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sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Ao Redor de Outubro

Segunda Parte
Capítulo V - O Trabalho Governamental
Conquistou-se o poder em Petersburgo. É preciso formar governo.
- Como deverá chamar-se? pensa Lenine em voz alta. Sobretudo não queremos ministros! O título é abjecto, já foi arrastado por todo o lado.
- Poderiam nomear-se comissários, disse eu então; mas presentemente há já demasiados comissários... Talvez "altos comissários"... Não, "alto-comissário" soa mal. E se lhes chamássemos "comissários do povo"?
- Comissários do povo? Com efeito, parece-me que poderia servir. E o governo, no seu conjunto?
- Conselho dos Comissários do Povo?
- Conselho dos Comissários do PoVO, repetiu Lenine; sim, está perfeito: cheira a revolução.
Lembro-me desta última frase com uma precisão literal.(1)
Prosseguiam nos bastidores as penosas negociações com o Vikjel (Comité Executivo Pan-Russo dos Ferroviários), com os socialistas-revolucionários de esquerda e com outros. No entanto, neste capítulo pouco poderei dizer. Lembro-me apenas da veemente indignação que as pretensões insolentes do Comité pan-russo dos ferroviários provocaram em Lenine e da sua igual indignação contra aqueles de entre nós que se impressionavam com tais exigências. Continuávamos, portanto, com as negociações, uma vez que era preciso aceitar este Comité durante mais algum tempo.
Por iniciativa do camarada Kamenev, a lei promulgada por Kerenski, instituindo a pena de morte, foi abolida. Não consigo recordar-me exactamente qual foi a instituição a que Kamenev apresentou a proposta; foi provavelmente ao Comité de Guerra revolucionário e parece-me que o fez logo na manhã de 25 de Outubro. Lembro-me que isso se passou na minha presença e que não fiz qualquer objecção. Lenine encontrava-se ausente. Isto passava-se, sem dúvida, antes da sua chegada a Smolni. Quando tomou conhecimento deste primeiro acto legislativo a sua indignação não teve limites.
- Disparates, disparates, repetia. Pensam que é possível fazer-se uma revolução sem fuzilamentos? Pensais, na verdade, que podereis destruir todos os vossos inimigos desarmando-vos? Que outras medidas de repressão nos restam? A prisão? Quem se deixará intimidar por tal medida durante uma guerra civil, quando cada um dos adversários espera vencer?
Kamenev procurava demonstrar que se tratava apenas de abolir a pena de morte por meio da qual Kerenski queria sobretudo atingir os soldados desertores. Mas Lenine foi inflexível. Para ele era evidente que este decreto manifestava uma atitude insuficientemente ponderada perante as imensas dificuldades com que iríamos deparar.
- É um erro, repetia, é uma fraqueza inadmissível, uma ilusão pacifista, etc.
Propunha que se anulasse imediatamente o decreto. Objectou-se-lhe com a impressão extremamente desagradável que esse gesto viria a provocar. Alguém disse:
- Vale mais recorrer às execuções, quando se tornar evidente que não há outra hipótese.
Aceitou-se finalmente esta solução.
Os jornais burgueses, socialistas-revolucionários e mencheviques, formaram, nos primeiros dias que se seguiram à revolução, um coro bem afinado: coro de lobos, chacais e cães raivosos. Apenas o Novoié Vrémia se esforçava por utilizar um tom de "Idealismo", adoptando uma atitude de cão fustigado.
- Então não pomos o açaimo a esta canalha? perguntava constantemente Vladimir Ilitch. Valha-me Deus, então é isto a ditadura!
Os jornais tinham-se aproveitado da expressão: "Pilha o que foi pilhado", explorando-a de todas as maneiras: em artigos de fundo, em crónicas, em verso.
- Insistem no "pilha o que foi pilhado", disse certo dia Lenine, possuído dum desespero cómico.
- Mas de quem são estas palavras? perguntei; serão
inventadas?
- Claro que não! Efectivamente, disse-as eu, certo dia, respondeu Lenine; disse-as, esquecendo-as logo; mas eles, eles fizeram delas todo um programa.
E, como bom humorista, fez um gesto de desânimo. Todos aqueles que têm um conhecimento mínimo de Lenine sabem que uma das suas mais importantes capacidades era a de separar sempre o fundo da forma. Mas não será inútil sublinhar o quanto lhe importava a forma, conhecendo o poder exercido pelo formal sobre os espíritos e desse modo transformando o material em substancial. A partir do momento em que o Governo Provisório foi deposto, Lenine agiu sistematicamente, nas grandes como nas pequenas questões, a título de governo. Não tínhamos ainda qualquer mecanismo governamental; a ligação com a província era inexistente; os funcionários praticavam a sabotagem; o Comité Pan-Russo dos Ferroviários dificultava as nossas conversas telegráficas com Moscovo; não havia dinheiro e não havia exército. Mas Lenine, sempre e em todo o lado,
actuava por meio de posturas, decretos, ordens dadas em nome
do governo. É evidente que estava menos disposto que qualquer outro a inclinar-se supersticiosamente perante fórmulas mágicas. Estava por demais consciente do efeito dia nossa força residir no novo aparelho de Estado que se formava a partir da base, na região de Petrogrado. Mas para conduzir simultaneamente o trabalho que emanava do alto, o que vinha das chancelarias desertas ou sabotadas, e o trabalho da base, era necessário esse tom de firmeza nas formas, esse tom de um governo que ainda agora se agita no vazio, mas que amanhã ou depois se transformará numa força e que, em consequência disso, se manifesta já como a força que há-de vir a ser. Este formalismo era igualmente necessário para disciplinar a nossa própria confraria. Por cima da tormenta dos elementos, por cima das improvisações revolucionárias dos grupos proletários mais avançados, o mecanismo governamental estendia pouco a pouco os seus fios.
O gabinete de Lenine e o meu estavam situados nos extremos opostos do Instituto Smolni. O corredor que nos unia, ou melhor, nos separava, era tão longo que Vladimir Ilitch propôs, por brincadeira, que fizéssemos ligação utilizando ciclistas. Comunicávamos por telefone: chegavam frequentemente ao meu Gabinete marinheiros que me traziam esses notáveis bilhetes de Lenine, duas ou três frases incisivas destacando-se num pequeno pedaço de papel, cada uma em parágrafo, com as palavras mais importantes sublinhadas por dois ou três traços de caneta, terminando o conjunto por uma pergunta feita em novo parágrafo. Diariamente, percorria várias vezes o corredor interminável, lembrando um formigueiro, para me dirigir ao gabinete de Vladimir Ilitch a fim de assistir a reuniões. As questões relativas à luta revolucionária estavam no centro das nossas preocupações. No que se referia ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, coloquei-me completamente nas mãos dos camaradas Markine e Zalkind. Limitei-me apenas a redigir algumas notas com o fim de provocar a agitação e a receber um número reduzido de pessoas.
A ofensiva alemã colocou-nos perante as tarefas mais difíceis num momento em que não possuíamos quaisquer meios para resolver os problemas, nem mesmo a capacidade elementar de encontrar esses meios ou de os criar. Começámos por lançar um apelo. Redigi um projecto intitulado: "A pátria socialista está em perigo", projecto que foi discutido em comum com os socialistas-revolucionários de esquerda. Estes, na sua qualidade de novos recrutas do internacionalismo , ficaram embaraçados com o título. Lenine, ao contrário, aprovou-o vivamente:
- Isto demonstra imediatamente uma modificação de 180º na nossa atitude ,em relação à defesa nacional. É exactamente do que precisamos.
Num dos últimos parágrafos do projecto falava-se da exterminação imediata de todo aquele que ousasse ajudar o inimigo. Steinberg, socialista-revolucionário de esquerda, que não sei por que vento caprichoso fora atirado para a revolução e impelido até ao Conselho dos Comissários do Povo, insurgiu-se contra esta ameaça feroz que, dizia ele, prejudicava a "eloquência" do apelo.
- Pelo contrário, exclamou Lenine, é justamente aí que reside a verdadeira eloquência revolucionária! (Ao pronunciar a palavra "eloquência" modificava-lhe ironicamente a pronúncia). Imaginais que sairemos vencedores da luta sem o mais implacável terror revolucionário?
Este era o período em que Lenine aproveitava todas as ocasiões para implantar a ideia do terror inevitável. Todas as manifestações de "complacência", de candura cordial, de moleza - e havia de tudo isto para dar e vender - indignavam-no, na verdade não por elas próprias: elas constituíam, contudo, uma prova para ele de que até a elite da classe operária via mal os problemas formidáveis que teriam de ser resolvidos por actos de energia igualmente formidáveis.
- Eles estão sob a ameaça de perder tudo - dizia, referindo-se aos nossos inimigos. E todavia têm a seu favor centenas de milhares de homens que passaram pela escola do exército, homens bem comidos, temerários, prontos para tudo: oficiais, junkers, filhos de burgueses e de proprietários, polícias, agrários rapaces. E esses "revolucionários" - passe a expressão - imaginam que poderemos fazer a revolução como boas pessoas, com gentileza. Então o que é que aprenderam na escola? O que supõem ser uma ditadura? E que ditadura de imbecis é essa?
Podiam ouvir-se estas tiradas dez vezes durante o dia, visando sempre um dos homens presentes, suspeito de "pacifismo". Quando se falava de revolução ou de ditadura em frente de Lenine, sobretudo nas sessões do Conselho de Comissários do Povo, ou perante os socialistas-revolucionários de esquerda, ou dos comunistas hesitantes, ele nunca perdia uma oportunidade para exclamar:
- Mas onde vedes vós a nossa ditadura? Vá, mostrai-ma! Isto, ditadura? Mas isto não passa duma papa sem sal!
Gostava muito da expressão "papa", tomada no sentido de mistela.
- Se não formos capazes de fuzilar um sabotador da guarda branca, onde é que está essa grande revolução? Mas lede o que esses malandros burgueses escrevem nos seus jornais! Onde é que está a ditadura? Não vejo senão verborreia e "papa"...
Estes propósitos exprimiam o verdadeiro estado de alma de Lenine, mas eram, ao mesmo tempo extremamente calculados: conforme o seu método, Lenine implantava nas cabeças a consciência da necessidade de medidas excepcionalmente rigorosas para a salvação da revolução.
A impotência do novo aparelho governamental revelou-se no momento em que os Alemães desencadearam a ofensiva.
Ontem, estávamos ainda solidamente montados - dizia Lenine, em privado - hoje, agarramo-nos à crina do cavalo. É para aprendermos! Esta lição deve acabar com a maldita indiferença de verdadeiros Oblomov que somos. Põe ordem nos teus assuntos, aplica-te como deve ser na execução das tuas tarefas se não queres continuar escravo! Será para nós uma grande lição se... e somente se os Alemães e os Brancos não conseguirem derrubar-nos.
- Diga-me - perguntou-me um dia de chofre Vladimir Ilitch - se os guardas brancos nos matarem, a si e a mim, pensa que Bukharine e Sverdlov poderão safar-se?
- Bah! Talvez não nos matem - respondi, num tom de brincadeira.
- Com os diabos! Nunca se sabe - disse Lenine desatando a rir. A conversa parou aí.
Numa das salas de Smolni, o Estado-Maior mantinha-se em sessão. De todas as instituições, era esta a menos ordenada. Nunca se conseguia compreender de quem vinham as decisões, quem detinha o comando e sobre o quê. Foi então que, pela primeira vez, se pôs, nas suas grandes linhas, a questão dos técnicos militares. Possuíamos já alguma experiência neste ponto, adquirida na luta contra o general Krasnov(2); entregáramos então o comando das nossas forças ao coronel Muraviev (3) que, por sua vez, encarregou o coronel Walden de dirigir as operações em Pulkovo. Muraviev estava constantemente acompanhado por quatro marinheiros e um soldado, com ordens de estar alerta e manter sempre a mão sobre a coronha do revólver. Foi este o embrião do sistema de comissários do exército. Tal experiência teve a sua utilidade relativa quando se criou o Conselho Superior do Exército.
- Sem militares sérios e experimentados não sairemos jamais deste caos, dizia eu a Lenine após cada uma das nossas visitas ao Estado-Maior.
- Tem razão. Mas se eles nos traírem?
- Colocaremos um comissário junto de cada um deles.
- Melhor ainda, colocaremos dois, exclamou Lenine, dois
que tenham o pulso firme. Não é possível faltarem-nos comunistas que sejam homens de pulso.
Foi assim que se instituiu o Conselho Superior do Exército. A questão da transferência do governo para Moscovo provocou inúmeras fricções. Seria, dizia-se, desertar de Petrogrado, onde tinham sido lançadas as bases da Revolução de Outubro. Os operários não o compreenderiam. Smolni tornara-se já sinónimo do poder dos Sovietes, e agora propunha-se liquidar Smolni! E diziam-se muitas outras coisas. Lenine ficava literalmente fora de si ao replicar a estas considerações:
- Será possível com semelhantes balelas sentimentais obscurecer o próprio destino da revolução? Se subitamente os Alemães se apoderarem de Petrogrado e nos encontrarem lá, a revolução está perdida. Se, ao contrário, o governo se encontrar em Moscovo, a queda de Petrogrado não passará de um revés penoso, mas não decisivo. Como é possível não verem isto? Como é possível não o compreenderem? E mais ainda: ficando em Petrogrado nas condições actuais, aumentamos o perigo, parecemos estar a convidar os Alemães a apoderarem-se da capital. Mas se o governo se encontrar em Moscovo, a tentação de tomar Petrogrado diminuirá muito: haverá qualquer interesse em tomar uma cidade revolucionária esfaimada, se tal ocupação não decidir o destino da Revolução e da Paz? Que historietas são essas que nos contais acerca do significado simbólico de Smolni? Smolni é Smolni porque estamos cá. E quando nos encontrarmos no Kremlin todo o vosso simbolismo passará connosco para lá.
Finalmente, a oposição foi quebrada. O governo transferiu-se para Moscovo. Eu fiquei ainda algum tempo em Petrogrado, parece-me que na qualidade de presidente do Comité de Guerra Revolucionário da capital. A minha chegada a Moscovo encontrei Vladimir Ilitch no Kremlin, no edifício dito do "corpo de cavalaria". Aqui não havia menos "papa", isto é, menos desordem e caos do que em Smolni. Vladimir Ilitch espicaçava com bonomia os moscovitas, imbuídos dum patriotismo tacanho e, pouco a pouco, passo a passo, puxava as rédeas.
O governo, que se renovava parcialmente com frequência, desenvolvia uma actividade febril na publicação de decretos. Neste primeiro período, cada sessão do Conselho dos Comissários do Povo dava-nos a imagem duma grande improvisação legislativa. Era preciso refazer tudo desde o inicio, construir tudo de novo. Impossível encontrar "precedentes"; a História não tinha qualquer provisão deste tipo. Era até difícil procurar simples informações, por falta de tempo. As questões punham-se apenas pela ordem de urgência revolucionária, isto é, segundo a ordem do caos mais inconcebível. Os problemas mais importantes misturavam-se de um modo fantástico aos mais insignificantes. As questões práticas de segunda ordem conduziam a complexas questões de princípio. Os decretos não concordavam todos uns com os outros, muito pelo contrário, e Lenine troçou mais de uma vez, mesmo em público, sobre a falta de coordenação da nossa obra legislativa. Mas, finalmente, estas contradições, embora muito graves do ponto de vista das necessidades práticas do momento, afogavam-se no trabalho do pensamento revolucionário que, estabelecendo os critérios da lei, traçava novos caminhos para um novo mundo de relações humanas.
Será desnecessário afirmar que a direcção de todo este trabalho pertencia a Lenine. Durante cinco ou seis horas a fio presidia incansavelmente ao Conselho dos Comissários do Povo - cujas sessões foram, no primeiro período, quotidianas - passando de uma questão para outra, dirigindo os debates, limitando estritamente o tempo das intervenções, que verificava com um relógio de bolso, substituído mais tarde por um cronómetro presidencial.
Regra geral, as questões punham-se sem exame prévio e eram sempre, como já afirmámos, de extrema urgência. Frequentemente, o próprio fundo da questão era ainda ignorado pelos membros do Conselho e pelo presidente até ao momento em que se iniciavam os debates, sendo estes sempre muito sucintos, pois o relator dispunha apenas de cinco ou dez minutos. Apesar disso, o presidente descobria, às apalpadelas, a linha que deveria ser seguida. Quando a assistência era numerosa e entre ela se encontravam numerosos técnicos, ou rostos desconhecidos, Vladimir .Ilitch recorria ao seu gesto favorito: com a mão direita posta como uma viseira sobre a testa, observava o relator e a assistência por entre os dedos; mirava com um olhar penetrante e sagaz, descobrindo em breve tudo aquilo de que necessitava.
Inscrevia os oradores sobre uma estreita tira de papel, com uma letra minúscula (economia!), consultando também o relógio que, de tempos a tempos, aparecia sobre a mesa para lembrar ao orador que era tempo de acabar.
E, ao mesmo tempo, o presidente lançava rapidamente sobre o papel as conclusões e as resoluções, de acordo com os motivos que lhe tinham parecido mais significativos durante o debate.
Por outro lado, para economizar tempo, Lenine enviava habitualmente a estes ou àqueles membros da reunião pequenas notas pedindo informações. Estas notas poderiam ter constituído uma vasta e interessante documentação epistolar sobre a técnica da legislação soviética. Infelizmente perderam-se, na sua maioria, pois a resposta era habitualmente escrita no verso do papel e o conjunto imediatamente destruído de forma meticulosa pelo presidente.
Em determinado momento Lenine procedia à leitura do seu projecto de resolução, concebido sempre num estilo premeditadamente frio, duma angulosidade pedagógica (para sublinhar, realçar, impedir a confusão dos factos) após o que os debates cessavam ou entravam na via das propostas práticas e dos esclarecimentos. O projecto de Lenine tornava-se sempre a base do decreto.
(Para dirigir o trabalho era necessário, além de outras qualidades indispensáveis, uma imensa imaginação criadora.
Esta imagem poderá parecer à primeira vista inadequada, mas exprime a própria verdade. A imaginação pode ser de natureza variada: ela é tão necessária ao engenheiro construtor como ao romancista impetuoso. Um dos aspectos mais preciosos da imaginação reside na faculdade de representar as pessoas, as coisas e os fenómenos, tais como são na realidade, mesmo sem os ter visto. Utilizar toda a experiência que se tem da vida e os princípios teóricos; combinar as observações e as informações dispersas, apanhadas no ar; elaborá-las, uni-las num todo, completá-las segundo certas leis de correspondência ainda não formuladas e reconstituir assim, em toda a sua realidade concreta, um domínio determinado da existência humana - eis a imaginação de que precisa o legislador, o administrador, o chefe.
Sobretudo numa época de revolução. Uma parte extremamente
importante da força de Lenine encontrava-se na sua imaginação realista.
A perpétua tensão de que se encontrava possuído para
atingir um determinado fim era sempre concreta; aliás, de outro modo, não teria constituído a expressão duma vontade dirigida e definida muito nitidamente. Parece que o próprio Lenine terá exprimido pela primeira vez no Iskra a ideia de que, perante a complexidade ,do encadeamento dos actos políticos, é necessário saber discernir, num dado momento, qual o elo principal, e apoderarmo-nos dele para imprimir ao movimento de toda a cadeia a direcção desejada.
Mais tarde, Lenine retomou várias vezes esta ideia, empregando frequentemente a imagem da cadeia e do elo.
Dir-se-ia que nele este método passou da esfera do consciente para a do subconsciente, tornando-se de certo modo uma segunda natureza.
Nos momentos mais críticos, quando se tratava de uma reviravolta táctica mais ou menos arriscada, que envolvia particular responsabilidade, Lenine parecia afastar, varrer tudo o que era acessório, secundário, tudo o que podia ser diferido.
Isto não significa que se contentasse em considerar um problema central nos seus traços essenciais, desinteressando-se dos pormenores. Ao contrário, quando considerava uma tarefa urgente, punha o problema em toda a sua realidade concreta, abordando-o de diversos lados, meditando nos pormenores, por vezes até em pormenores de terceira ordem, procurando o momento de imprimir novos impulsos, gravando os factos na memória, provocando a acção, sublinhando e verificando os valores, exercendo uma pressão contínua. Tudo isto estava, porém, subordinado à importância do "elo", considerado por ele como o elemento mais eficaz, o único elemento decisivo em determinado momento.
Assim, não rejeitava apenas tudo o que directa ou indirectamente estava em contradição com a tarefa central; afastava também o que podia simplesmente distrair a atenção, enfraquecer a energia. Nos momentos mais críticos tornava-se como que surdo e mudo relativamente a tudo o que ultrapassava os limites do problema que o absorvia. O mero facto de levantar nesse momento questões que podiam parecer indiferentes, neutras, dava-lhe uma espécie de sensação de perigo de que se afastava instintivamente.
Ultrapassada sem problemas a etapa crítica, Lenine exclamava com frequência a propósito deste ou daquele assunto:
- Mas nós esquecemo-nos completamente de fazer isto...
- Nós deixámos escapar aquela ocasião, ao pensarmos apenas nas questões principais... Acontecia que lhe respondessem:
- Essa questão foi posta, essa proposta foi feita, porém você não as quis ouvir!
- Impossível, respondia - não me lembro de nada! E ao mesmo tempo que falava, desatava a rir maliciosamente, um pouco "confuso", fazendo com a mão um gesto que lhe era habitual, de cima para baixo, e que significava: "Não se pode fazer tudo" Nele, esse defeito não era aliás senão o reverso da aptidão (levada ao seu mais alto grau) de reunir todas essas forças interiores, aptidão que fez dele precisamente um dos maiores revolucionários da História.
Nas teses de Lenine sobre a paz, redigidas no início de Janeiro de l9l8, menciona-se a necessidade "de um certo intervalo de tempo, de pelo menos alguns meses, para o sucesso do socialismo na Rússia.
Estas palavras parecem-nos hoje completamente ininteligíveis: não será um lapso, não se tratará, na realidade de alguns
anos ou de algumas dezenas de anos?
Não, não se trata de um erro de escrita. Provavelmente, é possível deparar com outras declarações análogas de Lenine. Recordo-me que, em Smolni, durante o primeiro período, Lenine repetia invariavelmente, nas sessões do Conselho dos Comissários do Povo, que o socialismo seria instaurado no prazo de seis meses e que nos tornaríamos um dos Estados mais poderosos. Os socialistas-revolucionários de esquerda, e não apenas eles, levantavam a cabeça com um ar surpreendido e interrogador, olhavam uns para os outros, mas calavam-se. Lenine aplicava assim o seu sistema de persuasão. Habituava todos os colaboradores a considerar, a partir de então, todas as questões do ponto de vista da construção do socialismo, não segundo a perspectiva do "objectivo final" mas segundo a perspectiva do fim imediato, das tarefas do dia e ,do dia seguinte.
Recorria, nesta brusca transição, ao seu método tão particular, tão singular, de dobrar o junco primeiro num sentido e depois no outro: ontem dissera-se que o socialismo constituía o "objectivo final", hoje deveria pensar-se, falar e agir de forma a assegurar o triunfo do socialismo dentro de alguns meses.
Tratar-se-ia apenas de um processo pedagógico? Não somente. Á perseverança pedagógica de Lenine será preciso acrescentar o seu poderoso idealismo, a sua vontade concentrada que, na. viragem brusca de duas épocas, encurtava as etapas e abreviava os prazos.
Lenine acreditava naquilo que dizia.
E este prazo fantástico de seis meses, atribuído ao socialismo, era função tanto do espírito de Lenine como do seu modo realista de abordar cada problema da actualidade. Uma confiança profunda e irredutível nas poderosas capacidades do desenvolvimento humano, que se pode e deve pagar à custa de sabe-se lá que sacrifícios e sofrimentos, constituiu sempre a mola real do espírito do chefe.
Nas condições mais penosas, durante os trabalhos quotidianos mais extenuantes, através das dificuldades de abastecimento e de todas as outras tarefas, no circuito de fogo da guerra civil, Lenine trabalhava com uma aplicação escrupulosa na elaboração da Constituição soviética, procurando o equilíbrio entre as necessidades práticas de segunda ou terceira ordem no mecanismo de estado e as tarefas essenciais, indicadas pelos princípios da ditadura proletária num país de camponeses.
A Comissão da Constituição decidiu, não se sabe porquê, rever a "Declaração dos Direitos dos Trabalhadores", elaborada por Lenine, a fim de a "ajustar" ao texto da Constituição. Quando cheguei a Moscovo, vindo da frente, recebi, enviado pela Comissão, entre outros documentos, o projecto revisto ,da "Declaração", ou, pelo menos, certas partes desse projecto.
Tomei conhecimento dos documentos no gabinete de Lenine, na sua presença e na de Sverdlov. Preparava-se então o V Congresso dos Sovietes.
- A propósito, porque é que se está a fazer a revisão desta "Declaração"? perguntei a Sverdlov, que ,dirigia os trabalhos da Comissão constitucional.
Vladimir Ilitch levantou a cabeça, interessado.
- Pois bem, eis a razão: a Comissão achou que a "Declaração" não concordava em todos os pontos com a Constituição e que certas fórmulas careciam de precisão, respondeu Iakov Mikhailovitch.
- Na minha opinião está errado, repliquei. A "Declaração" já tinha sido adoptada, tornou-se um .documento histórico; por que motivo é que a querem rever?
- Tem toda a razão, retorquiu Vladimir Ilitch, e na minha opinião fizeram mal em meterem-se nisso. Que esta criança desgrenhada e tatebitate viva tal como é; será, por muito que tentem o contrário, filha da revolução. Duvido que fique melhor ao passar pelas mãos dum cabeleireiro.
Sverdlov tentou primeiro, "por dever", defender a decisão da sua Comissão; em breve, porém, concordava connosco. Compreendi que Vladimir Ilitch, forçado como fora mais do que uma vez a combater estas ou aquelas propostas da Comissão, não quisera travar luta a propósito do texto da "Declaração dos Direitos" - de que era autor. No entanto, ficara encantado com o apoio de terceiros surgido no último momento. Concordámos os três em não modificar a "Declaração", e o bébé maravilhoso, de grenha eriçada, foi dispensado de se submeter aos cuidados do cabeleireiro...
O estudo da evolução da legislação soviética, das principais etapas que a marcam, das reviravoltas que deu com a própria revolução, bem como das relações entre classes nela expressas, constitui uma tarefa da mais elevada importância, pois as deduções que se impõem podem, e devem, ter o valor de ensinamentos práticos de primeira ordem para o proletariado dos outros países.
A recolha dos decretos soviéticos constitui de certo modo uma parte, que não é das menos importantes, das obras completas de Lenine.

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