublinhados no novo livro de Money: o capitalismo destruiu ,os molhes nacionais ingleses, não permitiu a exploração razoável das minas de carvão, etc. Ilitch conhecia o idioma dos factos e dos números.
"Confesso - conclui subitamente o Snr. Wells - que me era muito difícil discutir com ele". O que significa isto? Não será o início da capitulação do colectivismo evolucionista perante a lógica do marxismo? Não, de forma alguma. "Perdei toda a esperança..." Esta frase. à primeira vista inesperada. não surgiu por acaso; faz parte de um sistema; tem um sentido rigorosamente conforme ao espírito da ,Fabian Society. do colectivismo evolucionista, da pedagogia inglesa. Foi feita para servir os capitalistas, os banqueiros, os lordes e os seus ministros ingleses. Wells disse-lhes: "Estais a ver, portais-vos tão mal, destruís tantas coisas, sois tão interesseiros, que eu, numa discussão com o sonhador do Kremlin, tive muita dificuldade em defender o princípio do meu colectivismo evolucionista. Tornai-vos mais razoáveis, fazei semanalmente as vossas abluções segundo o ritmo da Fabian Society, civilizai-vos, marchai na senda do progresso..."
A confissão mal humorada de Wells não marca pois um princípio de autocrítica; ele prossegue simplesmente esse trabalho de educação da sociedade capitalista cujos processos aperfeiçoados, cujos princípios morais e "fabianizados" vimos postos em prática após a guerra, especialmente através da paz de Versalhes.
É com um tom protector que Wells parece aprovar Lenine, quando declara: "A sua fé na causa que defende é ilimitada." Eis o que é, com efeito, indiscutível. Lenine tinha uma reserva de fé mais do que suficiente. Isto é tão certo como afirmar que dois e dois são quatro: Esta fé inquebrantável dava-lhe mesmo a paciência de conversar, durante esses terríveis meses do bloqueio, com todos os estrangeiros que podiam servir de elo, mesmo indirecto, entre a Rússia e o Ocidente.
Foi assim que Lenine conversou com Wells. Falava uma linguagem completamente diferente quando recebia operários ingleses. Estava com eles em completa comunhão. Ensinava então, instruindo-se ao mesmo tempo. Porém, com Wells a conversa apenas podia ter um carácter diplomático um pouco forçado.
"A conversa terminou com vagas generalidades" - nota o escritor inglês. Por outras palavras, a partida que se jogou entre o colectivismo evolucionista e o marxismo terminou com um empate. Wells voltou para a Grã-Bretanha; Lenine ficou no Kremlin. Wells redigiu para o seu público burguês uma "correspondência" marcada pela petulância; Lenine abanando a cabeça, repetia: "Eis um belo burguês! Ui-ui-ui! Que filisteu!"
Perguntar-me-ão talvez ,por que motivo e com que fim me detive, passados quatro anos, sobre ,este insignificante artigo de Wells. O facto do artigo ter sido reproduzido numa das colectâneas consagradas à memória de Lenine não constitui, por certo, uma razão suficiente. Também não posso justificar-me dizendo que escrevi isto em Sukhum, onde me encontrava em tratamento. Tinha, contudo, razões mais sérias para o fazer.
Não vemos nós actualmente no poder, em Inglaterra, o partido de Wells dirigido pelos representantes extremamente esclarecidos do colectivismo evolucionista? E parece-me ter apercebido, talvez com bastante clareza, que o artigo de Wells consagrado a Lenine desvendava, melhor do que qualquer outro, a alma secreta dos dirigentes do partido operário inglês: ao fim e ao cabo, Wells não é o último entre eles.
Como essas pessoas atrasam ao arrastarem o fardo de chumbo dos preconceitos burgueses! A sua presunção vaidosa - restos do importante papel desempenhado outrora pela burguesia inglesa - não lhes permite reflectir, como deveriam, na existência de outros povos, nas novas correntes de ideias, no curso da História que os ultrapassa. Limitados, rotineiros, empíricos, cegos pelas vendas que a sociedade burguesa aplica à opinião, esses senhores passeiam pelo mundo as suas importantes pessoas e os seus preconceitos, tendo o talento de só se aperceberem deles próprios no meio de tudo o que os rodeia.
Lenine viveu em todos os países da Europa, aprendeu línguas estrangeiras, leu, estudou, ouviu, penetrou, comparou, generalizou.
Quando se encontrou à cabeça de uma grande revolução, não deixou passar nenhuma ocasião de se informar cuidadosamente, conscienciosamente; interrogou os homens, os factos. Nunca se cansava de seguir pelo pensamento a existência do mundo inteiro. Lia e falava correntemente o alemão, o francês, o inglês; lia o italiano. Nos últimos anos da sua vida, esmagado pelo trabalho, encontrava ainda a possibilidade, durante as sessões do bureau político, de estudar às escondidas a gramática checa, para estar apto a compreender mais rapidamente o movimento operário da Checoslováquia; surpreendemo-lo várias vezes nessa ocupação e ele ria e procurava justificar-se, não sem uma certa confusão.
Mas eis que Wells se encontra na sua frente, Wells que encarna essa raça de pequeno-burgueses falsamente cultos, infinitamente limitados, que têm olhos para não ver, que pensam não ser útil aprender seja o que for, pois estão de posse de uma bela herança de preconceitos.
Por outro lado, o Snr. Mac Donald, que representa o mesmo tipo sob o aspecto mais grave e mais aborrecido do puritano, tranquiliza a opinião pública burguesa: combatemos contra Moscovo e vencemos. Venceram Moscovo? Na verdade, são estes os pobres "homenzinhos", embora tenham uma estatura elevada! Até agora, depois de tudo quanto se passou, nem mesmo sabem prever o seu dia de amanhã. Os homens de negócios do liberalismo e do partido conservador manobram facilmente esses pedantes socialistas "da evolução" que se encontram no poder; comprometem-nos ,e preparam conscientemente a sua queda, não só a queda do seu ministério, mas a sua ruína política. E, contudo, preparam também, embora inconscientemente, a chegada ao poder dos marxistas ingleses. Sim, exactamente, dos marxistas, desses "fastidiosos fanáticos da luta de classes"... Pois, também na Inglaterra, irá ter lugar a revolução social segundo as leis definidas por Karl Marx.
Wells, com um humor que lhe é peculiar e que tem a consistência do pudim, ameaçou um dia pegar num grande par de tesouras e tosquiar Marx, privando-o da sua cabeleira e da sua barba de "doutrinário", anglicizando-o, respeitabilizando-o, fabianizando-o. Contudo, ficou-se por aí, pois não é um Wells que poderá modificar Marx. Lenine também ficará igual a si próprio depois de ter suportado durante uma hora os efeitos da navalha de Wells. E temos a ousadia de afirmar que, num futuro que talvez não seja muito longínquo, é provável que se possa ver elevar em Londres, na Trafalgar Square, por exemplo, duas figuras ,de bronze, ao lado uma da outra: Karl Marx e Vladimir Lenine. Os proletários ingleses dirão então aos seus filhos: "Que sorte que os homenzinhos do Labour Party não tenham conseguido tosquiar nem fazer a barba a estes dois gigantes!"
Enquanto se espera por esse dia, que procurarei ver, cerro os olhos por um instante e distingo nitidamente a imagem de Lenine, na cadeira de braços em que se encontrava à frente de Wells, e ouço a frase pronunciada no dia seguinte ou no próprio dia da entrevista com o escritor inglês, essa frase dita numa espécie de gemido e com tanta bonomia: "Que burguês! que filisteu!"
6 de Abril de l924
Capítulo VIII - O Filisteu e o Revolucionário
Numa das numerosas antologias consagradas a Lenine, chamou-me a atenção um artigo do escritor inglês Wells com o seguinte título: "O sonhador do Kremlin".(1)
OS compiladores dessa antologia observam que "até espíritos avançados como o de Wells foram incapazes de apreender o sentido da revolução proletária que teve lugar na Rússia."
Parece não ser este um motivo suficiente para incluir um artigo de Wells num volume dedicado ao chefe dessa revolução. Não quero porém discutir com os compiladores sobre este ponto: quanto a mim, li com certo interesse algumas das páginas de Wells; com certo interesse, digo, mas ver-se-á mais adiante que o autor não tem nisso qualquer interferência.
Revejo nitidamente a época em que Wells visitou Moscovo. Foi durante o Inverno de fome e de frio de l920-l92l. Sentia-se no ambiente o pressentimento, a inquietação das complicações que a Primavera deveria trazer. Moscovo esfomeada encontrava-se soterrada em montanhas de neve. A política económica estava em vésperas duma alteração brusca.
Recordo-me muito bem da impressão que Vladimir Ilitch guardou da sua conversa com Wells:
- Que burguês! Que filisteu, repetia, levantando os braços por cima da escrivaninha, rindo e suspirando, com esse riso e esses suspiros que exprimiam nele uma certa vergonha secreta sentida relativamente a outrem.
- Ah! Que filisteu! repetia, retomando a conversa. Quando me disse isto, tinha chegado o momento em que se iria abrir a sessão do bureau político; e, em suma, Lenine limitou-se a repetir várias vezes a apreciação sobre Wells que acabo de relatar. Mas ela era mais que suficiente. Na verdade, eu não tinha lido muita coisa de Wells e nunca o vira. Fazia, contudo, uma ideia bastante clara desse socialista de salão, pertencente à Fabian Society(2), desse literato de grande fantasia e utopia que acabava de lançar uma vista de olhos sobre a experiência comunista. A exclamação de Lenine, e sobretudo o tom em que fora proferida, completavam sem dificuldade a minha impressão.
E eis que um artigo de Wells, introduzido por vias quase providenciais na compilação de textos sobre Lenine, despertava
na minha memória este grito: "Que filisteu!", recheando-o de um conteúdo vivo. Pois se Lenine está praticamente ausente do artigo de Wells a ele consagrado, em compensação lá encontraremos Wells em pessoa.
Comecemos pelo princípio, por essa queixa de Wells que lhe serve de preâmbulo à matéria: o pobre foi obrigado - imaginem só - a empreender demoradas diligências para obter uma entrevista com Lenine; isso "enervou-o extremamente". E porquê, expliquem-me por favor? Seria Lenine que chamara Wells? Comprometera-se a recebê-lo? Poderia perder tempo? Muito pelo contrário, nessas duras jornadas de então, cada minuto do seu tempo estava tomado e contado; não lhe era fácil encontrar uma hora para receber Wells. Até um estranho o devia compreender sem dificuldade.
Mas infelizmente, Wells, na sua qualidade de estrangeiro ilustre e apesar de todo o seu "socialismo" de Inglês muito conservador e de feição imperialista, encontrava-se imbuído da certeza de que, ao visitar Lenine, prodigava uma grande honra ao chefe, bem como ao seu país de bárbaros.
Desde a primeira à última linha, nota-se intensamente esta autosuficiência pouco justificada.
A descrição psicológica de Lenine começa, como era de esperar, por uma grande descoberta, uma revelação. Fiquem a saber que Lenine "não era, de forma alguma, um homem de letras".
Com efeito, quem melhor do que Wells, profissional de Literatura, poderia decidir sobre este assunto? "Os curtos e violentos panfletos que aparecem em Moscovo com a sua assinatura (!) estão cheios de considerações falsas sobre a psicologia dos operárias do Ocidente!.. Exprimem muito pouco o fundo real do pensamento de Lenine."
O respeitável gentleman ignora, bem entendido, que Lenine é o autor de grande número de obras duma importância capital sobre a questão agrária, sobre as teorias económicas, a sociologia, a filosofia.
Wells conhece apenas um certo número de "curtos e violentos panfletos"; afirma que aparecem "com a assinatura de Lenine", dando assim a entender que são escritos por outros. Quanto ao "verdadeiro fundo do pensamento de Lenine", não é possível encontrá-lo nas dezenas de tomos de que é autor, mais sim na conversa de uma hora a que condescendeu generosamente o muito ilustre e muito sábio viajante da Grã-Bretanha.
Podia esperar-se, pelo menos, que Wells soubesse descrever de modo interessante a fisionomia de Lenine, e se tivesse dado um pouco de relevo ao esboço poderíamos perdoar-lhe todas as banalidades inspiradas pelo seu socialismo da Fabian Society. Mas não se encontra no artigo qualquer vestígio disso.
"Lenine tem um rosto agradável, moreno (!), cuja expressão muda constantemente; tem um sorriso vivo..."
"Lenine parece-se muito pouco com as suas fotografias..." "Gesticulava um pouco durante a conversa..."
Para além destas fórmulas banais de um repórter habituado a preencher as colunas dos jornais burgueses, Wells nada soube dizer.
Acresce ainda ter descoberto que a testa de Lenine lembra o crânio alongado e ligeiramente assimétrico de Artur Balfour e que, no seu conjunto, "é um homem muito pequeno: quando está sentado na borda da cadeira, os pés mal tocam no chão".
No que se refere ao crânio de Artur Balfour, nada podemos dizer desse objecto venerável, admitindo sem custo que seja alongado. Mas, quanto ao resto, que indecente impropriedade de termos! Lenine tinha os cabelos de um louro arruivado; é, consequentemente impossível atribuir-lhe uma tez "morena". Era de estatura média, talvez até ligeiramente abaixo da média; mas quanto a produzir a impressão de "um homem muito pequeno" que estando sentado mal chegava ao chão, isso só pôde suceder a Wells, o qual chegava, qual Gulliver da civilização, ao Norte povoado de comunistas liliputianos.
Wells notou também que Lenine, durante os silêncios da conversa, tinha o hábito de levantar uma das pálpebras com um dedo:
"Este hábito, observa o sagaz escritor, provém talvez de um defeito de visão."
Nós conhecíamos esse gesto, Lenine fazia-o quando se encontrava perante um estrangeiro, um homem com quem nada tinha em comum: lançava então um olhar vivo ao personagem, através dos dedos de uma mão, colocada como viseira na frente do rosto. O "defeito de visão" de Lenine derivava do facto de que então ele lia no pensamento do seu interlocutor, apercebia-se da sua importância enfática e limitada, da sua presunção e ignorância de "civilizado" e, seguidamente, tendo absorvido esta imagem, abanava a cabeça e repetia: "Que filisteu! Que monstro pequeno-burguês!"
O camarada Rothstein assistia à conversa, e Wells fez, a este respeito, uma descoberta admirável: segundo ele, a presença desta testemunha "caracteriza a situação actual na Rússia"; Rothstein - ouçam isto e não vos espanteis - controlava Lenine em nome do Comissariado dos Negócios Estrangeiros devido à excessiva sinceridade de Lenine e à sua imprudência de sonhador. Que dizer desta observação impagável! Ao entrar no Kremlin, Wells trazia no espírito toda a porcaria jornalística fabricada pela burguesia internacional; o seu olhar perspicaz - sem "defeito", evidentemente - descobria no gabinete de Lenine tudo o que tinha apreendido da leitura ,do Times ou de qualquer outro reservatório de bisbilhotices devotas e graciosas.
Mas como foi então essa conversa? A este respeito, Wells apenas nos transmite lugares-comuns sem valor, que nos mostram como é lamentável, como é pobre o reflexo do pensamento de Lenine nos crânios de que não temos, aliás, de contestar a simetria.
Wells tinha vindo com a ideia de que "teria de discutir com um convicto doutrinador, marxista, mas o que sucedeu foi completamente diferente". Isto não nos admira. Sabemos já que "o fundo do pensamento de Lenine" não se evidenciou neste período de mais de trinta anos que preenche a sua actividade política, a sua actividade de escritor, mas sim numa conversa com um bravo burguês britânico. "Tinham-me dito, continua Wells, que Lenine gostava de dar lições, mas absteve-se de o fazer comigo." De facto, como dar lições a um gentleman tão impregnado do elevado sentimento da sua dignidade? De um modo geral não é verdade que Lenine gostasse de dar lições. O que é verdadeiro é o facto de ele saber falar de uma forma muito instrutiva. Contudo, apenas falava assim quando julgava o seu interlocutor capaz de aprender alguma coisa. Nesse caso, não poupava tempo, nem esforços. Mas perante o maravilhoso Gulliver, que se encontrava, graças ao acaso, no gabinete do "pequeno homem", Lenine deve ter adquirido, após dois ou três minutos de conversa, esta convicção capaz de inspirar a entrada do Inferno: "Perdei toda a esperança..."
Falaram das grandes cidades. Wells confessa-nos que na Rússia teve pela primeira vez essa ideia notável de que o aspecto das grandes cidades depende sobretudo do movimento das lojas e dos mercados. Comunicou a descoberta ao seu interlocutor. Lenine "reconheceu" que num regime Comunista as cidades deverão diminuir consideravelmente de extensão. Wells "indicou" a Lenine que a restauração das cidades exigiria um trabalho formidável e que grande parte dos maiores edifícios de Petrogrado conservaria apenas o valor de monumentos históricos. Lenine concordou com esta incomparável conclusão de Wells.
"Parece-me, acrescenta este, que foi agradável para ele conversar com um homem que compreendia as inevitáveis consequências do colectivismo, consequências essas que escapam à compreensão de grande número dos seus adeptos".
Têm aqui a dimensão do nível de Wells.
Ele considera como resultado da sua extraordinária perspicácia a descoberta de que, num regime comunista, as enormes concentrações urbanas actuais deverão desaparecer e que muitos monstros da arquitectura capitalista dos nossos dias apenas terão o valor de monumentos históricos (a não ser que não mereçam a honra de ser destruídos).
Com efeito, como poderiam esses pobres comunistas (esses "fastidiosos fanáticos da luta ,de classes", no dizer de Wells) chegar a semelhantes descobertas - que foram, como sabemos, explicadas há muito, num comentário de divulgação acrescentado ao antigo programa da social-democracia alemã? Não diremos - pois não se devem minimizar as pessoas - que tudo isto era já conhecido dos utopistas clássicos do socialismo.
Compreendeis agora, assim o espero, o motivo por que Wells, no decorrer da conversa, "não notou de modo algum" esse famoso riso de Lenine de que lhe tinham falado tanto: é evidente que Lenine não tinha vontade de rir. Temo até que o seu movimento reflexo não o tenha conduzido a um extremo completamente oposto ao do riso. Porém Ilitch teve de servir-se então daquela mão tão ágil e tão inteligente que sabia sempre esconder a um interlocutor demasiado ocupado consigo próprio um bocejar malcriado.
Como vimos, Lenine não deu nenhuma lição a Wells, por razões que julgamos totalmente satisfatórias. Em compensação, Wells insistiu ainda mais em instruir Lenine. Esforçou-se por fazê-lo compreender essa ideia absolutamente nova de que, para o êxito do socialismo, "não bastava reconstruir o lado material da existência, mas que era preciso transformar a psicologia de todo o povo". Informou Lenine que "os Russos, pela sua natureza, eram individualistas e comerciantes". Explicou-lhe que o comunismo "avançava demasiado depressa", destruindo antes de poder construir, assim como outras verdades desta espécie.
"Isto conduziu-nos, diz Wells, ao ponto essencial, onde nos encontrámos separados, isto é, estabelecemos uma diferença entre o colectivismo evolucionista e o marxismo.
Por colectivismo evolucionista devemos entender uma mistura ao gosto da Fabian Society, onde entram o liberalismo, a filantropia, uma Legislação social utilizando meios tão económicos quanto possíveis e as meditações dominicais sobre um futuro melhor.
O próprio Wells formula da seguinte maneira a essência do seu colectivismo evolucionista:
" Creio que, através de um sistema regularmente estabelecido de educação da sociedade, o capitalismo actual pode civilizar-se e transformar-se num regime colectivo."
Omite dizer-nos quem se encarregará de aplicar "um sistema de educação" e a quem esse sistema deverá ser aplicado: deveremos pensar que os lordes de crânio alongado estabelecerão o seu sistema para o proletariado inglês, ou que, ao contrário, o proletariado passará por sobre os crânios dos lordes? Oh! não, tudo menos esta última solução! (Para que serviriam os membros instruídos da Fabian Society, os homens de pensamento, de imaginação desinteressada, os gentlemen e as ladies, o Snr. Wells e a Snr.ª Snowden, senão para civilizar a sociedade capitalista produzindo de forma regular e sistemática o que se esconde nos seus crânios; para que serviriam senão para transformar esta sociedade num Estado colectivo, dum modo progressivo, tão razoável e tão feliz que até a dinastia real da Grã-Bretanha se não apercebe disso?
Eis o que Wells explicava a Lenine; e Lenine teve de ouvir isto tudo.
"Para mim - observou Wells com indulgência - conversar com esse extraordinário homenzinho constituiu uma verdadeira descontracção (!)."
E para Lenine? Que prova de paciência! Pronunciou, sem dúvida, em aparte, algumas palavras russas muito expressivas e extremamente saborosas. Absteve-se de as traduzir para o inglês, não só porque o seu vocabulário nesta língua não devia ser muito extenso mas também por motivos de delicadeza. Ilitch era muito bem educado. Não pôde limitar-se, todavia, a um silêncio cortês.
"Foi forçado - relata Wells - a replicar-me que o capitalismo moderno é incuravelmente ávido e pródigo, sendo impossível ensinar-lhe o que quer que seja."
Lenine citou um certo número de factos que são, aliás, sublinhados no novo livro de Money: o capitalismo destruiu ,os molhes nacionais ingleses, não permitiu a exploração razoável das minas de carvão, etc. Ilitch conhecia o idioma dos factos e dos números.
"Confesso - conclui subitamente o Snr. Wells - que me era muito difícil discutir com ele". O que significa isto? Não será o início da capitulação do colectivismo evolucionista perante a lógica do marxismo? Não, de forma alguma. "Perdei toda a esperança..." Esta frase. à primeira vista inesperada. não surgiu por acaso; faz parte de um sistema; tem um sentido rigorosamente conforme ao espírito da ,Fabian Society. do colectivismo evolucionista, da pedagogia inglesa. Foi feita para servir os capitalistas, os banqueiros, os lordes e os seus ministros ingleses. Wells disse-lhes: "Estais a ver, portais-vos tão mal, destruís tantas coisas, sois tão interesseiros, que eu, numa discussão com o sonhador do Kremlin, tive muita dificuldade em defender o princípio do meu colectivismo evolucionista. Tornai-vos mais razoáveis, fazei semanalmente as vossas abluções segundo o ritmo da Fabian Society, civilizai-vos, marchai na senda do progresso..."
A confissão mal humorada de Wells não marca pois um princípio de autocrítica; ele prossegue simplesmente esse trabalho de educação da sociedade capitalista cujos processos aperfeiçoados, cujos princípios morais e "fabianizados" vimos postos em prática após a guerra, especialmente através da paz de Versalhes.
É com um tom protector que Wells parece aprovar Lenine, quando declara: "A sua fé na causa que defende é ilimitada." Eis o que é, com efeito, indiscutível. Lenine tinha uma reserva de fé mais do que suficiente. Isto é tão certo como afirmar que dois e dois são quatro: Esta fé inquebrantável dava-lhe mesmo a paciência de conversar, durante esses terríveis meses do bloqueio, com todos os estrangeiros que podiam servir de elo, mesmo indirecto, entre a Rússia e o Ocidente.
Foi assim que Lenine conversou com Wells. Falava uma linguagem completamente diferente quando recebia operários ingleses. Estava com eles em completa comunhão. Ensinava então, instruindo-se ao mesmo tempo. Porém, com Wells a conversa apenas podia ter um carácter diplomático um pouco forçado.
"A conversa terminou com vagas generalidades" - nota o escritor inglês. Por outras palavras, a partida que se jogou entre o colectivismo evolucionista e o marxismo terminou com um empate. Wells voltou para a Grã-Bretanha; Lenine ficou no Kremlin. Wells redigiu para o seu público burguês uma "correspondência" marcada pela petulância; Lenine abanando a cabeça, repetia: "Eis um belo burguês! Ui-ui-ui! Que filisteu!"
Perguntar-me-ão talvez ,por que motivo e com que fim me detive, passados quatro anos, sobre ,este insignificante artigo de Wells. O facto do artigo ter sido reproduzido numa das colectâneas consagradas à memória de Lenine não constitui, por certo, uma razão suficiente. Também não posso justificar-me dizendo que escrevi isto em Sukhum, onde me encontrava em tratamento. Tinha, contudo, razões mais sérias para o fazer.
Não vemos nós actualmente no poder, em Inglaterra, o partido de Wells dirigido pelos representantes extremamente esclarecidos do colectivismo evolucionista? E parece-me ter apercebido, talvez com bastante clareza, que o artigo de Wells consagrado a Lenine desvendava, melhor do que qualquer outro, a alma secreta dos dirigentes do partido operário inglês: ao fim e ao cabo, Wells não é o último entre eles.
Como essas pessoas atrasam ao arrastarem o fardo de chumbo dos preconceitos burgueses! A sua presunção vaidosa - restos do importante papel desempenhado outrora pela burguesia inglesa - não lhes permite reflectir, como deveriam, na existência de outros povos, nas novas correntes de ideias, no curso da História que os ultrapassa. Limitados, rotineiros, empíricos, cegos pelas vendas que a sociedade burguesa aplica à opinião, esses senhores passeiam pelo mundo as suas importantes pessoas e os seus preconceitos, tendo o talento de só se aperceberem deles próprios no meio de tudo o que os rodeia.
Lenine viveu em todos os países da Europa, aprendeu línguas estrangeiras, leu, estudou, ouviu, penetrou, comparou, generalizou.
Quando se encontrou à cabeça de uma grande revolução, não deixou passar nenhuma ocasião de se informar cuidadosamente, conscienciosamente; interrogou os homens, os factos. Nunca se cansava de seguir pelo pensamento a existência do mundo inteiro. Lia e falava correntemente o alemão, o francês, o inglês; lia o italiano. Nos últimos anos da sua vida, esmagado pelo trabalho, encontrava ainda a possibilidade, durante as sessões do bureau político, de estudar às escondidas a gramática checa, para estar apto a compreender mais rapidamente o movimento operário da Checoslováquia; surpreendemo-lo várias vezes nessa ocupação e ele ria e procurava justificar-se, não sem uma certa confusão.
Mas eis que Wells se encontra na sua frente, Wells que encarna essa raça de pequeno-burgueses falsamente cultos, infinitamente limitados, que têm olhos para não ver, que pensam não ser útil aprender seja o que for, pois estão de posse de uma bela herança de preconceitos.
Por outro lado, o Snr. Mac Donald, que representa o mesmo tipo sob o aspecto mais grave e mais aborrecido do puritano, tranquiliza a opinião pública burguesa: combatemos contra Moscovo e vencemos. Venceram Moscovo? Na verdade, são estes os pobres "homenzinhos", embora tenham uma estatura elevada! Até agora, depois de tudo quanto se passou, nem mesmo sabem prever o seu dia de amanhã. Os homens de negócios do liberalismo e do partido conservador manobram facilmente esses pedantes socialistas "da evolução" que se encontram no poder; comprometem-nos ,e preparam conscientemente a sua queda, não só a queda do seu ministério, mas a sua ruína política. E, contudo, preparam também, embora inconscientemente, a chegada ao poder dos marxistas ingleses. Sim, exactamente, dos marxistas, desses "fastidiosos fanáticos da luta de classes"... Pois, também na Inglaterra, irá ter lugar a revolução social segundo as leis definidas por Karl Marx.
Wells, com um humor que lhe é peculiar e que tem a consistência do pudim, ameaçou um dia pegar num grande par de tesouras e tosquiar Marx, privando-o da sua cabeleira e da sua barba de "doutrinário", anglicizando-o, respeitabilizando-o, fabianizando-o. Contudo, ficou-se por aí, pois não é um Wells que poderá modificar Marx. Lenine também ficará igual a si próprio depois de ter suportado durante uma hora os efeitos da navalha de Wells. E temos a ousadia de afirmar que, num futuro que talvez não seja muito longínquo, é provável que se possa ver elevar em Londres, na Trafalgar Square, por exemplo, duas figuras ,de bronze, ao lado uma da outra: Karl Marx e Vladimir Lenine. Os proletários ingleses dirão então aos seus filhos: "Que sorte que os homenzinhos do Labour Party não tenham conseguido tosquiar nem fazer a barba a estes dois gigantes!"
Enquanto se espera por esse dia, que procurarei ver, cerro os olhos por um instante e distingo nitidamente a imagem de Lenine, na cadeira de braços em que se encontrava à frente de Wells, e ouço a frase pronunciada no dia seguinte ou no próprio dia da entrevista com o escritor inglês, essa frase dita numa espécie de gemido e com tanta bonomia: "Que burguês! que filisteu!"
6 de Abril de l924
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