O futurismo é um fenômeno europeu e desperta interesse porque, entre outras razões, não se fechou, ao contrário do que afirma a escola formal russa, nos limites da arte, mas, desde o inicio, se ligou aos acontecimentos políticos e sociais, sobretudo na Itália. O futurismo reflete, na arte, o período histórico, que começou em meados dos anos 1890 e acabou na Guerra Mundial. A sociedade capitalista conheceu dois decênios de ascensão econômica sem precedente, que derrubou velhos conceitos de riqueza e de poder, elaborou novos padrões, novos critérios do possível e do impossível, e impulsionou o povo a novos actos ousados.
O movimento social, ao mesmo tempo, vivia, oficialmente, segundo o automatismo da véspera. A paz armada, com as indolências da diplomacia, o oco sistema parlamentar, a política interna e externa baseadas num sistema de válvulas de segurança e de freios, tudo isso pesava, duramente, sobre a poesia, quando o ar, carregado de eletricidade acumulada, pronunciava a iminência de grandes explosões. O futurismo deu o sinal premonitório na arte.
Observa-se um fenômeno que se repetiu mais de uma vez na história: os países atrasados, que não possuem um grau especial de cultura, espelhavam na sua ideologia as conquistas dos países avançados, com maior brilho e maior força. Assim o pensamento alemão dos séculos XVIII e XIX refletiu as realizações econômicas da Inglaterra e os avanços políticos da França. O futurismo, da mesma forma, adquiriu mais brilhante expressão não na América ou na Alemanha, mas na Itália e na Rússia.
A arte, com exceção da Arquitetura, só se baseia na técnica, em última instância, isto é, na medida em que a técnica serve de fundamento para todas as superestruturas. A dependência prática da arte, principalmente a das palavras, diante da técnica, não conta. Pode-se escrever um poema que cante os arranha-céus, os dirigíveis e os submarinos, num recanto afastado de qualquer província russa, sobre um papel amarelo e com um pedaço de lápis. Basta que os arranha-céus, os dirigíveis e os submarinos existam na América para inflamar a imaginação ardente dessa província. Nenhum material se transporta com maior facilidade do que a linguagem.
O futurismo nasceu nos meandros da arte burguesa. E não podia nascer de outra forma. Seu caráter de oposição violenta não contradiz esse fato. A intelectualidade é extremamente heterogênea. Toda escola de arte reconhecida recebe, ao mesmo tempo, uma boa remuneração. É dirigida por mandarins com os seus pequenos botões. Esses mandarins da arte, geralmente, expõem os métodos de suas escolas com a maior sutileza, esgotando, no mesmo golpe, sua provisão de pólvora. Então sobrevem alguma alteração objetiva, uma sublevação política ou uma tempestade social, e excitam-se a boêmia literária, a juventude, os gênios em idade de prestar o serviço militar, que, amaldiçoando a cultura burguesa, farta e vulgar, sonham, secretamente, com alguns botões para si, se possível dourados.
Aqueles estudiosos, que, procurando definir a natureza social do futurismo nos seus primórdios, dão importância decisiva aos protestos violentos contra a vida e a arte burguesas, não conhecem, suficientemente, a história das tendências literárias. Os românticos, franceses ou .alemães, falavam sempre, asperamente, da moralidade burguesa e da rotina. Ostentavam cabelos compridos, a tez esverdeada, e Théophile Gautier, para acabar de cobrir de vergonha a burguesia, portava sensacional colete vermelho. A blusa amarela dos futuristas é sem dúvida alguma a sobrinha-neta do colete romântico, que tanto horror suscitou entre os papais e as mamães. Sabe-se que nenhum cataclismo seguiu esses protestos de cabelos longos e colete vermelho do romantismo, e a opinião pública burguesa adotou, sem prejuízo, tais cavalheiros e canonizou-os nos seus livros escolares.
É extremamente simples contrastar a dinâmica do futurismo italiano, e suas simpatias pela Revolução, com o caráter decadente da burguesia. Não se deve representar a burguesia como um velho gato prestes a morrer. Não. A besta do imperialismo é audaciosa, ágil e tem garras. Será que a lição de 1914 já foi esquecida? A burguesia, para fazer a sua guerra, utilizou, em grande parte, os sentimentos e humores, que, por natureza, se destinavam a nutrir a rebelião. Pintou-se a guerra, na França, como o arremate da Grande Revolução. A burguesia efetivamente não organizou revoluções em outros países? Na Itália, os intervencionistas (isto é, os que eram pela intervenção na guerra) eram os revolucionistas, ou seja, republicanos, maçons, sociais-chauvinistas e futuristas.
Finalmente, o fascismo italiano não chegou ao poder por métodos revolucionários, acionando as massas, multidões de pessoas, fortalecendo-as e armando-as? Nem por acidente nem por malentendido o futurismo italiano desembocou na torrente do fascismo. Tudo estava conforme a lei de causa e efeito. (*)
O futurismo russo nasceu numa sociedade que ainda cursava a escola preparatória da luta contra Rasputin e se aprestava para a revolução democrática de fevereiro de 1917 (1) . Isso trouxe vantagens ao nosso futurismo. Ele assimilou ritmos de movimentos, de ação, de ataques e de destruição ainda imprecisos. Conduziu a luta por um lugar ao sol com mais dureza, resolução e barulho do que todas as escolas precedentes, o que se conciliava com o atavismo dos seus rumores e dos seus pontos de vista. O jovem futurista, de certo, não ia às fábricas, mas fazia muito ruído nos cafés, derrubava estantes de música, enfiava a blusa amarela, pintava suas faces e, vagamente, ameaçava com o punho.
A Revolução proletária na Rússia eclodiu antes que o futurismo se libertasse de suas infantilidades, de suas blusas amarelas, de sua excitação, e antes que o reconhecessem, oficialmente, isto é, antes que o transformassem numa escola artística, politicamente inofensiva, de estilo aceitável. A tomada do poder pelo proletariado surpreendeu o futurismo no momento em que ainda o perseguiam. Essa circunstancia empurrou-o para os novos senhores da situação, enquanto sua filosofia, isto é, sua falta de respeito pelos valores antigos e sua dinâmica, facilitava o seu contato e o aproximava da Revolução. Mas o futurismo levou consigo, na nova etapa de seu desenvolvimento, as características de sua origem social, a boêmia burguesa.
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O futurismo, na vanguarda da literatura, constitui um produto da poesia do passado como qualquer outra escola literária da atualidade. Dizer que o futurismo libertou a arte de suas ligações milenares com a burguesia, como escreveu o camarada Chujak, é apreciar, de maneira vulgar, esses milênios. O apelo dos futuristas para o rompimento com o passado, para livrar-se de Pushkin, para liquidar a tradição etc., possui um significado na medida em que se dirige à velha casta literária, ao círculo fechado da intelligentsia. O apelo, em outros tempos, só tem sentido na medida em que os futuristas procuram cortar o cordão umbilical que os liga aos pontífices da tradição literária burguesa.
Esse apelo, entretanto, torna-se um disparate evidente tão logo o dirigem ao proletariado. A classe operária não rompe e não pode romper com a tradição literária, porque não se encontra presa, de modo algum, a essa tradição. A classe operária não conhece a velha literatura. Deve ainda familiarizar-sé com ela, dominar Pushkin, absorvê-lo e, assim, superá-lo. A ruptura dos futuristas com o passado representa, sobretudo, uma tempestade no mundo fechado da intelligentsia, que se ergueu sobre Pushkin, Fet, Tiutschev, Briusov, Balmont e Blok; (2) que são passivos, não porque uma veneração supersticiosa pelas formas do passado a infectasse, mas porque ela não tem nada em si que exija novas formas. Simplesmente nada tem a dizer. Repete sentimentos antigos com palavras novas. Os futuristas agiram bem quando com ela romperam. Mas não é preciso transformar essa ruptura numa lei de desenvolvimento universal.
Na exagerada recusa do passado pelos futuristas não se esconde um ponto de vista do operário revolucionário, mas o niilismo do boêmio. Nós, marxistas, vivemos com as tradições. Nem por isso deixamos de ser revolucionários. Estudamos e guardamos vivas as tradições da Comuna de Paris, mesmo antes de nossa primeira revolução. Depois as tradições de 1905 a elas se somaram, e delas nos alimentamos enquanto preparávamos a segunda revolução. E, remontando-nos a tempos mais distantes, ligamos a Comuna às Jornadas de junho de 1848 e à grande Revolução Francesa.
Também, no domínio da teoria, baseamo-nos, através de Marx, em Hegel e nos clássicos da Economia inglesa. Nós, que nos educamos e iniciamos a luta numa época de desenvolvimento orgânico da sociedade, vivemos entre as tradições revolucionárias. Mais de uma tendência literária nasceu às nossas vistas, declarou impiedosa guerra ao espírito burguês e olhou-nos de soslaio.
Assim o vento como gira em torvelinhos, dentro dos seus próprios círculos, esses revolucionários literários, destruidores de tradições, reencontraram sempre os caminhos da Academia. A Revolução de Outubro parecia à intelligentsia, inclusive à sua esquerda literária, como a destruição total do mundo conhecido, esse mesmo mundo com o qual ela de vez em quando rompia, buscando criar novas escolas, e ao qual, invariavelmente, retornava. Para nós, ao contrário, a Revolução encarnava uma tradição familiar, assimilada. Abandonando um mundo que, teoricamente, rejeitávamos e, na prática, minamos, penetraríamos em outro, com o qual nos familiarizamos, pela tradição e pela imaginação. O tipo psicológico do comunista, homem político revolucionário, opõe-se, nisso, ao do futurista, revolucionário inovador da forma. Eis a fonte dos mal-entendidos que nos separam. Omal não reside na negação, pelo futurismo, das santas tradições da intelligentsia. Reside, ao contrário, no fato de que o futurismo não se sente integrado na tradição revolucionária. O futurismo caiu logo que entramos na Revolução.
A situação não é tão desesperada. O futurismo não retornará aos seus círculos porque eles não existem mais. E essa circunstancia, não sem significação, dá ao futurismo a possibilidade de um renascimento, de entrar na nova arte, não como a tendência determinante, mas como um dos seus componentes importantes.
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O futurismo russo formou-se de diversos elementos muito independentes uns dos outros e,por vezes, contraditórios. Há construções e ensaios filológicos consideravelmente imbuídos de arcaísmos (Khlebnikov, Kruchenikh), que, em todo caso, não pertencem à poesia; uma poética, isto é, uma teoria dos procedimentos e métodos da arte das palavras; uma filosofia e, mesmo, duas filosofias da arte, uma formalista (Shklovsky), e outra, com tendências marxistas (Arvatov, Chujaketc.) ; enfim, a própria poesia, criação viva. Não consideramos a insolência literária como um elemento independente: ela geralmente se combina com um desses elementos fundamentais.Quando Kruchenikh diz que sílabas desprovidas de sentido - dir, bul, tschil - contém mais poesia do que todo Pushkin (ou qualquer coisa parecida), isso se encontra a meio caminho entre a poética filológica e, me perdoem, a insolência de mau gosto. A idéia de Kruchenikh, sob uma mais sóbria forma, significa que a orquestração do verso na chave do dir, bul, tschil convém mais à estrutura da língua russa e ao espírito de seus sons do que a orquestração de Pushkin, inconscientemente influenciado pelo idioma francês. É evidente, quer seja justo ou não, que dir, bul, tschil não constituem um extrato de obra futurista; assim realmente não há nada a comparar. Talvez alguém escreva poemas nessa chave musical e filológica que se tornem superiores aos de Pushkin. Mastemos de esperar.A criação de palavras de Khlebnikov e de Kruchenikh está, igualmente, fora da arte poética.
É uma filologia de caráter duvidoso, em parte fonética, mas de nenhum modo poesia. A língua certamente vive e se desenvolve, criando palavras dela mesma e eliminando as antigas. Ela o faz,entretanto, de modo muito cauteloso, calculado, de acordo com as suas estritas necessidades. Toda grande época nova impulsiona a linguagem. Esta absorve, precipitadamente, enorme número de neologismos e, depois, procede a uma espécie de registro, rejeitando tudo o que é supérfluo e estranho. A fabricação, por Khlebnikov ou Kruchenikh, de dez ou cem novas palavras, derivadas de raízes existentes, pode despertar certo interesse filológico. Pode, numa certa e muito pequena medida, facilitar o desenvolvimento do idioma e, mesmo, da linguagem poética, anunciar um período no qual a evolução da fala se dirigirá mais conscientemente. Esse mesmo trabalho,subsidiário para a arte, está fora da poesia.Não existe razão alguma para cair-se num estado de êxtase piedoso aos sons dessa poesia supra-racional, que se assemelha a exercícios e escalas musicais de virtuosidade verbal, úteis talvez nos cadernos dos alunos, mas totalmente impróprios para o concerto. Tentar, em todo caso,substituir a poesia pelos exercícios da super-razão acabaria por estrangular a poesia. O futurismo não seguirá esse caminho. Maiakovsky, que indiscutivelmente é um poeta, toma geralmente suas palavras no dicionário clássico de Dahl, e muito raramente no vocabulário de Khlebnikov ou de Kruchenikh. E, na medida em que passa o tempo, Maiakovsky emprega cada vez mais esparsamente construções de palavras arbitrárias ou neologismos.Os problemas levantados pelos teóricos do grupo Lef (3) a respeito da arte e da indústria das máquinas, da arte que não embeleza a vida, mas a modela, da influência sobre o desenvolvimento da linguagem e a formação sistemática de palavras da biomecânica como educação das atividades do homem no sentido de maior racionalidade - e por conseguinte de maior beleza - são todos problemas extremamente importantes e interessantes na perspectiva da edificação de uma cultura socialista. Lef, infelizmente, colore a discussão desses problemas com um sectarismo utópico. Mesmo quando definem, corretamente, a tendência geral do desenvolvimento, no domínio da arte ou da vida, os teóricos daquele grupo antecipam a história e opõem o seu esquema ou sua receita ao que existe. Eles não dispõem, assim, de nenhuma ponte para o futuro. Lembram os anarquistas que,antecipando a ausência de Governo no futuro, opõem seus esquemas à política, aos parlamentos e adversas outras realidades, que o atual barco do Estado deve, evidentemente, jogar, na sua imaginação, pelas amuradas . Eles, na prática, enterram o nariz, antes de libertar o rabo. Maiakovsky prova, com versos complicados e rimados, o caráter supérfluo do verso e da rima, e promete escrever fórmulas matemáticas, embora haja matemáticos para essa tarefa. Quando Meyerhold,(4) experimentador apaixonado, o furioso Vissarion Bielinsky do teatro, produz em cena movimentos semi-ritmicos, os quais ensinou a atores muito fracos no diálogo, e chama a isso de biomecânica, o resultado é um aborto. Precipitar o que só pode desenvolver-se como parte integrante do futuro, e materializar apressadamente essa antecipação parcial, no presente estado de miséria, diante das luzes mortiças da ribalta, apenas dá a impressão de diletantismo provinciano. E não existe nada mais hostil à nova arte do que o provincianismo e o diletantismo.
A nova Arquitetura constituir-se-á de dois elementos: um novo problema e uma nova técnica de utilização dos materiais, em parte novos, em parte antigos. O novo problema não será a construção de um templo, de um castelo ou de um hotel particular, mas sobretudo de uma casa popular, de um hotel popular, de um domicílio, de uma casa coletiva, de uma escola de grandes dimensões. A situação econômica do país, no momento em que a Arquitetura estiver prestes a resolver seus problemas, determinará a utilização dos materiais. Arrancar ao futuro a construção arquitetônica implica um ato arbitrário, mais ou menos inteligente e individual. E um novo estilo não pode associar-se ao arbítrio individual.
Os próprios escritores de Lef sublinham corretamente que um estilo novo se desenvolve onde a indústria mecânica serve às necessidades do consumidor impessoal. O aparelho telefônico é um exemplo de novo estilo. Os vagões-leito, as escadas, os elevadores e as estações do metrô, eis, indiscutivelmente, os elementos de um novo estilo, assim como as pontes metálicas, os mercados cobertos, os arranha-céus e os guindastes . Assim, fora de um problema prático e de um trabalho sério para resolvê-lo, não se pode criar um novo estilo arquitetônico. A tentativa de criar tal estilo, deduzindo-o da natureza do proletariado, de seu coletivismo, de seu ativismo, de seu ateísmo etc., não passa do mais puro idealismo e só exprime o ego de seu autor, um alegorismo arbitrário e sempre o mesmo velho diletantismo provinciano.
O erro de Lef, ou pelo menos de alguns de seus teóricos, aparece-nos sob a sua forma mais generalizada, quando exigem, num ultimato, a fusão da arte com a vida. Não é preciso demonstrar que a separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de classe da sociedade. A sua auto-suficiência, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: da transformação da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evolução da arte, no futuro, seguirá o caminho de uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, com as festividades populares e com a vida coletiva. É bom que Lef o compreenda e o exponha. Mas não apresentando à arte do presente um ultimato a curto prazo, como o fazem, ao dizerem: deixai o vosso ofício e fundi-vos com a vida. Os poetas, os pintores, os escultores, os atores deveriam, então, parar de refletir, de representar, de escrever poemas, de pintar quadros, de talhar esculturas. de exprimir-se diante da ribalta e introduzir sua arte diretamente na vida? Como? Onde? Por que portas? É preciso, seguramente, aplaudir toda tentativa de incrementar, tanto quanto possível, o ritmo, o som e a cor nas festividades populares, nos comícios e nas manifestações. Que se tenha ao menos, porém, um pouco de imaginação histórica para compreender que mais de uma geração virá e desaparecerá entre a pobreza econômica e cultural dos dias de hoje e o momento em que a arte se fundirá com a vida, isto é, quando a vida enriquecerá em proporções tais que se modelará, inteiramente, na arte. Para o bem ou para o mal, a arte como profissão subsistirá por muito tempo ainda, servindo de instrumento da educação artística e social das massas, de seu prazer estético - e isso ocorrerá não somente com a pintura e a poesia lírica, mas também com o romance, a comédia, a tragédia, a escultura, a sinfonia. Rejeitar a arte como forma de descrever e de imaginar o conhecimento, porque se se opõe à arte burguesa contemplativa e impressionista dos últimos decênios, significa arrebatar às mãos da classe que construiu uma nova sociedade uma ferramenta da maior importância. A arte, dizem-nos, não é um espelho, mas um martelo. Ela não reflete. Modela.
Ensina-se o manejo do martelo com o auxílio do espelho, de uma película sensível que registra todas as etapas do movimento. A fotografia e a cinematografia, graças à sua força descritiva, tornam-se instrumentos poderosos de educação no domínio do trabalho. Se não se pode dispensar o espelho, mesmo para barbear-se, como construir ou reconstruir sua vida sem o espelho da literatura? Ninguém, certamente, pede à nova literatura que tenha a impassibilidade de um espelho.
Quanto mais profunda a literatura, quanto mais imbuída do desejo de modelar a vida, tanto mais, dinâmica e significativamente, poderá pintar a vida. Que significa recusar as experiências, ou seja, recusar a psicologia individual na literatura e no teatro? Eis um protesto tardio e de há muito desusado da ala esquerda da intelligentsia contra o realismo passivo de Checov e o simbolismo sonhador. Se as experiências de Tio Vânia (5) perderam um pouco do seu brilho - e isso, infelizmente, ocorreu - também é certo que ele não é o único a possuir um mundo interior. De que modo, sobre que bases e em nome de que arte se pode voltar as costas ao mundo interior do homem de hoje que construiu um mundo exterior e, assim, se reconstruiu a si mesmo? Se a arte não ajudasse esse novo homem a educar-se, a fortificar-se e a aperfeiçoar-se, para que então serviria? E como pode organizar o mundo interior se não o penetra e não o reproduz? Aqui o futurismo repete somente suas próprias ladainhas que, agora, estão completamente superadas.
Pode-se dizer o mesmo da vida quotidiana. O futurismo levantou, inicialmente, um protesto contra a arte dos mesquinhos realistas, que se comportavam na vida como parasitas. A literatura estava sufocada e tornava-se estúpida no pequeno mundo estagnado do advogado do estudante, da mulher amorosa, do funcionário publico, do senhor Peredonov (6),e de seus sentimentos, de suas alegrias e de suas dores. Deve-se, porém, levar o protesto contra os que vivem como parasitas ao ponto de separar a literatura das condições e das formas da vida humana? O protesto futurista contra um realismo superficial justificava-se, historicamente, na medida que abria caminho a uma nova reconstrução artística da vida, a uma destruição e a uma reconstrução sobre novos eixos. É curioso que, enquanto negue que a missão da arte consiste em pintar a vida, Lef cite Nepoputschitsa, de Brik, como um modelo de prosa. Que é essa obra senão um quadro da vida quotidiana, na forma de uma crônica quase comunista? O mal não reside no fato de que os comunistas ali não apareçam mansos como cordeiros ou duros como o aço, mas no fato de que, entre o autor e o meio vulgar que ele descreve, não se percebe um mínimo de perspectiva. Para que a arte possa transformar como também refletir, deve haver certa distância entre o artista e a vida, da mesma forma que entre o revolucionário e a realidade política.
Em resposta às criticas, às vezes mais insultuosas do que convincentes, o camarada Chujak destaca o fato de que Lef está engajado num processo de contínua busca. Sem dúvida Lef procura mais do que encontra. Isso, porém, não é razão suficiente para que o Partido faça o que lhe recomenda Chujak com insistência: canonizar Lei ou uma de suas alas como arte comunista. É tão impossível canonizar pesquisas como armar um regimento com uma invenção não-terminada.
Significa isso que Lef se encontra num falso caminho e que nada temos a fazer com esse movimento? Não. Não se trata de que o Partido tenha idéias definidas e fixas sobre as questões da arte do futuro, que um certo grupo sabotaria. Não é esse o caso. O Partido não tem e não pode ter decisões prontas sobre a versificação, a evolução do teatro, a renovação da linguagem literária, o estilo arquitetônico etc., assim como, nos outros setores, não tem nem pode ter decisões prontas sobre o melhor adubo, a mais correta organização dos transportes ou as metralhadoras mais perfeitas. No que concerne a metralhadoras, transportes e adubos, decisões práticas, imediatamente, se impõem. Que faz então o Partido? Designa alguns de seus membros para a tarefa de estudar e resolver esses problemas e controla-os pelos resultados práticos de suas atividades. A questão, no campo da arte, é, ao mesmo tempo, mais simples e mais complexa. No que se refere à utilização política da arte ou à necessidade de impedir tal utilização pelos nossos inimigos, o Partido tem, suficientemente, experiência, perspicácia, decisão e recursos. Mas o desenvolvimento real da arte e da luta por novas formas não faz parte de suas tarefas e preocupações. O Partido não encarrega ninguém desse trabalho. Existem, no entanto, alguns pontos de contatos entre os problemas da arte, da política, da técnica e da economia, cujo estabelecimento se torna necessário para determinar a interdependência interna entre os problemas. O grupo Lef ocupa-se desse trabalho. Esse grupo salta, mergulha de um lado e do outro e - diga-se sem o ofender - exagera no domínio da teoria. Não exageramos, contudo, e não estamos prestes a exagerar em questões muito mais vitais? E tentamos, seriamente, corrigir os erros de tratamento ou do entusiasmo partidário no trabalho prático? Não temos nenhuma razão para duvidar de que o grupo Lef se esforça, seriamente, para trabalhar no interesse do socialismo, de que se interessa, profundamente, pelos problemas das artes e de que deseja orientar-se por critérios marxistas . Por que então começar com a ruptura e não com o esforço para influenciá-lo e assimilá-lo? A questão não requer urgência. O Partido tem muito tempo para proceder a um exame, influenciar, cuidadosamente, e escolher. Ou possuímos tantas forças qualificadas que nos permitam gastar com prodigalidade? O centro de gravidade, afinal, encontra-se não na elaboração teórica dos problemas da nova arte, mas na sua expressão poética. Qual a situação do futurismo, de suas pesquisas e de suas realizações? Aqui há menos motivos para precipitação e intolerância.
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Ninguém pode negar, inteiramente, as realizações do futurismo na arte, sobretudo na poesia. O futurismo influenciou toda a nossa poesia moderna, direta ou indiretamente, com raras exceções. Não se pode contestar a influência de Maiakovsky sobre toda uma série de poetas operários. O construtivismo registra igualmente conquistas importantes, embora não de todo na direção que se traçara. Publicam-se, continuamente, artigos sobre a futilidade total e o caráter contra-revolucionário do futurismo, assinados por construtivistas. Os poemas futuristas, na maior parte das edições oficiais, saem ao lado das críticas mais acerbas. O Proletkult (7) une-se aos futuristas por laços vivos. A revista Horrn (O Clarim) aparece, atualmente, com evidente espírito futurista. Não existe, certamente, motivo para exagerar a importância desses fatos porque eles ocorrem no seio de uma camada superior que, como quase todos os nossos grupos artísticos, mantém débeis ligações com as massas. Mas seria estúpido fechar-lhe os olhos e tratar o futurismo como invenção charlatanesca de uma intelligentsia decadente. Mesmo se amanhã se averiguasse que o futurismo está em declínio - não penso que isso seja totalmente impossível - ainda assim, agora, ele tem mais força do que todas as tendências às custas das quais se desenvolveu. O futurismo russo - como já se disse - expressou, inicialmente, a revolta dos boêmios, isto é, da ala esquerda semi-pauperizada da intelligentsia contra o caráter de casta e fechado da estética burguesa. Através das roupagens dessa revolta poética, sentia-se a pressão de forças sociais profundas que o próprio futurismo não percebia. A luta contra o velho vocabulário e a antiga sintaxe da poesia, independentemente de todas as suas extravagâncias boêmias, canalizava uma revolta contra um vocabulário rígido e escolhido, artificialmente, com o objetivo de que nada estranho o perturbasse. Constituía, também, uma revolta contra o impressionismo, que aspirava à vida através de uma palha, uma revolta contra o simbolismo, tornado falso na sua vida celeste, contra Zinaida Hippius e sua espécie, contra todos os outros limões espremidos e ossos de frango roídos do pequeno mundo da intelligentsia liberal-mística. Se examinamos, atentamente, o período decorrido, não podemos deixar de apreciar a contribuição vital e progressista da obra dos futuristas, no domínio da Filologia. Sem exagerar as dimensões dessa revolução na linguagem, devemos reconhecer que o futurismo expulsou da poesia muitas frases e termos gastos, substituindo-os por outros de sangue novo, e, em alguns casos, criou, felizmente, frases e termos novos que entraram ou estão prestes a entrar no vocabulário e podem enriquecer a língua viva. Essa observação se aplica não somente a palavras isoladas, como a palavras colocadas no meio de outras, isto é, à sintaxe. O futurismo, campo da combinação de palavras, assim como na da sua formação, passou, realmente, além dos limites que uma língua viva pode admitir. O mesmo ocorreu com a Revolução. Eis o pecado de todo movimento vivo. A Revolução, principalmente a sua vanguarda consciente, demonstrou, entretanto, mais autocrítica do que os futuristas. Encontrou em compensação maior resistência externa, e, espera-se, encontrará, no futuro, ainda mais. Os exageros desaparecerão, e o Trabalho essencialmente purificador e verdadeiramente revolucionário que se realiza na linguagem poética, permanecerá.
Deve-se, igualmente, reconhecer u apreciar o trabalho criador e benéfico do futurismo quanto ao ritmo e à rima. Os indiferentes ou aqueles que simplesmente toleram esses assuntos porque os nossos antepassados nos legaram podem considerar todas as inovações dos futuristas como problemas enfadonhos que exigem muita atenção. A esse propósito, pode-se levantar a questão sobre se, afinal, o ritmo e a rima são necessários. O próprio Maiakovsky, curiosamente, prova, de vez em quando, e com versos de rimas muito complexas, que a rima supérflua é necessária. Um enfoque puramente lógico destrói a questão da forma artística. Ora, não se deve julgá-la com o raciocínio que não vai além da lógica formal, mas com o espírito que admite o irracional, enquanto vivo e fundamental à vida. A poesia é matéria mais emocional do que racional e a psicologia humana, que absorveu os ritmos biológicos, os ritmos e as combinações rítmicas ligados ao trabalho social busca exprimi-los, sob forma idealizada, nos sons, nos cantos e nas palavras artísticas. Enquanto houver tal necessidade, as rimas e ritmos futuristas, mais flexíveis, mais audaciosos e mais variados, constituem uma conquista segura e válida. E a sua influência já ultrapassou os grupos puramente futuristas. As conquistas do futurismo, na orquestração do verso, são totalmente indiscutíveis. Não se deve esquecer que o som de uma palavra representa o acompanhamento acústico do sentido. Se os futuristas pecaram e pecam ainda na sua preferência quase monstruosa pelo som contra o sentido, trata-se somente de um entusiasmo, da doença infantil do esquerdismo, e se deve rejeitar como delírio de uma nova escola poética que sentiu de um modo novo e com ouvido agudo o som em oposição à rotina cansativa das palavras. A maioria esmagadora dos operários, hoje,não se Interessa certamente por essas questões.A maior parte da vanguarda da classe operária, com tarefas mais urgentes, está igualmente muito ocupada. Mas há amanhã. E esse amanhã exigirá uma atitude mais atenta e mais precisa,mais sábia e mais artística diante da linguagem como um instrumento fundamental da cultura - não somente diante da linguagem dd verso como da linguagem da prosa, particularmente da prosa. Uma palavra nunca encerra, precisamente, um conceito com toda a significação concreta com que o homem concebe em cada caso. Uma palavra, por outro lado, possui um som e uma forma não só para o nosso ouvido e para os nossos olhos, mas também para a nossa lógica e nossa imaginação. O pensamento só terá possibilidade de tornar-se mais preciso através de cuidadosa seleção de palavras, isto é, depois de pesá-las de todos os modos, o que significa também do ponto de vista da acústica, e combiná-las da maneira mais expressiva. Não convém, nesse terreno, proceder às cegas. Fazem-se necessários instrumentos micrométricos. A rotina, a tradição, o hábito e a negligência devem dar lugar a um trabalho sistemático em profundidade. O futurismo, no seu melhor aspecto, traduz um protesto contra a atividade empírica, ao acaso, que forma poderosa escola literária e tem representantes muito influentes em todos os campos. Numa obra ainda inédita do camarada Gorlov, que a meu ver, descreve erroneamente a origem internacional do futurismo, viola a perspectiva histórica e o identifica com a poesia proletária, resumem -se as realizações daquela escola de maneira conscienciosa e sistemática. Gorlov destaca, corretamente, que a revolução futurista na forma, nascida de uma rebelião contra a antiga estética, reflete, no plano da teoria, a revolta contra a vida estagnada e fétida, que produziu aquela estética. Essa vida também provocou em Maiakovsky, o maior poeta do futurismo, e nos seus amigos mais íntimos, uma revolta contra a ordem social que engendrou essa vida e essa estética repulsivas. Eis por que esses poetas estão, organicamente, ligados a Outubro. O esquema de Gorlov é correto. Terá, porém, que se precisar e se definir ainda mais. É verdade que novas palavras e novas combinações de palavras, novas rimas e novos ritmos tornaram-se necessários, porque o futurismo, com a sua concepção do mundo, reagrupou acontecimentos e fatos, estabeleceu novas relações entre eles e as descobriu para si mesmo. O futurismo é contra o misticismo, a deificação passiva da natureza, a preguiça aristocrática ou de qualquer outra espécie, contra o devaneio e as lamúrias. É pela técnica, pela organização científica, pela máquina, pela planificação, pela vontade, pela coragem, pela rapidez, pela precisão e pelo novo homem, armado de todas essas coisas. A conexão entre essa "revolta" estética e a revolta social e moral é direta: todas as duas se inserem, completamente, na experiência de vida da nova, jovem, ativa e não-domesticada fração da intelligentsia de esquerda, dos boêmios criadores. A rebeldia contra o caráter limitado e contra a vulgaridade da antiga vida criou um novo estilo artístico como um meio de escape, um meio de liquidá-la. Em diferentes combinações e sobre diferentes bases históricas, vimos a rebeldia da intelligentsia produzir mais um novo estilo. E terminava sempre assim. Mas, desta vez, a Revolução proletária apanhou o futurismo num certo estágio de seu crescimento e empurrou-o para a frente. Os futuristas tornaram-se comunistas. E, pelo mesmo ato, entraram na esfera dos problemas e das relações mais profundas, que transcendem os limites de seu próprio pequeno mundo, ainda não-elaborado, organicamente, no seu espírito. Por isso, os futuristas, inclusive Maiakovsky, são mais fracos, no plano da arte, aí onde aparecem melhor como comunistas. A causa não está tanto na sua origem social quanto no seu passado espiritual. Os poetas futuristas não dominaram, suficientemente, os elementos da concepção e da atitude mundial do comunismo, para dar-lhes expressão orgânica pó r meio de palavras. Essa concepção e essa atitude, por assim dizer, não lhes entraram no sangue. Daí por que, freqüentemente, marcham para derrotas artísticas e psicológicas, com pompas e muito barulho por nada. O futurismo, nas suas obras revolucionárias mais extravagantes, torna-se estilização. O jovem poeta Bezimensky, que tanto deve a Maiakovsky. dá todavia uma expressão realmente verdadeira aos pontos de vista dos comunistas: Bezimensky ainda não se formara como poeta quando veio o comunismo. Ele nasceu, espiritualmente, no comunismo.
Pode-se alegar - e alegou-se muitas vezes - que mesmo a doutrina e o programa proletários foram criados por membros da burguesia e da intelligentsia democrática. É preciso estabelecer uma diferença importante, decisiva, na matéria. A doutrina econômica e histórico-filosófica do proletariado repousa sobre um conhecimento objetivo. Se o marceneiro Bebel, um asceta, econômico na vida e no pensamento, e cujo espírito possuía o corte de uma navalha, doutor em Filosofia de uma erudição universal, como Karl Marx, formulasse a mais-valia, esta teoria apareceria, numa obra muito mais acessível, mais simples e mais unilateral. A riqueza e a variedade de conceitos, de argumentos, de imagens e de citações de O Capital revelam, sem dúvida alguma, o seu background intelectual. Mas, como se tratava de conhecimento objetivo, a essência de O Capital tornou-se propriedade de Bebel e de milhares e milhões de outros operários. No campo da poesia, ocupamo-nos do sentimento do mundo, através de imagens, e não do conhecimento científico. A vida cotidiana, o ambiente individual, o círculo das experiências pessoais, exercem, por conseguinte, influência determinante sobre a criação artística . Remodelar o mundo dos sentimentos, absorvidos desde a infância, num plano científico, é o mais difícil trabalho interior. Nem todo mundo é capaz de fazê-lo. Daí por que, no mundo, existem muitas pessoas que pensam como revolucionários e sentem como filisteus. E percebemos, na poesia futurista, mesmo na parte que se entregou inteiramente à Revolução, um revolucionarismo mais boêmio que proletário.
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Maiakovsky é um grande talento, ou, como o definiu Blok, um imenso talento. :É capaz de apresentar as coisas que sempre vemos de tal modo que parecem novas. Maneja as palavras e o dicionário como um audacioso mestre, que trabalha de acordo com suas próprias leis e sem considerar se seu trabalho de artesão agrada ou desagrada. Muitas de suas imagens, frases e expressões entraram na literatura e nela permanecerão, por muito tempo, se não para sempre. Ele possui suas próprias construções, suas próprias imagens, seu próprio ritmo e sua própria rima. O objetivo artístico de Maiakovsky revela-se, sempre, significativo e, às vezes, grandioso. O poeta introduz, no seu próprio domínio, a guerra e a revolução, o céu e o inferno. Maiakovsky é hostil ao misticismo, a todo o tipo de hipocrisia, à exploração do homem pelo homem. Suas simpatias se voltam totalmente para o operário combatente. Ele não pretende transformar-se no sacerdote da arte ou, pelo menos, num sacerdote dos princípios. Está pronto, pelo contrário, a colocar a sua arte inteiramente a serviço da Revolução.
Mas nesse grande talento, ou mais exatamente em toda a personalidade criadora de Maiakovsky, não se encontra a harmonia necessária entre os seus componentes, nenhum equilíbrio, nem mesmo o dinâmico. Maiakovsky manifesta a sua maior fraqueza onde precisaria ter o senso de proporções e a capacidade de autocrítica.
Era mais natural para Maiakovsky do que para qualquer outro poeta russo aceitar a Revolução porque ela se ajustava a todo o seu desenvolvimento. Numerosos caminhos conduzem a intelligentsia à Revolução (nem todos levam até ao fim), e por conseguinte importa definir e apreciar mais exatamente a orientação pessoal de Maiakovsky. Existe o caminho da poesia mujique, seguido pela intelligenísia e pelos caprichosos companheiros de viagem (já falamos deles). Há o caminho dos místicos, que buscam outra música mais elevada (A. Blok), e o caminho do grupo Mudança de Direção e daqueles que se reconciliaram simplesmente conosco (Chkapskaia, Chaguinian) . E também existe o caminho dos racionalistas e dos ecléticos (Briusov, Gorodetsky e Chaguinian, novamente) . Há numerosas outras vias, mas não podemos apontar todas elas. Maiakovsky veio pelo caminho mais curto, o dos boêmios rebeldes perseguidos. A Revolução, para Maiakovsky, serviu como verdadeira experiência, real e profunda. Estourou com trovões e relâmpagos sobre as mesmas coisas que Maiakovsky odiava à sua maneira e com as quais não se reconciliara. Nisso reside a sua força. O individualismo revolucionário de Maiakovsky desembocou, entusiasticamente, na Revolução proletária, mas não se confundiu com ela. Seus sentimentos subconscientes pela cidade, pela natureza e pelo mundo inteiro não são os do operário, mas os do boêmio. "A lâmpada calva da rua que levanta as meias compridas na rua", esta impressionante imagem, extremamente característica de Maiakovsky, esclarece mais sobre a natureza boêmia e urbana do poeta do que qualquer outra consideração. O tom impudente e cínico de muitas imagens, principalmente do primeiro período do poeta, traz visivelmente a marca do cabaré artístico, do café e de tudo o que a ele se associa. Maiakovsky aproxima-se mais do caráter dinâmico da Revolução e de sua rude coragem do que do caráter coletivo de seu heroísmo, de suas ações e de suas experiências. Assim como o grego antigo era antropomorfo, pensava ingenuamente que as forças da natureza se assemelhavam a ele, o nosso poeta é maiakomorfo e povoa, com a sua personalidade, os lugares, as ruas e os campos da Revolução. Tocam-se os extremos. A universalização de seu próprio ego apaga, em certa medida, os limites da personalidade e aproxima o homem da coletividade que está na extremidade oposta. Isso, porém, só é verdadeiro em certa medida. A arrogância individualista e boêmia, contrastando não com a humildade, que ninguém exige, mas com o tato e o senso da medida indispensável, corre através de tudo o que escreveu Maiakovsky. Sente-se, várias vezes, uma tensão, extraordinariamente alta, nas suas obras, mas nem sempre acompanhada de força. O poeta evidencia-se muito. Concede bem pouca independência aos acontecimentos e aos fatos: não é a Revolução que luta contra os obstáculos, e sim, ele, Maiakovsky, que realiza proezas atléticas na arena das palavras. Produz verdadeiros milagres! Mas, ao preço de esforços heróicos, de quando em quando levanta halteres notoriamente ocos.
Maiakovsky, a cada passo, fala de si mesmo, tanto na primeira quanto na terceira pessoa, como indivíduo ou dissolvendo-se na humanidade. Quando quer elevar o homem, ergue-o até Maiakovsky. Assume atitude completamente familiar diante dos maiores acontecimentos da história. É o que há de menos suportável e de mais perigoso na sua obra. Não se pode falar, no seu caso, de coturnos ou de pernas de pau: são, para ele, suportes ridiculamente pequenos. Maiakovsky tem um pé sobre o monte Branco e o outro sobre o Elbruz. Sua voz abafa a do trovão. Pode alguém se espantar quando ele trata, familiarmente, a história e, com intimidade, a Revolução? Aí está o perigo: adotando, em toda parte e em todas as coisas, padrões tão gigantescos, tonitruando (um termo favorito do poeta) do alto do Elbruz e do monte Branco, apaga as proporções de nossos assuntos terrestres, e não se pode mais distinguir o pequeno do grande. Eis por que Maiakovsky fala de seu amor, isto é, de seus sentimentos mais íntimos, como se se tratasse da migração dos povos. E, pelo mesmo motivo, é incapaz de encontrar outra linguagem, quando trata da Revolução. Aponta sempre com a alça máxima e, como qualquer artilheiro o sabe, semelhante tiro dá o mínimo de golpes no alvo e afeta, gravemente, os canhões.
É verdade que o hiperbolismo reflete, até certo ponto, o furor de nosso tempo, mas não se justifica o seu emprego indiscriminado na arte. Não se pode gritar mais forte que a Guerra ou a Revolução. É mais fácil sucumbir. O senso de medida na arte assemelha-se ao da realidade em política. A principal falta de poesia futurista, mesmo nas suas melhores obras, é a falta do senso de medida: ela perdeu a medida dos salões e ainda não encontrou a medida das praças públicas. Mas é preciso encontrá-la. Force-se a voz na praça, e ela se torna rouca, sufocada, anulando o efeito do discurso. Deve-se falar com a voz natural e não com uma voz mais forte. Pode-se empregar a voz em toda a sua extensão se se sabe como fazê-lo. Maiakovsky, freqüentemente, grita, quando deveria falar. Seus gritos, onde deveria gritar, parecem, pois, insuficientes. A gritaria e o enrouquecimento afogam a dramaticidade de sua palavra.
As poderosas imagens de Maiakovsky, embora geralmente esplêndidas, desintegram, várias vezes, o conjunto e paralisam o movimento. O poeta, seguramente, se dá conta disso e assim aspira a outro extremo: a linguagem das fórmulas matemáticas, estranha à poesia. Pode-se pensar que a auto-suficiência das metáforas, o gosto da imagem pela imagem, que o imaginismo apresenta de comum com o futurismo (que começa a parecer o nosso imaginismo das canções camponesas), tem as suas raízes no fundamento rural de nossa cultura. Relaciona-se mais com a igreja de Basílio, o Bem Aventurado, do que com uma ponte de cimento armado. Qualquer que seja a explicação histórica e cultural, não resta dúvida de que, nas obras de Maiakovsky, o que mais falta é movimento. Isso pode parecer um paradoxo, porque o futurismo se baseia inteiramente sobre o movimento. Aqui, entretanto, intervém a incorruptível dialética: o excesso de imagens impetuosas conduz à calmaria. O movimento deve estar em consonância com o mecanismo de nossa percepção, com o ritmo de nossos sentimentos, para que se possa senti-lo, física e artisticamente. Uma obra de arte deve mostrar o crescimento gradual de uma imagem, de uma idéia, de um humor, de uma trama, de uma intriga, até o ápice, e não lançar o leitor de um horizonte a outro, ainda que com ágeis golpes de metáforas. Cada frase, cada expressão e cada imagem esforçam-se, em Maiakovsky, para estabelecer um limite, atingir um máximo, um cume. E por isso, precisamente, o conjunto não tem ápice. O espectador sente-se como se o cortassem em pedaços. E o todo se lhe escapa. Escalar um monte é penoso, mas se justifica. Um passeio através de terreno acidentado não cansa menos e dá menos prazer. As obras de Maiakovsky não possuem um ponto culminante, não obedecem a nenhuma disciplina interna. As partes recusam obediência ao todo. Cada uma tenta emancipar-se, desenvolver sua própria dinâmica, sem considerar a harmonia do conjunto. E não restam nem conjunto nem dinâmica. Os futuristas ainda não acharam a expressão sintética da linguagem e das metáforas nas suas obras.
150. 000. 000 devia ser o poema da Revolução. Mas não o é. A obra, grande na sua intenção, está minada pela fraqueza e pelos defeitos do futurismo. O autor queria escrever uma epopéia do sofrimento das massas, do seu heroísmo, a epopéia da revolução impessoal dos 150.000.000 de Ivãs. E não assinou: Ninguém é o autor de meu poema. Essa impessoalidade convencional nada modifica: o poema, de fato, continua profundamente pessoal, individualista, e isso, essencialmente, no mau sentido dos termos. O poema contém muito de arbitrário e de gratuito. Imagens como: "Wilson nadando na gordura", "Todo habitante em Chicago tem ao menos o título de general", "Wilson não se empanturra, engorda, sua barriga cresce aos poucos" etc. Essas imagens, aparentemente simples e grosseiras, não são de todo populares, e, em todo caso, não pertencem às massas de hoje. O operário, ao menos aquele que lerá o poema de Maiakovsky, viu a fotografia de Wilson. Wilson é magro, embora acreditemos que absorva suficientemente proteínas e gorduras. O operário, igualmente, leu Upton Sinclair e sabe que, em Chicago, existem, além dos generais, trabalhadores em matadouros. Sente-se, a despeito de seu hiperbolismo tonitruante, nessas imagens gratuitas e primitivas, certo ceceio semelhante àquele que os adultos usam com as crianças, que transparece nessas imagens, não provém da exuberante imaginação popular, mas da asneira boêmia. Wilson tem uma escada. "Se começas a subi-la, quando jovem, atingirás o seu alto ao envelheceres." Ivã ataca Wilson, no "campeonato mundial da luta das classes".
Wilson possui "pistolas de quatro bocas e um sabre com sessenta dentes de serra", mas Ivã tem "uma só mão, pois a outra enfiou na sua cintura". Ivã, sem armas, a mão na cintura, contra o infiel armado de pistolas, é um tema russo muito velho! Não estamos diante de llya Murometz? (8) A menos que este não seja Ivã, o Bobo, que avança descalço contra a infernal maquinaria alemã? Wilson fere-o com o sabre: Fere-o quatro vezes... Mas o homem ferido, subitamente, se levanta. E assim por diante. Como estão deslocadas e são particularmente frívolas essas baladas primitivas e esses contos de fada, transplantados para a Chicago industrial e aplicados à luta de classes! Tudo isso se pretendia titânico. É de fato atletismo. Atletismo duvidoso, que maneja pesos ocos. O campeonato mundial de luta de classe: Onde está a autocrítica? Um campeonato é um espetáculo para feriados, onde, freqüentemente, se usam truques e combinações. Nem a imagem nem o termo, portanto, convém aqui. A luta titânica de cento e cinqüenta milhões de homens resultou numa paródia de lenda e num match de circo. A paródia não é intencional, mas isso nada justifica. As imagens, que a nada visam, ou seja, aquelas que não se formam interiormente, devoram a idéia sem deixar traços e a malbaratam, tanto no plano artístico como no plano político. Por que Ivã, contra pistolas e sabres, conserva a mão na cintura? Por que tal desprezo pela técnica? Ivã, certamente, está menos armado do que Wilson. Mas é precisamente por isso que deve servir-se de suas duas mãos. E, se não cai por terra, é porque, em Chicago, não só existem generais, mas também operários que, em grande parte, são contra Wilson e a favor de Ivã. O poema não o mostra. Procurando obter uma imagem aparentemente monumental, o autor destrói sua verdadeira essência. Às pressas e de passagem, isto é, uma vez mais sem motivo, o autor divide o mundo inteiro em duas classes: de uma parte, Wilson, nadando na gordura, com arminhos, castores, com grandes corpos celestes, e, de outra, Ivã, com blusões e milhões de estrelas da Via-Láctea. "Para os castores - as pequenas frases dos decadentes do mundo inteiro. Para os blusões - a frase de bronze dos futuristas." Ainda que o poema seja expressivo e possua algumas frases fortes, apropriadas, metáforas brilhantes, ele, infelizmente, não possui, na verdade, nenhuma frase de bronze para os blusões. Por falta de talento?
Não. Por falta de uma imagem da Revolução, forjada pelos nervos e pelo cérebro, de uma imagem à qual a expressão se subordinasse. O autor joga como um atleta, apanhando e lançando cada vez uma diferente imagem. "Acabaremos contigo, mundo romântico!", ameaça Maiakovsky. Bem. É preciso, com efeito, pôr fim ao romantismo de Oblomov e de Karataiev. Mas como? "Ele é velho, mate-o e faça um cinzeiro do seu crânio." Aí não existe romantismo? E do mais negativo? Crânios servindo de cinzeiros não são cômodos nem higiênicos. E afinal essa selvajaria não tem sentido. O poeta deve estar embebido de romantismo para fazer semelhante emprego dos ossos de um crânio. Ele, em todo caso, não trabalhou nem unificou as suas imagens. "Roubai a riqueza de todos os mundos!" É nesse tom familiar que Maiakovsky fala do socialismo. Mas roubar significa agir como ladrão. Esta palavra se ajusta, portanto, quando se trata da expropriação da terra e das fábricas pela sociedade? Está, notavelmente, deslocada. O autor usa tais vulgaridades para ombrear-se com o socialismo e a Revolução. Quando dá tapas nas costas, familiarmente, dos cento e cinqüenta milhões de Ivãs, ele não eleva o poeta a dimensões titânicas, mas reduz Ivã a somente um oitavo de página. A familiaridade não exprime a profunda intimidade, pois várias vezes apenas evidencia a inconstância política ou moral. Laços sérios e profundos com a Revolução excluem o tom familiar.
Engendrariam o que os alemães denominam o patético da distância. O poema contém frases fortes, imagens audaciosas e expressões apropriadas. O "réquiem triunfal da paz" final é talvez a parte mais poderosa. Mas, na realidade, uma falta de movimento interior domina o conjunto. As contradições não se esclarecem para, em seguida, se resolverem. Eis um poema sobre a Revolução ao qual falta movimento! As imagens, que vivem isoladamente, chocam-se e titubeiam. Sua hostilidade não decorre da matéria histórica, mas do desajuste interior com a filosofia revolucionária da vida. Quando, portanto, se chega ao fim do poema, não sem dificuldade, diz-se que o poeta, se usasse um pouco de precaução e autocrítica, poderia ter escrito uma grande obra! Talvez esses defeitos fundamentais não decorram das qualidades pessoais de Maiakovsky, mas devido ao fato de que ele trabalha num mundo fechado. Nada é tão adverso à autocrítica e à precaução que a vida de cenáculo. As peças satíricas de Maiakovsky, igualmente, não conseguem penetrar a essência das coisas e suas relações. Sua sátira é picante e superficial. Um caricaturista, para dizer alguma coisa, deve possuir mais que o domínio do lápis. Ele deve conhecer, como seu bolso, o mundo que desmascara.
Saltikov conhecia bem a burocracia e a nobreza! Uma caricatura aproximada (99 % das caricaturas soviéticas o são) é como a bala que erra o alvo pela distância de um dedo ou mesmo de um palmo: quase tocou o alvo, portanto errou o tiro. A sátira de Maiakovsky é assim. Suas notas picantes, com o tom de aparte, erram o alvo, às vezes pela distância de um dedo e outras vezes por um palmo Maiakovsky pensa seriamente que se pode abstrair o cômico de seu suporte e reduzi-lo à aparência.
No prefácio do seu conto satírico, ele mesmo apresenta "um esquema do riso". O que provoca um sorriso de perplexidade, à leitura desse esquema, é o fato de que ele não contém, absolutamente, nada de engraçado. E se alguém apresentasse um esquema melhor do que o de Maiakovsky, ainda subsistiria a diferença entre o riso provocado por uma sátira que acerta o alvo daquele que resulta de uma cócega verbal.
Maiakovsky ergueu-se da boemia, que o impulsionou, para verdadeiras obras de criação. Mas o galho em que subiu é individual. O poeta revolta-se contra a sua condição, contra a dependência material e moral na qual se encontram sua vida e, sobretudo, seu amor. Ofendido, indignado contra os senhores da situação, que o privaram de sua amada, ele chega a apelar para a Revolução e prediz o seu desencadear sobre uma sociedade que tira a liberdade de um Maiakovsky.
A Nuvem de Calças, poema de um amor infeliz, é, artisticamente, sua obra mais significativa, a mais audaciosa e a mais prometedora como criação. É difícil crer que um jovem de 22 ou 23 anos escrevesse um texto de uma força tão intensa e com uma forma tão original. Guerra e Universo, Mistério Burlesco e 150.000.000 são muito mais fracos justamente porque Maiakovsky deixou a sua órbita individual para entrar na órbita da Revolução. Pode-se louvar o seu esforço porque não existe de fato outro caminho para ele. A Esse Propósito retorna ao tema do amor pessoal, mas está alguns passos atrás da Nuvem, e não à frente. Só uma ampliação do campo de conhecimento e um aprofundamento do conteúdo artístico podem manter o equilíbrio num plano muito mais elevado. Não se deve esquecer, porém, que mudar de direção e enveredar, conscientemente, por um novo caminho é uma coisa muito difícil. A técnica de Maiakovsky, nos últimos tempos, apurou-se, incontestavelmente, mas também se tornou mais estereotipada. Mistério Burlesco e 150.000.000 contêm, ao lado de frases grandiosas, fraquezas fatais, mais ou menos compensadas pela retórica e por alguns passos de dança na corda verbal. A qualidade orgânica, a sinceridade, o grito interior, que sentimos em A Nuvem, não existem mais. "Maiakovsky repete-se", dizem alguns. "Maiakovsky virou poeta oficial", exultam, maldosamente, outros. Será verdade? Não nos apressa mos a fazer profecias pessimistas. Maiakovsky não é mais um adolescente, certo, mas é um jovem ainda. Isso nos autoriza a não fechar os olhos sobre as dificuldades que se encontram no seu caminho. Ele não reencontrará a espontaneidade criadora que brota como vivo manancial em A Nuvem. Não há motivo, entretanto, para lamentar. A espontaneidade juvenil, geralmente, cede lugar, na maturidade, a um domínio de si mesmo, que consiste não só num sólido conhecimento da língua, mas também numa larga visão da vida e da história, de uma compreensão profunda do mecanismo da vida coletiva e das forças individuais, das idéias, dos temperamentos e das paixões. Esse domínio não combina com o diletantismo social, a gritaria, a falta de respeito por si próprio, a fanfarronada enfadonha ou a brincadeira de gênios, que fazem truques e malabarismos nos cafés da intelligentsia.
Se a crise do poeta - porque crise existe - se resolve por sábio discernimento, que diferencia o particular do geral, então o historiador da literatura dirá que Mistério Burlesco e 150.000.000 só marcaram uma baixa de tensão inevitável e temporária na curva de uma estrada que continua a subir. Desejamos, sinceramente, que Maiakovsky dê razão ao historiador do futuro.
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Quando se quebra um braço ou uma perna, os ossos, os tendões, os músculos, as artérias, os nervos e a pele não se rompem segundo uma só linha, da mesma forma que não se colam novamente e saram ao mesmo tempo. Quando se produz uma fratura revolucionária na vida da sociedade, não existe simultaneidade nem simetria de processo, quer na ideologia social, quer na estrutura econômica. As premissas ideológicas, necessárias à Revolução, formam-se antes do seu rompimento, enquanto as suas mais importantes conseqüências ideológicas só aparecem muito tempo depois. Seria, por conseguinte, falta de seriedade estabelecer, baseando-se em analogias e comparações formais, um tipo de identidade entre futurismo e comunismo e deduzir daí que o futurismo é a arte do proletariado. Devemos rejeitar tais pretensões. Isso não significa desprezo pelas obras dos futuristas. Elas constituem marcos necessários à formação de uma nova.e grande literatura, da qual compõem apenas um episódio significativo na sua evolução. Basta, para convencer disso, abordar-se a questão, mais concretamente, no plano histórico. A crítica de que as suas obras são inacessíveis às massas, os futuristas respondem que O Capital, de Marx, também o é. Mas não têm razão. Ainda faltam às massas, evidentemente, cultura e formação estética, às quais elas só lentamente se elevarão. Esta representa apenas uma das causas pelas quais o futurismo lhes permanece inacessível. Há outra: o futurismo, nos seus métodos e nas suas formas, leva, claramente, as marcas deste mundo ou, melhor, deste pequeno mundo, em que nasceu e do qual pela lógica das coisas - psicologicamente e não logicamente - hoje ainda não saiu. É tão difícil separar o futurismo de sua hipótese intelectual, como a forma do conteúdo. Se isso acontecesse, o futurismo sofreria uma transformação qualitativa tão profunda que não mais seria futurismo. E acontecerá. Mas não amanhã. Mesmo agora se pode assegurar, todavia, que muito no futurismo terá grande utilidade e poderá servir para um renascimento da arte, com a condição de que aprenda a manter-se sobre as suas pernas, sem tentar impor-se por decreto governamental, como quis fazer no início da Revolução. As novas formas devem encontrar, por si mesmas e com independência, acesso à consciência dos elementos avançados da classe operária, na medida em que estes, culturalmente, se desenvolvam. A arte não pode viver nem se desenvolver sem uma atmosfera de simpatia. É por essa via não por outra - que se desdobra um processo complexo de mútuas relações. A elevação do nível cultural da classe operária ajudará e influenciará esses inovadores que realmente têm alguma coisa a dizer. A afetação, inevitável quando reinam os conciliábulos, desaparecerá, e os germes vivos produzirão formas novas que permitam resolver os novos problemas artísticos. Essa evolução supõe, antes de tudo, a acumulação de bens culturais, o aumento do bem-estar e o desenvolvimento da técnica. Não existe outro caminho. Não se pode pensar, seriamente, que a história conservará as obras dos futuristas para servir, depois de muitos anos, às massas então amadurecidas. Isso seria o mais puro passadismo. Quando chegar essa época, que não virá imediatamente e na qual a educação estética e cultural das massas trabalhadoras suprimirá o abismo entre a inteligência criadora e o povo, a arte apresentará um aspecto diferente do de hoje. O futurismo, nesse processo, aparecerá como um elo indispensável. Isso é pouca coisa?
O movimento social, ao mesmo tempo, vivia, oficialmente, segundo o automatismo da véspera. A paz armada, com as indolências da diplomacia, o oco sistema parlamentar, a política interna e externa baseadas num sistema de válvulas de segurança e de freios, tudo isso pesava, duramente, sobre a poesia, quando o ar, carregado de eletricidade acumulada, pronunciava a iminência de grandes explosões. O futurismo deu o sinal premonitório na arte.
Observa-se um fenômeno que se repetiu mais de uma vez na história: os países atrasados, que não possuem um grau especial de cultura, espelhavam na sua ideologia as conquistas dos países avançados, com maior brilho e maior força. Assim o pensamento alemão dos séculos XVIII e XIX refletiu as realizações econômicas da Inglaterra e os avanços políticos da França. O futurismo, da mesma forma, adquiriu mais brilhante expressão não na América ou na Alemanha, mas na Itália e na Rússia.
A arte, com exceção da Arquitetura, só se baseia na técnica, em última instância, isto é, na medida em que a técnica serve de fundamento para todas as superestruturas. A dependência prática da arte, principalmente a das palavras, diante da técnica, não conta. Pode-se escrever um poema que cante os arranha-céus, os dirigíveis e os submarinos, num recanto afastado de qualquer província russa, sobre um papel amarelo e com um pedaço de lápis. Basta que os arranha-céus, os dirigíveis e os submarinos existam na América para inflamar a imaginação ardente dessa província. Nenhum material se transporta com maior facilidade do que a linguagem.
O futurismo nasceu nos meandros da arte burguesa. E não podia nascer de outra forma. Seu caráter de oposição violenta não contradiz esse fato. A intelectualidade é extremamente heterogênea. Toda escola de arte reconhecida recebe, ao mesmo tempo, uma boa remuneração. É dirigida por mandarins com os seus pequenos botões. Esses mandarins da arte, geralmente, expõem os métodos de suas escolas com a maior sutileza, esgotando, no mesmo golpe, sua provisão de pólvora. Então sobrevem alguma alteração objetiva, uma sublevação política ou uma tempestade social, e excitam-se a boêmia literária, a juventude, os gênios em idade de prestar o serviço militar, que, amaldiçoando a cultura burguesa, farta e vulgar, sonham, secretamente, com alguns botões para si, se possível dourados.
Aqueles estudiosos, que, procurando definir a natureza social do futurismo nos seus primórdios, dão importância decisiva aos protestos violentos contra a vida e a arte burguesas, não conhecem, suficientemente, a história das tendências literárias. Os românticos, franceses ou .alemães, falavam sempre, asperamente, da moralidade burguesa e da rotina. Ostentavam cabelos compridos, a tez esverdeada, e Théophile Gautier, para acabar de cobrir de vergonha a burguesia, portava sensacional colete vermelho. A blusa amarela dos futuristas é sem dúvida alguma a sobrinha-neta do colete romântico, que tanto horror suscitou entre os papais e as mamães. Sabe-se que nenhum cataclismo seguiu esses protestos de cabelos longos e colete vermelho do romantismo, e a opinião pública burguesa adotou, sem prejuízo, tais cavalheiros e canonizou-os nos seus livros escolares.
É extremamente simples contrastar a dinâmica do futurismo italiano, e suas simpatias pela Revolução, com o caráter decadente da burguesia. Não se deve representar a burguesia como um velho gato prestes a morrer. Não. A besta do imperialismo é audaciosa, ágil e tem garras. Será que a lição de 1914 já foi esquecida? A burguesia, para fazer a sua guerra, utilizou, em grande parte, os sentimentos e humores, que, por natureza, se destinavam a nutrir a rebelião. Pintou-se a guerra, na França, como o arremate da Grande Revolução. A burguesia efetivamente não organizou revoluções em outros países? Na Itália, os intervencionistas (isto é, os que eram pela intervenção na guerra) eram os revolucionistas, ou seja, republicanos, maçons, sociais-chauvinistas e futuristas.
Finalmente, o fascismo italiano não chegou ao poder por métodos revolucionários, acionando as massas, multidões de pessoas, fortalecendo-as e armando-as? Nem por acidente nem por malentendido o futurismo italiano desembocou na torrente do fascismo. Tudo estava conforme a lei de causa e efeito. (*)
O futurismo russo nasceu numa sociedade que ainda cursava a escola preparatória da luta contra Rasputin e se aprestava para a revolução democrática de fevereiro de 1917 (1) . Isso trouxe vantagens ao nosso futurismo. Ele assimilou ritmos de movimentos, de ação, de ataques e de destruição ainda imprecisos. Conduziu a luta por um lugar ao sol com mais dureza, resolução e barulho do que todas as escolas precedentes, o que se conciliava com o atavismo dos seus rumores e dos seus pontos de vista. O jovem futurista, de certo, não ia às fábricas, mas fazia muito ruído nos cafés, derrubava estantes de música, enfiava a blusa amarela, pintava suas faces e, vagamente, ameaçava com o punho.
A Revolução proletária na Rússia eclodiu antes que o futurismo se libertasse de suas infantilidades, de suas blusas amarelas, de sua excitação, e antes que o reconhecessem, oficialmente, isto é, antes que o transformassem numa escola artística, politicamente inofensiva, de estilo aceitável. A tomada do poder pelo proletariado surpreendeu o futurismo no momento em que ainda o perseguiam. Essa circunstancia empurrou-o para os novos senhores da situação, enquanto sua filosofia, isto é, sua falta de respeito pelos valores antigos e sua dinâmica, facilitava o seu contato e o aproximava da Revolução. Mas o futurismo levou consigo, na nova etapa de seu desenvolvimento, as características de sua origem social, a boêmia burguesa.
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O futurismo, na vanguarda da literatura, constitui um produto da poesia do passado como qualquer outra escola literária da atualidade. Dizer que o futurismo libertou a arte de suas ligações milenares com a burguesia, como escreveu o camarada Chujak, é apreciar, de maneira vulgar, esses milênios. O apelo dos futuristas para o rompimento com o passado, para livrar-se de Pushkin, para liquidar a tradição etc., possui um significado na medida em que se dirige à velha casta literária, ao círculo fechado da intelligentsia. O apelo, em outros tempos, só tem sentido na medida em que os futuristas procuram cortar o cordão umbilical que os liga aos pontífices da tradição literária burguesa.
Esse apelo, entretanto, torna-se um disparate evidente tão logo o dirigem ao proletariado. A classe operária não rompe e não pode romper com a tradição literária, porque não se encontra presa, de modo algum, a essa tradição. A classe operária não conhece a velha literatura. Deve ainda familiarizar-sé com ela, dominar Pushkin, absorvê-lo e, assim, superá-lo. A ruptura dos futuristas com o passado representa, sobretudo, uma tempestade no mundo fechado da intelligentsia, que se ergueu sobre Pushkin, Fet, Tiutschev, Briusov, Balmont e Blok; (2) que são passivos, não porque uma veneração supersticiosa pelas formas do passado a infectasse, mas porque ela não tem nada em si que exija novas formas. Simplesmente nada tem a dizer. Repete sentimentos antigos com palavras novas. Os futuristas agiram bem quando com ela romperam. Mas não é preciso transformar essa ruptura numa lei de desenvolvimento universal.
Na exagerada recusa do passado pelos futuristas não se esconde um ponto de vista do operário revolucionário, mas o niilismo do boêmio. Nós, marxistas, vivemos com as tradições. Nem por isso deixamos de ser revolucionários. Estudamos e guardamos vivas as tradições da Comuna de Paris, mesmo antes de nossa primeira revolução. Depois as tradições de 1905 a elas se somaram, e delas nos alimentamos enquanto preparávamos a segunda revolução. E, remontando-nos a tempos mais distantes, ligamos a Comuna às Jornadas de junho de 1848 e à grande Revolução Francesa.
Também, no domínio da teoria, baseamo-nos, através de Marx, em Hegel e nos clássicos da Economia inglesa. Nós, que nos educamos e iniciamos a luta numa época de desenvolvimento orgânico da sociedade, vivemos entre as tradições revolucionárias. Mais de uma tendência literária nasceu às nossas vistas, declarou impiedosa guerra ao espírito burguês e olhou-nos de soslaio.
Assim o vento como gira em torvelinhos, dentro dos seus próprios círculos, esses revolucionários literários, destruidores de tradições, reencontraram sempre os caminhos da Academia. A Revolução de Outubro parecia à intelligentsia, inclusive à sua esquerda literária, como a destruição total do mundo conhecido, esse mesmo mundo com o qual ela de vez em quando rompia, buscando criar novas escolas, e ao qual, invariavelmente, retornava. Para nós, ao contrário, a Revolução encarnava uma tradição familiar, assimilada. Abandonando um mundo que, teoricamente, rejeitávamos e, na prática, minamos, penetraríamos em outro, com o qual nos familiarizamos, pela tradição e pela imaginação. O tipo psicológico do comunista, homem político revolucionário, opõe-se, nisso, ao do futurista, revolucionário inovador da forma. Eis a fonte dos mal-entendidos que nos separam. Omal não reside na negação, pelo futurismo, das santas tradições da intelligentsia. Reside, ao contrário, no fato de que o futurismo não se sente integrado na tradição revolucionária. O futurismo caiu logo que entramos na Revolução.
A situação não é tão desesperada. O futurismo não retornará aos seus círculos porque eles não existem mais. E essa circunstancia, não sem significação, dá ao futurismo a possibilidade de um renascimento, de entrar na nova arte, não como a tendência determinante, mas como um dos seus componentes importantes.
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O futurismo russo formou-se de diversos elementos muito independentes uns dos outros e,por vezes, contraditórios. Há construções e ensaios filológicos consideravelmente imbuídos de arcaísmos (Khlebnikov, Kruchenikh), que, em todo caso, não pertencem à poesia; uma poética, isto é, uma teoria dos procedimentos e métodos da arte das palavras; uma filosofia e, mesmo, duas filosofias da arte, uma formalista (Shklovsky), e outra, com tendências marxistas (Arvatov, Chujaketc.) ; enfim, a própria poesia, criação viva. Não consideramos a insolência literária como um elemento independente: ela geralmente se combina com um desses elementos fundamentais.Quando Kruchenikh diz que sílabas desprovidas de sentido - dir, bul, tschil - contém mais poesia do que todo Pushkin (ou qualquer coisa parecida), isso se encontra a meio caminho entre a poética filológica e, me perdoem, a insolência de mau gosto. A idéia de Kruchenikh, sob uma mais sóbria forma, significa que a orquestração do verso na chave do dir, bul, tschil convém mais à estrutura da língua russa e ao espírito de seus sons do que a orquestração de Pushkin, inconscientemente influenciado pelo idioma francês. É evidente, quer seja justo ou não, que dir, bul, tschil não constituem um extrato de obra futurista; assim realmente não há nada a comparar. Talvez alguém escreva poemas nessa chave musical e filológica que se tornem superiores aos de Pushkin. Mastemos de esperar.A criação de palavras de Khlebnikov e de Kruchenikh está, igualmente, fora da arte poética.
É uma filologia de caráter duvidoso, em parte fonética, mas de nenhum modo poesia. A língua certamente vive e se desenvolve, criando palavras dela mesma e eliminando as antigas. Ela o faz,entretanto, de modo muito cauteloso, calculado, de acordo com as suas estritas necessidades. Toda grande época nova impulsiona a linguagem. Esta absorve, precipitadamente, enorme número de neologismos e, depois, procede a uma espécie de registro, rejeitando tudo o que é supérfluo e estranho. A fabricação, por Khlebnikov ou Kruchenikh, de dez ou cem novas palavras, derivadas de raízes existentes, pode despertar certo interesse filológico. Pode, numa certa e muito pequena medida, facilitar o desenvolvimento do idioma e, mesmo, da linguagem poética, anunciar um período no qual a evolução da fala se dirigirá mais conscientemente. Esse mesmo trabalho,subsidiário para a arte, está fora da poesia.Não existe razão alguma para cair-se num estado de êxtase piedoso aos sons dessa poesia supra-racional, que se assemelha a exercícios e escalas musicais de virtuosidade verbal, úteis talvez nos cadernos dos alunos, mas totalmente impróprios para o concerto. Tentar, em todo caso,substituir a poesia pelos exercícios da super-razão acabaria por estrangular a poesia. O futurismo não seguirá esse caminho. Maiakovsky, que indiscutivelmente é um poeta, toma geralmente suas palavras no dicionário clássico de Dahl, e muito raramente no vocabulário de Khlebnikov ou de Kruchenikh. E, na medida em que passa o tempo, Maiakovsky emprega cada vez mais esparsamente construções de palavras arbitrárias ou neologismos.Os problemas levantados pelos teóricos do grupo Lef (3) a respeito da arte e da indústria das máquinas, da arte que não embeleza a vida, mas a modela, da influência sobre o desenvolvimento da linguagem e a formação sistemática de palavras da biomecânica como educação das atividades do homem no sentido de maior racionalidade - e por conseguinte de maior beleza - são todos problemas extremamente importantes e interessantes na perspectiva da edificação de uma cultura socialista. Lef, infelizmente, colore a discussão desses problemas com um sectarismo utópico. Mesmo quando definem, corretamente, a tendência geral do desenvolvimento, no domínio da arte ou da vida, os teóricos daquele grupo antecipam a história e opõem o seu esquema ou sua receita ao que existe. Eles não dispõem, assim, de nenhuma ponte para o futuro. Lembram os anarquistas que,antecipando a ausência de Governo no futuro, opõem seus esquemas à política, aos parlamentos e adversas outras realidades, que o atual barco do Estado deve, evidentemente, jogar, na sua imaginação, pelas amuradas . Eles, na prática, enterram o nariz, antes de libertar o rabo. Maiakovsky prova, com versos complicados e rimados, o caráter supérfluo do verso e da rima, e promete escrever fórmulas matemáticas, embora haja matemáticos para essa tarefa. Quando Meyerhold,(4) experimentador apaixonado, o furioso Vissarion Bielinsky do teatro, produz em cena movimentos semi-ritmicos, os quais ensinou a atores muito fracos no diálogo, e chama a isso de biomecânica, o resultado é um aborto. Precipitar o que só pode desenvolver-se como parte integrante do futuro, e materializar apressadamente essa antecipação parcial, no presente estado de miséria, diante das luzes mortiças da ribalta, apenas dá a impressão de diletantismo provinciano. E não existe nada mais hostil à nova arte do que o provincianismo e o diletantismo.
A nova Arquitetura constituir-se-á de dois elementos: um novo problema e uma nova técnica de utilização dos materiais, em parte novos, em parte antigos. O novo problema não será a construção de um templo, de um castelo ou de um hotel particular, mas sobretudo de uma casa popular, de um hotel popular, de um domicílio, de uma casa coletiva, de uma escola de grandes dimensões. A situação econômica do país, no momento em que a Arquitetura estiver prestes a resolver seus problemas, determinará a utilização dos materiais. Arrancar ao futuro a construção arquitetônica implica um ato arbitrário, mais ou menos inteligente e individual. E um novo estilo não pode associar-se ao arbítrio individual.
Os próprios escritores de Lef sublinham corretamente que um estilo novo se desenvolve onde a indústria mecânica serve às necessidades do consumidor impessoal. O aparelho telefônico é um exemplo de novo estilo. Os vagões-leito, as escadas, os elevadores e as estações do metrô, eis, indiscutivelmente, os elementos de um novo estilo, assim como as pontes metálicas, os mercados cobertos, os arranha-céus e os guindastes . Assim, fora de um problema prático e de um trabalho sério para resolvê-lo, não se pode criar um novo estilo arquitetônico. A tentativa de criar tal estilo, deduzindo-o da natureza do proletariado, de seu coletivismo, de seu ativismo, de seu ateísmo etc., não passa do mais puro idealismo e só exprime o ego de seu autor, um alegorismo arbitrário e sempre o mesmo velho diletantismo provinciano.
O erro de Lef, ou pelo menos de alguns de seus teóricos, aparece-nos sob a sua forma mais generalizada, quando exigem, num ultimato, a fusão da arte com a vida. Não é preciso demonstrar que a separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de classe da sociedade. A sua auto-suficiência, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: da transformação da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evolução da arte, no futuro, seguirá o caminho de uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, com as festividades populares e com a vida coletiva. É bom que Lef o compreenda e o exponha. Mas não apresentando à arte do presente um ultimato a curto prazo, como o fazem, ao dizerem: deixai o vosso ofício e fundi-vos com a vida. Os poetas, os pintores, os escultores, os atores deveriam, então, parar de refletir, de representar, de escrever poemas, de pintar quadros, de talhar esculturas. de exprimir-se diante da ribalta e introduzir sua arte diretamente na vida? Como? Onde? Por que portas? É preciso, seguramente, aplaudir toda tentativa de incrementar, tanto quanto possível, o ritmo, o som e a cor nas festividades populares, nos comícios e nas manifestações. Que se tenha ao menos, porém, um pouco de imaginação histórica para compreender que mais de uma geração virá e desaparecerá entre a pobreza econômica e cultural dos dias de hoje e o momento em que a arte se fundirá com a vida, isto é, quando a vida enriquecerá em proporções tais que se modelará, inteiramente, na arte. Para o bem ou para o mal, a arte como profissão subsistirá por muito tempo ainda, servindo de instrumento da educação artística e social das massas, de seu prazer estético - e isso ocorrerá não somente com a pintura e a poesia lírica, mas também com o romance, a comédia, a tragédia, a escultura, a sinfonia. Rejeitar a arte como forma de descrever e de imaginar o conhecimento, porque se se opõe à arte burguesa contemplativa e impressionista dos últimos decênios, significa arrebatar às mãos da classe que construiu uma nova sociedade uma ferramenta da maior importância. A arte, dizem-nos, não é um espelho, mas um martelo. Ela não reflete. Modela.
Ensina-se o manejo do martelo com o auxílio do espelho, de uma película sensível que registra todas as etapas do movimento. A fotografia e a cinematografia, graças à sua força descritiva, tornam-se instrumentos poderosos de educação no domínio do trabalho. Se não se pode dispensar o espelho, mesmo para barbear-se, como construir ou reconstruir sua vida sem o espelho da literatura? Ninguém, certamente, pede à nova literatura que tenha a impassibilidade de um espelho.
Quanto mais profunda a literatura, quanto mais imbuída do desejo de modelar a vida, tanto mais, dinâmica e significativamente, poderá pintar a vida. Que significa recusar as experiências, ou seja, recusar a psicologia individual na literatura e no teatro? Eis um protesto tardio e de há muito desusado da ala esquerda da intelligentsia contra o realismo passivo de Checov e o simbolismo sonhador. Se as experiências de Tio Vânia (5) perderam um pouco do seu brilho - e isso, infelizmente, ocorreu - também é certo que ele não é o único a possuir um mundo interior. De que modo, sobre que bases e em nome de que arte se pode voltar as costas ao mundo interior do homem de hoje que construiu um mundo exterior e, assim, se reconstruiu a si mesmo? Se a arte não ajudasse esse novo homem a educar-se, a fortificar-se e a aperfeiçoar-se, para que então serviria? E como pode organizar o mundo interior se não o penetra e não o reproduz? Aqui o futurismo repete somente suas próprias ladainhas que, agora, estão completamente superadas.
Pode-se dizer o mesmo da vida quotidiana. O futurismo levantou, inicialmente, um protesto contra a arte dos mesquinhos realistas, que se comportavam na vida como parasitas. A literatura estava sufocada e tornava-se estúpida no pequeno mundo estagnado do advogado do estudante, da mulher amorosa, do funcionário publico, do senhor Peredonov (6),e de seus sentimentos, de suas alegrias e de suas dores. Deve-se, porém, levar o protesto contra os que vivem como parasitas ao ponto de separar a literatura das condições e das formas da vida humana? O protesto futurista contra um realismo superficial justificava-se, historicamente, na medida que abria caminho a uma nova reconstrução artística da vida, a uma destruição e a uma reconstrução sobre novos eixos. É curioso que, enquanto negue que a missão da arte consiste em pintar a vida, Lef cite Nepoputschitsa, de Brik, como um modelo de prosa. Que é essa obra senão um quadro da vida quotidiana, na forma de uma crônica quase comunista? O mal não reside no fato de que os comunistas ali não apareçam mansos como cordeiros ou duros como o aço, mas no fato de que, entre o autor e o meio vulgar que ele descreve, não se percebe um mínimo de perspectiva. Para que a arte possa transformar como também refletir, deve haver certa distância entre o artista e a vida, da mesma forma que entre o revolucionário e a realidade política.
Em resposta às criticas, às vezes mais insultuosas do que convincentes, o camarada Chujak destaca o fato de que Lef está engajado num processo de contínua busca. Sem dúvida Lef procura mais do que encontra. Isso, porém, não é razão suficiente para que o Partido faça o que lhe recomenda Chujak com insistência: canonizar Lei ou uma de suas alas como arte comunista. É tão impossível canonizar pesquisas como armar um regimento com uma invenção não-terminada.
Significa isso que Lef se encontra num falso caminho e que nada temos a fazer com esse movimento? Não. Não se trata de que o Partido tenha idéias definidas e fixas sobre as questões da arte do futuro, que um certo grupo sabotaria. Não é esse o caso. O Partido não tem e não pode ter decisões prontas sobre a versificação, a evolução do teatro, a renovação da linguagem literária, o estilo arquitetônico etc., assim como, nos outros setores, não tem nem pode ter decisões prontas sobre o melhor adubo, a mais correta organização dos transportes ou as metralhadoras mais perfeitas. No que concerne a metralhadoras, transportes e adubos, decisões práticas, imediatamente, se impõem. Que faz então o Partido? Designa alguns de seus membros para a tarefa de estudar e resolver esses problemas e controla-os pelos resultados práticos de suas atividades. A questão, no campo da arte, é, ao mesmo tempo, mais simples e mais complexa. No que se refere à utilização política da arte ou à necessidade de impedir tal utilização pelos nossos inimigos, o Partido tem, suficientemente, experiência, perspicácia, decisão e recursos. Mas o desenvolvimento real da arte e da luta por novas formas não faz parte de suas tarefas e preocupações. O Partido não encarrega ninguém desse trabalho. Existem, no entanto, alguns pontos de contatos entre os problemas da arte, da política, da técnica e da economia, cujo estabelecimento se torna necessário para determinar a interdependência interna entre os problemas. O grupo Lef ocupa-se desse trabalho. Esse grupo salta, mergulha de um lado e do outro e - diga-se sem o ofender - exagera no domínio da teoria. Não exageramos, contudo, e não estamos prestes a exagerar em questões muito mais vitais? E tentamos, seriamente, corrigir os erros de tratamento ou do entusiasmo partidário no trabalho prático? Não temos nenhuma razão para duvidar de que o grupo Lef se esforça, seriamente, para trabalhar no interesse do socialismo, de que se interessa, profundamente, pelos problemas das artes e de que deseja orientar-se por critérios marxistas . Por que então começar com a ruptura e não com o esforço para influenciá-lo e assimilá-lo? A questão não requer urgência. O Partido tem muito tempo para proceder a um exame, influenciar, cuidadosamente, e escolher. Ou possuímos tantas forças qualificadas que nos permitam gastar com prodigalidade? O centro de gravidade, afinal, encontra-se não na elaboração teórica dos problemas da nova arte, mas na sua expressão poética. Qual a situação do futurismo, de suas pesquisas e de suas realizações? Aqui há menos motivos para precipitação e intolerância.
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Ninguém pode negar, inteiramente, as realizações do futurismo na arte, sobretudo na poesia. O futurismo influenciou toda a nossa poesia moderna, direta ou indiretamente, com raras exceções. Não se pode contestar a influência de Maiakovsky sobre toda uma série de poetas operários. O construtivismo registra igualmente conquistas importantes, embora não de todo na direção que se traçara. Publicam-se, continuamente, artigos sobre a futilidade total e o caráter contra-revolucionário do futurismo, assinados por construtivistas. Os poemas futuristas, na maior parte das edições oficiais, saem ao lado das críticas mais acerbas. O Proletkult (7) une-se aos futuristas por laços vivos. A revista Horrn (O Clarim) aparece, atualmente, com evidente espírito futurista. Não existe, certamente, motivo para exagerar a importância desses fatos porque eles ocorrem no seio de uma camada superior que, como quase todos os nossos grupos artísticos, mantém débeis ligações com as massas. Mas seria estúpido fechar-lhe os olhos e tratar o futurismo como invenção charlatanesca de uma intelligentsia decadente. Mesmo se amanhã se averiguasse que o futurismo está em declínio - não penso que isso seja totalmente impossível - ainda assim, agora, ele tem mais força do que todas as tendências às custas das quais se desenvolveu. O futurismo russo - como já se disse - expressou, inicialmente, a revolta dos boêmios, isto é, da ala esquerda semi-pauperizada da intelligentsia contra o caráter de casta e fechado da estética burguesa. Através das roupagens dessa revolta poética, sentia-se a pressão de forças sociais profundas que o próprio futurismo não percebia. A luta contra o velho vocabulário e a antiga sintaxe da poesia, independentemente de todas as suas extravagâncias boêmias, canalizava uma revolta contra um vocabulário rígido e escolhido, artificialmente, com o objetivo de que nada estranho o perturbasse. Constituía, também, uma revolta contra o impressionismo, que aspirava à vida através de uma palha, uma revolta contra o simbolismo, tornado falso na sua vida celeste, contra Zinaida Hippius e sua espécie, contra todos os outros limões espremidos e ossos de frango roídos do pequeno mundo da intelligentsia liberal-mística. Se examinamos, atentamente, o período decorrido, não podemos deixar de apreciar a contribuição vital e progressista da obra dos futuristas, no domínio da Filologia. Sem exagerar as dimensões dessa revolução na linguagem, devemos reconhecer que o futurismo expulsou da poesia muitas frases e termos gastos, substituindo-os por outros de sangue novo, e, em alguns casos, criou, felizmente, frases e termos novos que entraram ou estão prestes a entrar no vocabulário e podem enriquecer a língua viva. Essa observação se aplica não somente a palavras isoladas, como a palavras colocadas no meio de outras, isto é, à sintaxe. O futurismo, campo da combinação de palavras, assim como na da sua formação, passou, realmente, além dos limites que uma língua viva pode admitir. O mesmo ocorreu com a Revolução. Eis o pecado de todo movimento vivo. A Revolução, principalmente a sua vanguarda consciente, demonstrou, entretanto, mais autocrítica do que os futuristas. Encontrou em compensação maior resistência externa, e, espera-se, encontrará, no futuro, ainda mais. Os exageros desaparecerão, e o Trabalho essencialmente purificador e verdadeiramente revolucionário que se realiza na linguagem poética, permanecerá.
Deve-se, igualmente, reconhecer u apreciar o trabalho criador e benéfico do futurismo quanto ao ritmo e à rima. Os indiferentes ou aqueles que simplesmente toleram esses assuntos porque os nossos antepassados nos legaram podem considerar todas as inovações dos futuristas como problemas enfadonhos que exigem muita atenção. A esse propósito, pode-se levantar a questão sobre se, afinal, o ritmo e a rima são necessários. O próprio Maiakovsky, curiosamente, prova, de vez em quando, e com versos de rimas muito complexas, que a rima supérflua é necessária. Um enfoque puramente lógico destrói a questão da forma artística. Ora, não se deve julgá-la com o raciocínio que não vai além da lógica formal, mas com o espírito que admite o irracional, enquanto vivo e fundamental à vida. A poesia é matéria mais emocional do que racional e a psicologia humana, que absorveu os ritmos biológicos, os ritmos e as combinações rítmicas ligados ao trabalho social busca exprimi-los, sob forma idealizada, nos sons, nos cantos e nas palavras artísticas. Enquanto houver tal necessidade, as rimas e ritmos futuristas, mais flexíveis, mais audaciosos e mais variados, constituem uma conquista segura e válida. E a sua influência já ultrapassou os grupos puramente futuristas. As conquistas do futurismo, na orquestração do verso, são totalmente indiscutíveis. Não se deve esquecer que o som de uma palavra representa o acompanhamento acústico do sentido. Se os futuristas pecaram e pecam ainda na sua preferência quase monstruosa pelo som contra o sentido, trata-se somente de um entusiasmo, da doença infantil do esquerdismo, e se deve rejeitar como delírio de uma nova escola poética que sentiu de um modo novo e com ouvido agudo o som em oposição à rotina cansativa das palavras. A maioria esmagadora dos operários, hoje,não se Interessa certamente por essas questões.A maior parte da vanguarda da classe operária, com tarefas mais urgentes, está igualmente muito ocupada. Mas há amanhã. E esse amanhã exigirá uma atitude mais atenta e mais precisa,mais sábia e mais artística diante da linguagem como um instrumento fundamental da cultura - não somente diante da linguagem dd verso como da linguagem da prosa, particularmente da prosa. Uma palavra nunca encerra, precisamente, um conceito com toda a significação concreta com que o homem concebe em cada caso. Uma palavra, por outro lado, possui um som e uma forma não só para o nosso ouvido e para os nossos olhos, mas também para a nossa lógica e nossa imaginação. O pensamento só terá possibilidade de tornar-se mais preciso através de cuidadosa seleção de palavras, isto é, depois de pesá-las de todos os modos, o que significa também do ponto de vista da acústica, e combiná-las da maneira mais expressiva. Não convém, nesse terreno, proceder às cegas. Fazem-se necessários instrumentos micrométricos. A rotina, a tradição, o hábito e a negligência devem dar lugar a um trabalho sistemático em profundidade. O futurismo, no seu melhor aspecto, traduz um protesto contra a atividade empírica, ao acaso, que forma poderosa escola literária e tem representantes muito influentes em todos os campos. Numa obra ainda inédita do camarada Gorlov, que a meu ver, descreve erroneamente a origem internacional do futurismo, viola a perspectiva histórica e o identifica com a poesia proletária, resumem -se as realizações daquela escola de maneira conscienciosa e sistemática. Gorlov destaca, corretamente, que a revolução futurista na forma, nascida de uma rebelião contra a antiga estética, reflete, no plano da teoria, a revolta contra a vida estagnada e fétida, que produziu aquela estética. Essa vida também provocou em Maiakovsky, o maior poeta do futurismo, e nos seus amigos mais íntimos, uma revolta contra a ordem social que engendrou essa vida e essa estética repulsivas. Eis por que esses poetas estão, organicamente, ligados a Outubro. O esquema de Gorlov é correto. Terá, porém, que se precisar e se definir ainda mais. É verdade que novas palavras e novas combinações de palavras, novas rimas e novos ritmos tornaram-se necessários, porque o futurismo, com a sua concepção do mundo, reagrupou acontecimentos e fatos, estabeleceu novas relações entre eles e as descobriu para si mesmo. O futurismo é contra o misticismo, a deificação passiva da natureza, a preguiça aristocrática ou de qualquer outra espécie, contra o devaneio e as lamúrias. É pela técnica, pela organização científica, pela máquina, pela planificação, pela vontade, pela coragem, pela rapidez, pela precisão e pelo novo homem, armado de todas essas coisas. A conexão entre essa "revolta" estética e a revolta social e moral é direta: todas as duas se inserem, completamente, na experiência de vida da nova, jovem, ativa e não-domesticada fração da intelligentsia de esquerda, dos boêmios criadores. A rebeldia contra o caráter limitado e contra a vulgaridade da antiga vida criou um novo estilo artístico como um meio de escape, um meio de liquidá-la. Em diferentes combinações e sobre diferentes bases históricas, vimos a rebeldia da intelligentsia produzir mais um novo estilo. E terminava sempre assim. Mas, desta vez, a Revolução proletária apanhou o futurismo num certo estágio de seu crescimento e empurrou-o para a frente. Os futuristas tornaram-se comunistas. E, pelo mesmo ato, entraram na esfera dos problemas e das relações mais profundas, que transcendem os limites de seu próprio pequeno mundo, ainda não-elaborado, organicamente, no seu espírito. Por isso, os futuristas, inclusive Maiakovsky, são mais fracos, no plano da arte, aí onde aparecem melhor como comunistas. A causa não está tanto na sua origem social quanto no seu passado espiritual. Os poetas futuristas não dominaram, suficientemente, os elementos da concepção e da atitude mundial do comunismo, para dar-lhes expressão orgânica pó r meio de palavras. Essa concepção e essa atitude, por assim dizer, não lhes entraram no sangue. Daí por que, freqüentemente, marcham para derrotas artísticas e psicológicas, com pompas e muito barulho por nada. O futurismo, nas suas obras revolucionárias mais extravagantes, torna-se estilização. O jovem poeta Bezimensky, que tanto deve a Maiakovsky. dá todavia uma expressão realmente verdadeira aos pontos de vista dos comunistas: Bezimensky ainda não se formara como poeta quando veio o comunismo. Ele nasceu, espiritualmente, no comunismo.
Pode-se alegar - e alegou-se muitas vezes - que mesmo a doutrina e o programa proletários foram criados por membros da burguesia e da intelligentsia democrática. É preciso estabelecer uma diferença importante, decisiva, na matéria. A doutrina econômica e histórico-filosófica do proletariado repousa sobre um conhecimento objetivo. Se o marceneiro Bebel, um asceta, econômico na vida e no pensamento, e cujo espírito possuía o corte de uma navalha, doutor em Filosofia de uma erudição universal, como Karl Marx, formulasse a mais-valia, esta teoria apareceria, numa obra muito mais acessível, mais simples e mais unilateral. A riqueza e a variedade de conceitos, de argumentos, de imagens e de citações de O Capital revelam, sem dúvida alguma, o seu background intelectual. Mas, como se tratava de conhecimento objetivo, a essência de O Capital tornou-se propriedade de Bebel e de milhares e milhões de outros operários. No campo da poesia, ocupamo-nos do sentimento do mundo, através de imagens, e não do conhecimento científico. A vida cotidiana, o ambiente individual, o círculo das experiências pessoais, exercem, por conseguinte, influência determinante sobre a criação artística . Remodelar o mundo dos sentimentos, absorvidos desde a infância, num plano científico, é o mais difícil trabalho interior. Nem todo mundo é capaz de fazê-lo. Daí por que, no mundo, existem muitas pessoas que pensam como revolucionários e sentem como filisteus. E percebemos, na poesia futurista, mesmo na parte que se entregou inteiramente à Revolução, um revolucionarismo mais boêmio que proletário.
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Maiakovsky é um grande talento, ou, como o definiu Blok, um imenso talento. :É capaz de apresentar as coisas que sempre vemos de tal modo que parecem novas. Maneja as palavras e o dicionário como um audacioso mestre, que trabalha de acordo com suas próprias leis e sem considerar se seu trabalho de artesão agrada ou desagrada. Muitas de suas imagens, frases e expressões entraram na literatura e nela permanecerão, por muito tempo, se não para sempre. Ele possui suas próprias construções, suas próprias imagens, seu próprio ritmo e sua própria rima. O objetivo artístico de Maiakovsky revela-se, sempre, significativo e, às vezes, grandioso. O poeta introduz, no seu próprio domínio, a guerra e a revolução, o céu e o inferno. Maiakovsky é hostil ao misticismo, a todo o tipo de hipocrisia, à exploração do homem pelo homem. Suas simpatias se voltam totalmente para o operário combatente. Ele não pretende transformar-se no sacerdote da arte ou, pelo menos, num sacerdote dos princípios. Está pronto, pelo contrário, a colocar a sua arte inteiramente a serviço da Revolução.
Mas nesse grande talento, ou mais exatamente em toda a personalidade criadora de Maiakovsky, não se encontra a harmonia necessária entre os seus componentes, nenhum equilíbrio, nem mesmo o dinâmico. Maiakovsky manifesta a sua maior fraqueza onde precisaria ter o senso de proporções e a capacidade de autocrítica.
Era mais natural para Maiakovsky do que para qualquer outro poeta russo aceitar a Revolução porque ela se ajustava a todo o seu desenvolvimento. Numerosos caminhos conduzem a intelligentsia à Revolução (nem todos levam até ao fim), e por conseguinte importa definir e apreciar mais exatamente a orientação pessoal de Maiakovsky. Existe o caminho da poesia mujique, seguido pela intelligenísia e pelos caprichosos companheiros de viagem (já falamos deles). Há o caminho dos místicos, que buscam outra música mais elevada (A. Blok), e o caminho do grupo Mudança de Direção e daqueles que se reconciliaram simplesmente conosco (Chkapskaia, Chaguinian) . E também existe o caminho dos racionalistas e dos ecléticos (Briusov, Gorodetsky e Chaguinian, novamente) . Há numerosas outras vias, mas não podemos apontar todas elas. Maiakovsky veio pelo caminho mais curto, o dos boêmios rebeldes perseguidos. A Revolução, para Maiakovsky, serviu como verdadeira experiência, real e profunda. Estourou com trovões e relâmpagos sobre as mesmas coisas que Maiakovsky odiava à sua maneira e com as quais não se reconciliara. Nisso reside a sua força. O individualismo revolucionário de Maiakovsky desembocou, entusiasticamente, na Revolução proletária, mas não se confundiu com ela. Seus sentimentos subconscientes pela cidade, pela natureza e pelo mundo inteiro não são os do operário, mas os do boêmio. "A lâmpada calva da rua que levanta as meias compridas na rua", esta impressionante imagem, extremamente característica de Maiakovsky, esclarece mais sobre a natureza boêmia e urbana do poeta do que qualquer outra consideração. O tom impudente e cínico de muitas imagens, principalmente do primeiro período do poeta, traz visivelmente a marca do cabaré artístico, do café e de tudo o que a ele se associa. Maiakovsky aproxima-se mais do caráter dinâmico da Revolução e de sua rude coragem do que do caráter coletivo de seu heroísmo, de suas ações e de suas experiências. Assim como o grego antigo era antropomorfo, pensava ingenuamente que as forças da natureza se assemelhavam a ele, o nosso poeta é maiakomorfo e povoa, com a sua personalidade, os lugares, as ruas e os campos da Revolução. Tocam-se os extremos. A universalização de seu próprio ego apaga, em certa medida, os limites da personalidade e aproxima o homem da coletividade que está na extremidade oposta. Isso, porém, só é verdadeiro em certa medida. A arrogância individualista e boêmia, contrastando não com a humildade, que ninguém exige, mas com o tato e o senso da medida indispensável, corre através de tudo o que escreveu Maiakovsky. Sente-se, várias vezes, uma tensão, extraordinariamente alta, nas suas obras, mas nem sempre acompanhada de força. O poeta evidencia-se muito. Concede bem pouca independência aos acontecimentos e aos fatos: não é a Revolução que luta contra os obstáculos, e sim, ele, Maiakovsky, que realiza proezas atléticas na arena das palavras. Produz verdadeiros milagres! Mas, ao preço de esforços heróicos, de quando em quando levanta halteres notoriamente ocos.
Maiakovsky, a cada passo, fala de si mesmo, tanto na primeira quanto na terceira pessoa, como indivíduo ou dissolvendo-se na humanidade. Quando quer elevar o homem, ergue-o até Maiakovsky. Assume atitude completamente familiar diante dos maiores acontecimentos da história. É o que há de menos suportável e de mais perigoso na sua obra. Não se pode falar, no seu caso, de coturnos ou de pernas de pau: são, para ele, suportes ridiculamente pequenos. Maiakovsky tem um pé sobre o monte Branco e o outro sobre o Elbruz. Sua voz abafa a do trovão. Pode alguém se espantar quando ele trata, familiarmente, a história e, com intimidade, a Revolução? Aí está o perigo: adotando, em toda parte e em todas as coisas, padrões tão gigantescos, tonitruando (um termo favorito do poeta) do alto do Elbruz e do monte Branco, apaga as proporções de nossos assuntos terrestres, e não se pode mais distinguir o pequeno do grande. Eis por que Maiakovsky fala de seu amor, isto é, de seus sentimentos mais íntimos, como se se tratasse da migração dos povos. E, pelo mesmo motivo, é incapaz de encontrar outra linguagem, quando trata da Revolução. Aponta sempre com a alça máxima e, como qualquer artilheiro o sabe, semelhante tiro dá o mínimo de golpes no alvo e afeta, gravemente, os canhões.
É verdade que o hiperbolismo reflete, até certo ponto, o furor de nosso tempo, mas não se justifica o seu emprego indiscriminado na arte. Não se pode gritar mais forte que a Guerra ou a Revolução. É mais fácil sucumbir. O senso de medida na arte assemelha-se ao da realidade em política. A principal falta de poesia futurista, mesmo nas suas melhores obras, é a falta do senso de medida: ela perdeu a medida dos salões e ainda não encontrou a medida das praças públicas. Mas é preciso encontrá-la. Force-se a voz na praça, e ela se torna rouca, sufocada, anulando o efeito do discurso. Deve-se falar com a voz natural e não com uma voz mais forte. Pode-se empregar a voz em toda a sua extensão se se sabe como fazê-lo. Maiakovsky, freqüentemente, grita, quando deveria falar. Seus gritos, onde deveria gritar, parecem, pois, insuficientes. A gritaria e o enrouquecimento afogam a dramaticidade de sua palavra.
As poderosas imagens de Maiakovsky, embora geralmente esplêndidas, desintegram, várias vezes, o conjunto e paralisam o movimento. O poeta, seguramente, se dá conta disso e assim aspira a outro extremo: a linguagem das fórmulas matemáticas, estranha à poesia. Pode-se pensar que a auto-suficiência das metáforas, o gosto da imagem pela imagem, que o imaginismo apresenta de comum com o futurismo (que começa a parecer o nosso imaginismo das canções camponesas), tem as suas raízes no fundamento rural de nossa cultura. Relaciona-se mais com a igreja de Basílio, o Bem Aventurado, do que com uma ponte de cimento armado. Qualquer que seja a explicação histórica e cultural, não resta dúvida de que, nas obras de Maiakovsky, o que mais falta é movimento. Isso pode parecer um paradoxo, porque o futurismo se baseia inteiramente sobre o movimento. Aqui, entretanto, intervém a incorruptível dialética: o excesso de imagens impetuosas conduz à calmaria. O movimento deve estar em consonância com o mecanismo de nossa percepção, com o ritmo de nossos sentimentos, para que se possa senti-lo, física e artisticamente. Uma obra de arte deve mostrar o crescimento gradual de uma imagem, de uma idéia, de um humor, de uma trama, de uma intriga, até o ápice, e não lançar o leitor de um horizonte a outro, ainda que com ágeis golpes de metáforas. Cada frase, cada expressão e cada imagem esforçam-se, em Maiakovsky, para estabelecer um limite, atingir um máximo, um cume. E por isso, precisamente, o conjunto não tem ápice. O espectador sente-se como se o cortassem em pedaços. E o todo se lhe escapa. Escalar um monte é penoso, mas se justifica. Um passeio através de terreno acidentado não cansa menos e dá menos prazer. As obras de Maiakovsky não possuem um ponto culminante, não obedecem a nenhuma disciplina interna. As partes recusam obediência ao todo. Cada uma tenta emancipar-se, desenvolver sua própria dinâmica, sem considerar a harmonia do conjunto. E não restam nem conjunto nem dinâmica. Os futuristas ainda não acharam a expressão sintética da linguagem e das metáforas nas suas obras.
150. 000. 000 devia ser o poema da Revolução. Mas não o é. A obra, grande na sua intenção, está minada pela fraqueza e pelos defeitos do futurismo. O autor queria escrever uma epopéia do sofrimento das massas, do seu heroísmo, a epopéia da revolução impessoal dos 150.000.000 de Ivãs. E não assinou: Ninguém é o autor de meu poema. Essa impessoalidade convencional nada modifica: o poema, de fato, continua profundamente pessoal, individualista, e isso, essencialmente, no mau sentido dos termos. O poema contém muito de arbitrário e de gratuito. Imagens como: "Wilson nadando na gordura", "Todo habitante em Chicago tem ao menos o título de general", "Wilson não se empanturra, engorda, sua barriga cresce aos poucos" etc. Essas imagens, aparentemente simples e grosseiras, não são de todo populares, e, em todo caso, não pertencem às massas de hoje. O operário, ao menos aquele que lerá o poema de Maiakovsky, viu a fotografia de Wilson. Wilson é magro, embora acreditemos que absorva suficientemente proteínas e gorduras. O operário, igualmente, leu Upton Sinclair e sabe que, em Chicago, existem, além dos generais, trabalhadores em matadouros. Sente-se, a despeito de seu hiperbolismo tonitruante, nessas imagens gratuitas e primitivas, certo ceceio semelhante àquele que os adultos usam com as crianças, que transparece nessas imagens, não provém da exuberante imaginação popular, mas da asneira boêmia. Wilson tem uma escada. "Se começas a subi-la, quando jovem, atingirás o seu alto ao envelheceres." Ivã ataca Wilson, no "campeonato mundial da luta das classes".
Wilson possui "pistolas de quatro bocas e um sabre com sessenta dentes de serra", mas Ivã tem "uma só mão, pois a outra enfiou na sua cintura". Ivã, sem armas, a mão na cintura, contra o infiel armado de pistolas, é um tema russo muito velho! Não estamos diante de llya Murometz? (8) A menos que este não seja Ivã, o Bobo, que avança descalço contra a infernal maquinaria alemã? Wilson fere-o com o sabre: Fere-o quatro vezes... Mas o homem ferido, subitamente, se levanta. E assim por diante. Como estão deslocadas e são particularmente frívolas essas baladas primitivas e esses contos de fada, transplantados para a Chicago industrial e aplicados à luta de classes! Tudo isso se pretendia titânico. É de fato atletismo. Atletismo duvidoso, que maneja pesos ocos. O campeonato mundial de luta de classe: Onde está a autocrítica? Um campeonato é um espetáculo para feriados, onde, freqüentemente, se usam truques e combinações. Nem a imagem nem o termo, portanto, convém aqui. A luta titânica de cento e cinqüenta milhões de homens resultou numa paródia de lenda e num match de circo. A paródia não é intencional, mas isso nada justifica. As imagens, que a nada visam, ou seja, aquelas que não se formam interiormente, devoram a idéia sem deixar traços e a malbaratam, tanto no plano artístico como no plano político. Por que Ivã, contra pistolas e sabres, conserva a mão na cintura? Por que tal desprezo pela técnica? Ivã, certamente, está menos armado do que Wilson. Mas é precisamente por isso que deve servir-se de suas duas mãos. E, se não cai por terra, é porque, em Chicago, não só existem generais, mas também operários que, em grande parte, são contra Wilson e a favor de Ivã. O poema não o mostra. Procurando obter uma imagem aparentemente monumental, o autor destrói sua verdadeira essência. Às pressas e de passagem, isto é, uma vez mais sem motivo, o autor divide o mundo inteiro em duas classes: de uma parte, Wilson, nadando na gordura, com arminhos, castores, com grandes corpos celestes, e, de outra, Ivã, com blusões e milhões de estrelas da Via-Láctea. "Para os castores - as pequenas frases dos decadentes do mundo inteiro. Para os blusões - a frase de bronze dos futuristas." Ainda que o poema seja expressivo e possua algumas frases fortes, apropriadas, metáforas brilhantes, ele, infelizmente, não possui, na verdade, nenhuma frase de bronze para os blusões. Por falta de talento?
Não. Por falta de uma imagem da Revolução, forjada pelos nervos e pelo cérebro, de uma imagem à qual a expressão se subordinasse. O autor joga como um atleta, apanhando e lançando cada vez uma diferente imagem. "Acabaremos contigo, mundo romântico!", ameaça Maiakovsky. Bem. É preciso, com efeito, pôr fim ao romantismo de Oblomov e de Karataiev. Mas como? "Ele é velho, mate-o e faça um cinzeiro do seu crânio." Aí não existe romantismo? E do mais negativo? Crânios servindo de cinzeiros não são cômodos nem higiênicos. E afinal essa selvajaria não tem sentido. O poeta deve estar embebido de romantismo para fazer semelhante emprego dos ossos de um crânio. Ele, em todo caso, não trabalhou nem unificou as suas imagens. "Roubai a riqueza de todos os mundos!" É nesse tom familiar que Maiakovsky fala do socialismo. Mas roubar significa agir como ladrão. Esta palavra se ajusta, portanto, quando se trata da expropriação da terra e das fábricas pela sociedade? Está, notavelmente, deslocada. O autor usa tais vulgaridades para ombrear-se com o socialismo e a Revolução. Quando dá tapas nas costas, familiarmente, dos cento e cinqüenta milhões de Ivãs, ele não eleva o poeta a dimensões titânicas, mas reduz Ivã a somente um oitavo de página. A familiaridade não exprime a profunda intimidade, pois várias vezes apenas evidencia a inconstância política ou moral. Laços sérios e profundos com a Revolução excluem o tom familiar.
Engendrariam o que os alemães denominam o patético da distância. O poema contém frases fortes, imagens audaciosas e expressões apropriadas. O "réquiem triunfal da paz" final é talvez a parte mais poderosa. Mas, na realidade, uma falta de movimento interior domina o conjunto. As contradições não se esclarecem para, em seguida, se resolverem. Eis um poema sobre a Revolução ao qual falta movimento! As imagens, que vivem isoladamente, chocam-se e titubeiam. Sua hostilidade não decorre da matéria histórica, mas do desajuste interior com a filosofia revolucionária da vida. Quando, portanto, se chega ao fim do poema, não sem dificuldade, diz-se que o poeta, se usasse um pouco de precaução e autocrítica, poderia ter escrito uma grande obra! Talvez esses defeitos fundamentais não decorram das qualidades pessoais de Maiakovsky, mas devido ao fato de que ele trabalha num mundo fechado. Nada é tão adverso à autocrítica e à precaução que a vida de cenáculo. As peças satíricas de Maiakovsky, igualmente, não conseguem penetrar a essência das coisas e suas relações. Sua sátira é picante e superficial. Um caricaturista, para dizer alguma coisa, deve possuir mais que o domínio do lápis. Ele deve conhecer, como seu bolso, o mundo que desmascara.
Saltikov conhecia bem a burocracia e a nobreza! Uma caricatura aproximada (99 % das caricaturas soviéticas o são) é como a bala que erra o alvo pela distância de um dedo ou mesmo de um palmo: quase tocou o alvo, portanto errou o tiro. A sátira de Maiakovsky é assim. Suas notas picantes, com o tom de aparte, erram o alvo, às vezes pela distância de um dedo e outras vezes por um palmo Maiakovsky pensa seriamente que se pode abstrair o cômico de seu suporte e reduzi-lo à aparência.
No prefácio do seu conto satírico, ele mesmo apresenta "um esquema do riso". O que provoca um sorriso de perplexidade, à leitura desse esquema, é o fato de que ele não contém, absolutamente, nada de engraçado. E se alguém apresentasse um esquema melhor do que o de Maiakovsky, ainda subsistiria a diferença entre o riso provocado por uma sátira que acerta o alvo daquele que resulta de uma cócega verbal.
Maiakovsky ergueu-se da boemia, que o impulsionou, para verdadeiras obras de criação. Mas o galho em que subiu é individual. O poeta revolta-se contra a sua condição, contra a dependência material e moral na qual se encontram sua vida e, sobretudo, seu amor. Ofendido, indignado contra os senhores da situação, que o privaram de sua amada, ele chega a apelar para a Revolução e prediz o seu desencadear sobre uma sociedade que tira a liberdade de um Maiakovsky.
A Nuvem de Calças, poema de um amor infeliz, é, artisticamente, sua obra mais significativa, a mais audaciosa e a mais prometedora como criação. É difícil crer que um jovem de 22 ou 23 anos escrevesse um texto de uma força tão intensa e com uma forma tão original. Guerra e Universo, Mistério Burlesco e 150.000.000 são muito mais fracos justamente porque Maiakovsky deixou a sua órbita individual para entrar na órbita da Revolução. Pode-se louvar o seu esforço porque não existe de fato outro caminho para ele. A Esse Propósito retorna ao tema do amor pessoal, mas está alguns passos atrás da Nuvem, e não à frente. Só uma ampliação do campo de conhecimento e um aprofundamento do conteúdo artístico podem manter o equilíbrio num plano muito mais elevado. Não se deve esquecer, porém, que mudar de direção e enveredar, conscientemente, por um novo caminho é uma coisa muito difícil. A técnica de Maiakovsky, nos últimos tempos, apurou-se, incontestavelmente, mas também se tornou mais estereotipada. Mistério Burlesco e 150.000.000 contêm, ao lado de frases grandiosas, fraquezas fatais, mais ou menos compensadas pela retórica e por alguns passos de dança na corda verbal. A qualidade orgânica, a sinceridade, o grito interior, que sentimos em A Nuvem, não existem mais. "Maiakovsky repete-se", dizem alguns. "Maiakovsky virou poeta oficial", exultam, maldosamente, outros. Será verdade? Não nos apressa mos a fazer profecias pessimistas. Maiakovsky não é mais um adolescente, certo, mas é um jovem ainda. Isso nos autoriza a não fechar os olhos sobre as dificuldades que se encontram no seu caminho. Ele não reencontrará a espontaneidade criadora que brota como vivo manancial em A Nuvem. Não há motivo, entretanto, para lamentar. A espontaneidade juvenil, geralmente, cede lugar, na maturidade, a um domínio de si mesmo, que consiste não só num sólido conhecimento da língua, mas também numa larga visão da vida e da história, de uma compreensão profunda do mecanismo da vida coletiva e das forças individuais, das idéias, dos temperamentos e das paixões. Esse domínio não combina com o diletantismo social, a gritaria, a falta de respeito por si próprio, a fanfarronada enfadonha ou a brincadeira de gênios, que fazem truques e malabarismos nos cafés da intelligentsia.
Se a crise do poeta - porque crise existe - se resolve por sábio discernimento, que diferencia o particular do geral, então o historiador da literatura dirá que Mistério Burlesco e 150.000.000 só marcaram uma baixa de tensão inevitável e temporária na curva de uma estrada que continua a subir. Desejamos, sinceramente, que Maiakovsky dê razão ao historiador do futuro.
* * *
Quando se quebra um braço ou uma perna, os ossos, os tendões, os músculos, as artérias, os nervos e a pele não se rompem segundo uma só linha, da mesma forma que não se colam novamente e saram ao mesmo tempo. Quando se produz uma fratura revolucionária na vida da sociedade, não existe simultaneidade nem simetria de processo, quer na ideologia social, quer na estrutura econômica. As premissas ideológicas, necessárias à Revolução, formam-se antes do seu rompimento, enquanto as suas mais importantes conseqüências ideológicas só aparecem muito tempo depois. Seria, por conseguinte, falta de seriedade estabelecer, baseando-se em analogias e comparações formais, um tipo de identidade entre futurismo e comunismo e deduzir daí que o futurismo é a arte do proletariado. Devemos rejeitar tais pretensões. Isso não significa desprezo pelas obras dos futuristas. Elas constituem marcos necessários à formação de uma nova.e grande literatura, da qual compõem apenas um episódio significativo na sua evolução. Basta, para convencer disso, abordar-se a questão, mais concretamente, no plano histórico. A crítica de que as suas obras são inacessíveis às massas, os futuristas respondem que O Capital, de Marx, também o é. Mas não têm razão. Ainda faltam às massas, evidentemente, cultura e formação estética, às quais elas só lentamente se elevarão. Esta representa apenas uma das causas pelas quais o futurismo lhes permanece inacessível. Há outra: o futurismo, nos seus métodos e nas suas formas, leva, claramente, as marcas deste mundo ou, melhor, deste pequeno mundo, em que nasceu e do qual pela lógica das coisas - psicologicamente e não logicamente - hoje ainda não saiu. É tão difícil separar o futurismo de sua hipótese intelectual, como a forma do conteúdo. Se isso acontecesse, o futurismo sofreria uma transformação qualitativa tão profunda que não mais seria futurismo. E acontecerá. Mas não amanhã. Mesmo agora se pode assegurar, todavia, que muito no futurismo terá grande utilidade e poderá servir para um renascimento da arte, com a condição de que aprenda a manter-se sobre as suas pernas, sem tentar impor-se por decreto governamental, como quis fazer no início da Revolução. As novas formas devem encontrar, por si mesmas e com independência, acesso à consciência dos elementos avançados da classe operária, na medida em que estes, culturalmente, se desenvolvam. A arte não pode viver nem se desenvolver sem uma atmosfera de simpatia. É por essa via não por outra - que se desdobra um processo complexo de mútuas relações. A elevação do nível cultural da classe operária ajudará e influenciará esses inovadores que realmente têm alguma coisa a dizer. A afetação, inevitável quando reinam os conciliábulos, desaparecerá, e os germes vivos produzirão formas novas que permitam resolver os novos problemas artísticos. Essa evolução supõe, antes de tudo, a acumulação de bens culturais, o aumento do bem-estar e o desenvolvimento da técnica. Não existe outro caminho. Não se pode pensar, seriamente, que a história conservará as obras dos futuristas para servir, depois de muitos anos, às massas então amadurecidas. Isso seria o mais puro passadismo. Quando chegar essa época, que não virá imediatamente e na qual a educação estética e cultural das massas trabalhadoras suprimirá o abismo entre a inteligência criadora e o povo, a arte apresentará um aspecto diferente do de hoje. O futurismo, nesse processo, aparecerá como um elo indispensável. Isso é pouca coisa?
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