Segunda Parte
Capítulo VI - Os Checoslovacos e os Socialistas Revolucionários de Esquerda
A Primavera de l9l8 foi muito árdua. Por vezes, tinha-se o sentimento de que tudo se perdia, escorregando, disseminando-se, não sabíamos onde nos agarrar, onde nos apoiar. Por um lado, era por demais evidente que o país teria caído numa lenta e longa decomposição se não tivesse .eclodido a Revolução de Outubro. Mas, por outro, começava-se involuntariamente a perguntar, na Primavera de l9l8, se este país exausto, arruinado, desesperado, possuiria a seiva vital bastante para sustentar o novo regime. Não havia abastecimentos. Nem exército. O aparelho governamental começava apenas a constituir-se. Por todo o lado as conjuras supuravam como úlceras. A divisão composta por Checoslovacos mantinha-se no nosso território como uma potência independente do Estado. Não podíamos opor-lhe nada, ou quase nada.
Durante um desses momentos terríveis de l9l8, Vladimir Ilitch disse-me a certa altura:
- Recebi hoje uma delegação de operários. E eis que um deles, ao ouvir certas palavras que proferi (1), exclama: "Vê-se bem que também você, camarada Lenine, toma o partido dos capitalistas... Sabe, era a primeira vez que me interpelavam assim. Confesso que fiquei chocado e que de início não soube o que responder. Se este operário não estava animado de más intenções, se não era um menchevique, eis aqui um sintoma bem alarmante.
Ao contar-me este incidente, Lenine pareceu-me muito mais magoado e atormentado do que mais tarde, quando recebemos das frentes de guerra a notícia sinistra da queda de Kazan e do perigo iminente que pairava sobre Petrogrado. E é compreensível: perdidas Kazan e Petrogrado, elas poderiam ser reconquistadas, enquanto que a confiança da classe operária constituía o verdadeiro capital do Partido.
- Tenho a impressão, disse então a Vladimir Ilitch, que o país, ao sair destas doenças muito graves, precisa dum alimento mais abundante e substancial, de calma e de cuidados constantes para terminar a convalescença e reconquistar a saúde; bastaria porém um piparote para o deitar completamente por terra.
- É essa também a minha impressão, respondeu Vladimir Ilitch. Tem uma terrível anemia! Neste momento, o mais pequeno choque pode ser perigoso.
Todavia, a história dos Checoslovacos ameaçava ser precisamente o tal choque fatal. A divisão dos Checoslovacos constituía como que um tumor na carne mole da Rússia, situado nas nossas províncias de Sudoeste; não se lhe opunha nenhuma resistência; ao contrário, engrossava com os socialistas-revolucionários e com políticos ainda mais perigosos, todos do partido branco.
É verdade que os bolcheviques detinham o poder em todo o lado; mas a inconsistência mórbida da província era ainda muito grande. E isto nada tem de extraordinário. A Revolução de Outubro apenas se fizera realmente em Petrogrado e em Moscovo. Na maioria das cidades de província tivera-se conhecimento de Outubro, como de Fevereiro, através do telégrafo. A ascensão de uns e o retrocesso dos outros tinham tomado por modelo o que sucedera nas capitais. O abastardamento do meio social e a falta de resistência por parte dos senhores da véspera tinham como consequência ,a própria moleza da revolução.
A entrada em cena dos batalhões checoslovacos modificou a situação, primeiro com desvantagem para nós, e, finalmente, em nosso proveito. Os Brancos encontravam uma base militar, um eixo de cristalização. Em resposta, começou a verdadeira cristalização revolucionária dos Vermelhos. Pode afirmar-se que, graças à aparição dos Checoslovacos e apenas graças a ela, a região do Volga fez finalmente a sua Revolução de Outubro. Isto não sucedeu, porém, num dia.
A 3 de Julho, Vladimir Ilitch telefonou-me para o Comissariado da Guerra.
- Sabe o que aconteceu? perguntou-me com voz abafada, evidenciando uma grande emoção.
- Não, o que foi?
- Os socialistas-revolucionários de esquerda lançaram uma bomba sobre Mirbach(2). Diz-se que está gravemente ferido. Venha depressa ao Kremlin, precisamos reunir o conselho.
Alguns instantes mais tarde, encontrava-me no gabinete de Lenine. Comunicou-me os factos enquanto ia perguntando mais pormenores pelo telefone.
- Bonito! exclamei, tentando digerir esta notícia muito pouco comum. Não poderemos queixar-nos da monotonia da existência.
- S...sim! respondeu Lenine com um riso inquieto. Ei-lo, o rabiar do monstro pequeno-burguês!...
E a ironia com que pronunciava estas palavras traduzia bastante bem o que Engels exprimira ao falar do rabiat gewordene Kleinburger (da "raiva súbita do pequeno-burguês").
Houve, ao mesmo tempo, rápidas conversas telefónicas - perguntas curtas, curtas respostas - com o Comissariado dos Assuntos Estrangeiros, com a Tcheka e outras instituições. Como sempre, nos momentos críticos, o pensamento de Lenine trabalhava simultaneamente em dois planos: enquanto o marxista enriquecia a sua experiência histórica, observando com interesse a última "contorsão", a última "flutuação" do radicalismo pequeno-burguês, o chefe da revolução esticava infatigavelmente os fios do seu inquérito e indicava ,as primeiras medidas a serem tomadas. Anunciava-se um motim nas tropas componentes da Tcheka.
- Oxalá, esta questão dos socialistas-revolucionários não venha a ser a casca de banana que nos fará cair!...
- Estava justamente a pensar nisso, respondeu Lenine. O destino do pequeno-burguês indeciso e impulsivo não se limitará a servir da casca de banana que os guardas brancos nos vão atirar aos pés?... É preciso neste momento exercer a nossa influência sobre a redacção do relatório que os Alemães vão expedir para Berlim. O motivo da intervenção militar será mais do que suficiente, sobretudo se pensarmos que Mirbach denunciou, sem dúvida, a nossa fraqueza, indicando as consequências possíveis do mínimo abalo...
Sverdlov chegou em breve, sempre igual a si próprio.
- Então, disse-me, estendendo a mão com ar trocista, vamos ser forçados a transformar o Conselho de Comissários num novo Comité de Guerra Revolucionário...
Lenine continuava entretanto a recolher informações. Não me recordo se foi então ou um pouco mais tarde que soubemos da morte de Mirbach. Era preciso irmos à embaixada apresentar as nossas "condolências". Foi decidido que iriam Lenine, Sverdlov e também Tchitcherine, creio. Ficaram na dúvida se eu deveria acompanhá-los. Após uma breve troca de impressões fui dispensado deste frete.
- Como deveremos exprimir-nos? observou Vladimir Ilitch, abanando a cabeça. Falei disso a Radek. Era minha intenção dizer "Mitleid" (condolências); mas parece que é preciso dizer: "Beileid"(3).
Riu um pouco, muito pouco e muito baixo, vestiu-se e disse a Sverdlov num tom firme:
- Vamos! E o seu rosto transformou-se, tornando-se de um cinzento cor de pedra. Era difícil para Ilitch ter de fazer esta visita à embaixada dos Hohenzolern, ter de apresentar condolências pela morte dum conde Mirbach. Foi provavelmente uma das emoções mais penosas, um dos momentos mais difíceis de toda a sua vida.
É em ocasiões destas que se julgam as pessoas. Sverdlov foi verdadeiramente incomparável: seguro de si, corajoso, firme, inventivo; um bolchevique da melhor espécie. Lenine acabou por descobrir e apreciar Sverdlov precisamente nestes meses difíceis. Quantas vezes, ao telefonar a Sverdlov ,para lhe pedir que tomasse esta ou aquela medida urgente, o ouvia responder: "Já", o que significava que a medida já tinha sido tomada, Divertíamo-nos muitas vezes acerca deste facto, e dizíamos: "Por parte de Sverdlov, não há dúvida que já é: "já".
- E, contudo, no início, não achávamos dever admiti-lo no Comité Central, disse um dia Lenine; isto mostra a que ,ponto desconhecíamos o homem! Tivemos sobre este assunto famosas disputas, porém o Congresso, lá em baixo, corrigiu-nos e não fez senão bem.(4)
A amotinação dos socialistas-revolucionários de esquerda tinha-nos privado duma aliança política; mas, ao fim e ao cabo, em lugar de nos enfraquecer, fortaleceu-nos. O nosso Partido uniu-se mais. Nas instituições, no exército, passou a compreender-se melhor a importância das células comunistas. O governo seguiu a sua vida de um modo mais firme.
A revolta dos Checoslovacos teve, sem dúvida alguma, o mesmo efeito: fez sair o Partido do abatimento em que se encontrava após a paz de Brest-Litovsk. Entrou-se então no período em que se sucederam as mobilizações no seio do Partido, mobilizações essas dirigidas para a frente oriental. O primeiro grupo de que ainda faziam parte os socialistas-revolucionários de esquerda foi enviado por Lenine e por mim. Desenhava-se já, embora de início bastante vagamente, a organização das futuras secções políticas. Continuávamos, entretanto, a receber más notícias do Volga. A traição de Muraviev e o levantamento dos socialistas-revolucionários de esquerda tinham lançado temporariamente a frente do Leste de novo na desordem. O perigo aumentou imediatamente. Foi então que se iniciou uma transformação radical.
- É necessário mobilizar tudo e todos e enviá-los para a frente, dizia Lenine. É preciso destacar do corpo do exército tudo o que está mais ou menos apto a bater-se e enviá-lo para o Volga.
Devo lembrar que se chamava "corpo" a um estreito cordão de tropas estacionado no Oeste, em frente da região ocupada pelos Alemães.
- E os Alemães? perguntavam a Lenine.
- Os Alemães não se mexerão; têm mais que fazer; aliás eles próprios estão interessados em que acabemos com os Checoslovacos.
Este plano foi adoptado e foi assim que se constituiu o grosso do futuro V Exército. Decidiu-se então que eu partisse para o Volga. Tratei da formação de um comboio, o que nessa época não era assim tão fácil. O próprio Vladimir Ilitch entrava em todas as diligências, enviava-me bilhetes, telefonava constantemente.
- Tem um automóvel bastante sólido? Vá buscar um à garagem do Kremlin.
E meia hora mais tarde:
- Você leva um avião? É preciso levar um, pode ser útil.
- O exército tem aviões, respondia, servir-me-ei de um se for necessário.
E, de novo, meia hora mais tarde:
- Continuo a achar que deve levar um avião no comboio; nunca se sabe o que ,pode acontecer!
E assim por diante.
É conhecido o modo como os nossos regimentos e destacamentos formados à pressa, principalmente daquilo que restava do antigo exército disperso, debandaram de forma assaz lamentável logo no primeiro recontro com os Checoslovacos.
- Precisamos de uma forte cintura de defesa formada por comunistas e, em geral, de homens combativos, para remediar esta terrível instabilidade, dizia eu a Lenine antes de partir. É necessário forçar os homens a combater. Se estamos à espera que o mujique acabe de acordar, será tarde demais.
- É verdade, respondia Lenine, mas temo que a própria cintura de defesa se rompa. 0 homem russo é demasiado bom; não é capaz de tomar resolutamente medidas de terror revolucionário. Contudo, é indispensável experimentar.
Encontrava-me em Sviajsk quando tomei conhecimento do atentado contra Lenine e do assassinato de Uritski. Nesses dias trágicos a revolução atravessava uma crise interior. Libertava-se da sua "bondade". O gládio do Partido recebia enfim a sua têmpera. Afirmava-se o espírito de resolução e, quando era preciso, davam-se mostras de um rigor implacável. Na frente, as secções políticas, com os destacamentos de defesa e os tribunais, forneciam ao corpo mole do jovem exército a sua ossatura. Em breve se evidenciou essa modificação. Kazan e Simbirsk foram reconquistadas. Em Kazan recebi de Lenine, que começava a curar-se do seu ferimento, um telegrama de felicitações por altura das primeiras vitórias obtidas no Volga. Pouco tempo depois fiz uma breve estadia em Moscovo; dirigi-me com Sverdlov a Gorki, a casa de Vladimir Ilitch, cuja saúde melhorava rapidamente, mas que não retomara ainda o seu trabalho em Moscovo.
Encontrámo-lo de excelente humor. Pediu-nos imensos pormenores sobre a organização do exército, as suas disposições, o papel desempenhado pelos comunistas, o aperfeiçoamento da disciplina. Repetia alegremente:
- Ora, está bem, está perfeito. A consolidação do exército vai fazer-se sentir em todo o país: teremos mais disciplina, Sentiremos melhor as responsabilidades...
Com efeito, a partir dos meses do Outono, a transformação foi grande. Já nada restava dessa mole impotência que caracterizara a Primavera. Algo se tinha mudado, fortificado, e é notável que, desta vez, a revolução tivesse sido salva, não devido a novas tréguas, mas ao contrário devido ao mais grave dos perigos: esse perigo fez brotar no proletariado as fontes secretas da energia revolucionária. Quando Sverdlov e eu tomámos lugar no automóvel, Lenine, radioso e cheio de vida, encontrava-se à varanda. Apenas o tinha visto tão contente em Smolni, a 25 de Outubro, quando tomara conhecimento dos primeiros sucessos militares da insurreição. Procedemos à liquidação política dos socialistas-revolucionários de esquerda. Limpámos o Volga. Lenine recompôs-se dos ,seus ferimentos. A revolução crescia em força e em coragem.
Capítulo VI - Os Checoslovacos e os Socialistas Revolucionários de Esquerda
A Primavera de l9l8 foi muito árdua. Por vezes, tinha-se o sentimento de que tudo se perdia, escorregando, disseminando-se, não sabíamos onde nos agarrar, onde nos apoiar. Por um lado, era por demais evidente que o país teria caído numa lenta e longa decomposição se não tivesse .eclodido a Revolução de Outubro. Mas, por outro, começava-se involuntariamente a perguntar, na Primavera de l9l8, se este país exausto, arruinado, desesperado, possuiria a seiva vital bastante para sustentar o novo regime. Não havia abastecimentos. Nem exército. O aparelho governamental começava apenas a constituir-se. Por todo o lado as conjuras supuravam como úlceras. A divisão composta por Checoslovacos mantinha-se no nosso território como uma potência independente do Estado. Não podíamos opor-lhe nada, ou quase nada.
Durante um desses momentos terríveis de l9l8, Vladimir Ilitch disse-me a certa altura:
- Recebi hoje uma delegação de operários. E eis que um deles, ao ouvir certas palavras que proferi (1), exclama: "Vê-se bem que também você, camarada Lenine, toma o partido dos capitalistas... Sabe, era a primeira vez que me interpelavam assim. Confesso que fiquei chocado e que de início não soube o que responder. Se este operário não estava animado de más intenções, se não era um menchevique, eis aqui um sintoma bem alarmante.
Ao contar-me este incidente, Lenine pareceu-me muito mais magoado e atormentado do que mais tarde, quando recebemos das frentes de guerra a notícia sinistra da queda de Kazan e do perigo iminente que pairava sobre Petrogrado. E é compreensível: perdidas Kazan e Petrogrado, elas poderiam ser reconquistadas, enquanto que a confiança da classe operária constituía o verdadeiro capital do Partido.
- Tenho a impressão, disse então a Vladimir Ilitch, que o país, ao sair destas doenças muito graves, precisa dum alimento mais abundante e substancial, de calma e de cuidados constantes para terminar a convalescença e reconquistar a saúde; bastaria porém um piparote para o deitar completamente por terra.
- É essa também a minha impressão, respondeu Vladimir Ilitch. Tem uma terrível anemia! Neste momento, o mais pequeno choque pode ser perigoso.
Todavia, a história dos Checoslovacos ameaçava ser precisamente o tal choque fatal. A divisão dos Checoslovacos constituía como que um tumor na carne mole da Rússia, situado nas nossas províncias de Sudoeste; não se lhe opunha nenhuma resistência; ao contrário, engrossava com os socialistas-revolucionários e com políticos ainda mais perigosos, todos do partido branco.
É verdade que os bolcheviques detinham o poder em todo o lado; mas a inconsistência mórbida da província era ainda muito grande. E isto nada tem de extraordinário. A Revolução de Outubro apenas se fizera realmente em Petrogrado e em Moscovo. Na maioria das cidades de província tivera-se conhecimento de Outubro, como de Fevereiro, através do telégrafo. A ascensão de uns e o retrocesso dos outros tinham tomado por modelo o que sucedera nas capitais. O abastardamento do meio social e a falta de resistência por parte dos senhores da véspera tinham como consequência ,a própria moleza da revolução.
A entrada em cena dos batalhões checoslovacos modificou a situação, primeiro com desvantagem para nós, e, finalmente, em nosso proveito. Os Brancos encontravam uma base militar, um eixo de cristalização. Em resposta, começou a verdadeira cristalização revolucionária dos Vermelhos. Pode afirmar-se que, graças à aparição dos Checoslovacos e apenas graças a ela, a região do Volga fez finalmente a sua Revolução de Outubro. Isto não sucedeu, porém, num dia.
A 3 de Julho, Vladimir Ilitch telefonou-me para o Comissariado da Guerra.
- Sabe o que aconteceu? perguntou-me com voz abafada, evidenciando uma grande emoção.
- Não, o que foi?
- Os socialistas-revolucionários de esquerda lançaram uma bomba sobre Mirbach(2). Diz-se que está gravemente ferido. Venha depressa ao Kremlin, precisamos reunir o conselho.
Alguns instantes mais tarde, encontrava-me no gabinete de Lenine. Comunicou-me os factos enquanto ia perguntando mais pormenores pelo telefone.
- Bonito! exclamei, tentando digerir esta notícia muito pouco comum. Não poderemos queixar-nos da monotonia da existência.
- S...sim! respondeu Lenine com um riso inquieto. Ei-lo, o rabiar do monstro pequeno-burguês!...
E a ironia com que pronunciava estas palavras traduzia bastante bem o que Engels exprimira ao falar do rabiat gewordene Kleinburger (da "raiva súbita do pequeno-burguês").
Houve, ao mesmo tempo, rápidas conversas telefónicas - perguntas curtas, curtas respostas - com o Comissariado dos Assuntos Estrangeiros, com a Tcheka e outras instituições. Como sempre, nos momentos críticos, o pensamento de Lenine trabalhava simultaneamente em dois planos: enquanto o marxista enriquecia a sua experiência histórica, observando com interesse a última "contorsão", a última "flutuação" do radicalismo pequeno-burguês, o chefe da revolução esticava infatigavelmente os fios do seu inquérito e indicava ,as primeiras medidas a serem tomadas. Anunciava-se um motim nas tropas componentes da Tcheka.
- Oxalá, esta questão dos socialistas-revolucionários não venha a ser a casca de banana que nos fará cair!...
- Estava justamente a pensar nisso, respondeu Lenine. O destino do pequeno-burguês indeciso e impulsivo não se limitará a servir da casca de banana que os guardas brancos nos vão atirar aos pés?... É preciso neste momento exercer a nossa influência sobre a redacção do relatório que os Alemães vão expedir para Berlim. O motivo da intervenção militar será mais do que suficiente, sobretudo se pensarmos que Mirbach denunciou, sem dúvida, a nossa fraqueza, indicando as consequências possíveis do mínimo abalo...
Sverdlov chegou em breve, sempre igual a si próprio.
- Então, disse-me, estendendo a mão com ar trocista, vamos ser forçados a transformar o Conselho de Comissários num novo Comité de Guerra Revolucionário...
Lenine continuava entretanto a recolher informações. Não me recordo se foi então ou um pouco mais tarde que soubemos da morte de Mirbach. Era preciso irmos à embaixada apresentar as nossas "condolências". Foi decidido que iriam Lenine, Sverdlov e também Tchitcherine, creio. Ficaram na dúvida se eu deveria acompanhá-los. Após uma breve troca de impressões fui dispensado deste frete.
- Como deveremos exprimir-nos? observou Vladimir Ilitch, abanando a cabeça. Falei disso a Radek. Era minha intenção dizer "Mitleid" (condolências); mas parece que é preciso dizer: "Beileid"(3).
Riu um pouco, muito pouco e muito baixo, vestiu-se e disse a Sverdlov num tom firme:
- Vamos! E o seu rosto transformou-se, tornando-se de um cinzento cor de pedra. Era difícil para Ilitch ter de fazer esta visita à embaixada dos Hohenzolern, ter de apresentar condolências pela morte dum conde Mirbach. Foi provavelmente uma das emoções mais penosas, um dos momentos mais difíceis de toda a sua vida.
É em ocasiões destas que se julgam as pessoas. Sverdlov foi verdadeiramente incomparável: seguro de si, corajoso, firme, inventivo; um bolchevique da melhor espécie. Lenine acabou por descobrir e apreciar Sverdlov precisamente nestes meses difíceis. Quantas vezes, ao telefonar a Sverdlov ,para lhe pedir que tomasse esta ou aquela medida urgente, o ouvia responder: "Já", o que significava que a medida já tinha sido tomada, Divertíamo-nos muitas vezes acerca deste facto, e dizíamos: "Por parte de Sverdlov, não há dúvida que já é: "já".
- E, contudo, no início, não achávamos dever admiti-lo no Comité Central, disse um dia Lenine; isto mostra a que ,ponto desconhecíamos o homem! Tivemos sobre este assunto famosas disputas, porém o Congresso, lá em baixo, corrigiu-nos e não fez senão bem.(4)
A amotinação dos socialistas-revolucionários de esquerda tinha-nos privado duma aliança política; mas, ao fim e ao cabo, em lugar de nos enfraquecer, fortaleceu-nos. O nosso Partido uniu-se mais. Nas instituições, no exército, passou a compreender-se melhor a importância das células comunistas. O governo seguiu a sua vida de um modo mais firme.
A revolta dos Checoslovacos teve, sem dúvida alguma, o mesmo efeito: fez sair o Partido do abatimento em que se encontrava após a paz de Brest-Litovsk. Entrou-se então no período em que se sucederam as mobilizações no seio do Partido, mobilizações essas dirigidas para a frente oriental. O primeiro grupo de que ainda faziam parte os socialistas-revolucionários de esquerda foi enviado por Lenine e por mim. Desenhava-se já, embora de início bastante vagamente, a organização das futuras secções políticas. Continuávamos, entretanto, a receber más notícias do Volga. A traição de Muraviev e o levantamento dos socialistas-revolucionários de esquerda tinham lançado temporariamente a frente do Leste de novo na desordem. O perigo aumentou imediatamente. Foi então que se iniciou uma transformação radical.
- É necessário mobilizar tudo e todos e enviá-los para a frente, dizia Lenine. É preciso destacar do corpo do exército tudo o que está mais ou menos apto a bater-se e enviá-lo para o Volga.
Devo lembrar que se chamava "corpo" a um estreito cordão de tropas estacionado no Oeste, em frente da região ocupada pelos Alemães.
- E os Alemães? perguntavam a Lenine.
- Os Alemães não se mexerão; têm mais que fazer; aliás eles próprios estão interessados em que acabemos com os Checoslovacos.
Este plano foi adoptado e foi assim que se constituiu o grosso do futuro V Exército. Decidiu-se então que eu partisse para o Volga. Tratei da formação de um comboio, o que nessa época não era assim tão fácil. O próprio Vladimir Ilitch entrava em todas as diligências, enviava-me bilhetes, telefonava constantemente.
- Tem um automóvel bastante sólido? Vá buscar um à garagem do Kremlin.
E meia hora mais tarde:
- Você leva um avião? É preciso levar um, pode ser útil.
- O exército tem aviões, respondia, servir-me-ei de um se for necessário.
E, de novo, meia hora mais tarde:
- Continuo a achar que deve levar um avião no comboio; nunca se sabe o que ,pode acontecer!
E assim por diante.
É conhecido o modo como os nossos regimentos e destacamentos formados à pressa, principalmente daquilo que restava do antigo exército disperso, debandaram de forma assaz lamentável logo no primeiro recontro com os Checoslovacos.
- Precisamos de uma forte cintura de defesa formada por comunistas e, em geral, de homens combativos, para remediar esta terrível instabilidade, dizia eu a Lenine antes de partir. É necessário forçar os homens a combater. Se estamos à espera que o mujique acabe de acordar, será tarde demais.
- É verdade, respondia Lenine, mas temo que a própria cintura de defesa se rompa. 0 homem russo é demasiado bom; não é capaz de tomar resolutamente medidas de terror revolucionário. Contudo, é indispensável experimentar.
Encontrava-me em Sviajsk quando tomei conhecimento do atentado contra Lenine e do assassinato de Uritski. Nesses dias trágicos a revolução atravessava uma crise interior. Libertava-se da sua "bondade". O gládio do Partido recebia enfim a sua têmpera. Afirmava-se o espírito de resolução e, quando era preciso, davam-se mostras de um rigor implacável. Na frente, as secções políticas, com os destacamentos de defesa e os tribunais, forneciam ao corpo mole do jovem exército a sua ossatura. Em breve se evidenciou essa modificação. Kazan e Simbirsk foram reconquistadas. Em Kazan recebi de Lenine, que começava a curar-se do seu ferimento, um telegrama de felicitações por altura das primeiras vitórias obtidas no Volga. Pouco tempo depois fiz uma breve estadia em Moscovo; dirigi-me com Sverdlov a Gorki, a casa de Vladimir Ilitch, cuja saúde melhorava rapidamente, mas que não retomara ainda o seu trabalho em Moscovo.
Encontrámo-lo de excelente humor. Pediu-nos imensos pormenores sobre a organização do exército, as suas disposições, o papel desempenhado pelos comunistas, o aperfeiçoamento da disciplina. Repetia alegremente:
- Ora, está bem, está perfeito. A consolidação do exército vai fazer-se sentir em todo o país: teremos mais disciplina, Sentiremos melhor as responsabilidades...
Com efeito, a partir dos meses do Outono, a transformação foi grande. Já nada restava dessa mole impotência que caracterizara a Primavera. Algo se tinha mudado, fortificado, e é notável que, desta vez, a revolução tivesse sido salva, não devido a novas tréguas, mas ao contrário devido ao mais grave dos perigos: esse perigo fez brotar no proletariado as fontes secretas da energia revolucionária. Quando Sverdlov e eu tomámos lugar no automóvel, Lenine, radioso e cheio de vida, encontrava-se à varanda. Apenas o tinha visto tão contente em Smolni, a 25 de Outubro, quando tomara conhecimento dos primeiros sucessos militares da insurreição. Procedemos à liquidação política dos socialistas-revolucionários de esquerda. Limpámos o Volga. Lenine recompôs-se dos ,seus ferimentos. A revolução crescia em força e em coragem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário somente será publicado se estiver dentro do contesto desta publicação.