Permitam-me declarar aberta a reunião da Associação Científica-Militar – a 518, segundo acabam de me dizer.
O tema da nossa discussão de hoje será o lugar do saber e da habilidade militares no sistema dos conhecimentos humanos em geral. Reconheço, antes de mais, que a responsabilidade da iniciativa desta discussão me cabe pessoalmente em grande parte.
Não porque considere que este problema complexo, abstrato, teórico e filosófico – no melhor e – no pior sentido dos termos – é o mais urgente e atual da nossa instrução militar, mas tive a impressão de que estas questões se nos impunham, a par com a evolução ideológica e com certa luta teórica nas altas esferas do nosso exército.
Numa das nossas publicações, bastante próxima da nossa Associação, li dois artigos um dos quais demonstrava que a ciência militar não podia ser edificada segundo os métodos do marxismo, que era impossível utilizá-los para resolver os seus problemas particulares, uma vez que a ciência militar faz parte das ciências naturais.
Este artigo era acompanhado dum outro, polêmico-crítico, que exprimia sem dúvida mais de perto o ponto de vista da redação. Neste, pelo contrário, tratava-se de tentar provar que os métodos do marxismo eram métodos científicos universais e que, por conseguinte, a sua competência se estendia igualmente à ciência militar.
Peço desculpa mais uma vez, mas pessoalmente creio que ambas as opiniões são falsas: a ciência militar não pertence à categoria das ciências naturais, porque nem é "natural", nem é "ciência". Talvez a discussão de hoje nos aproxime um pouco mais do fundo do problema.
Mas, mesmo que admitamos que a "ciência militar" é uma ciência, não podemos de modo algum admitir que ela possa ser construída por métodos marxistas; porque o materialismo histórico não é um método universal pára todas as ciências. Este é um enorme erro que me parece acarretar as mais nocivas conseqüências.
Podemos com êxito dedicar-nos durante toda a nossa vida aos assuntos militares, sem nunca refletir sobre os métodos teóricos do conhecimento dos assuntos militares – tal como podemos olhar todos os dias para o relógio, ignorando o seu mecanismo interior e a disposição das suas molas e engrenagens. Conhecendo os algarismos e o movimento dos ponteiros sobre o mostrador, não corro o risco de me enganar.
Mas, se não me sentir satisfeito com o movimento dos ponteiros sobre o mostrador e se quiser falar da estrutura do relógio, devo conhecê-la como deve ser; e não há qualquer lugar para incluir coisas da minha lavra.
Numa outra discussão (a propósito da doutrina militar unitária), já me referi a um episódio da vida de Guéorgui Valentinovitch Plekhanov – o primeiro cruzado do marxismo na Rússia, homem de inteligência rara e altamente dotado. Quando notava que alguém opunha os problemas do materialismo filosófico e histórico ou, pelo contrário, os confundia – Plekhanov protestava violentamente.
O materialismo filosófico é uma teoria que está na base das ciências naturais, ao passo que o materialismo histórico explica a história da sociedade humana. O materialismo histórico é um método que não explica todo o universo, mas sim um grupo estritamente definido de fenômenos que condicionam o desenvolvimento do homem histórico.
O materialismo filosófico explica o movimento do universo enquanto mudança e transformação da matéria e leva o seu raciocínio até às "mais altas" manifestações do espírito. Ser politicamente, marxista sem conhecer o materialismo histórico é difícil, para não dizer impossível. Ser politicamente marxista e não conhecer o materialismo filosófico é possível – e há tantos exemplos destes quantos quiserem...
E, quando algum marxista (chamado, outrora, "social-democrata") divagava pelo domínio da filosofia e começava a confundir tudo, o defunto Plekhanov atacava-o sem piedade. Quantas vezes lhe disseram: "É um jovem, Guéorgui Valentinovitch não teve tempo de estudar filosofia, combatia na clandestinidade..." Mas, Plekhanov respondia, aliás com toda a razão: "Se não sabe, que se cale. Ninguém o obriga a falar...
O nosso programa não prevê que um social-democrata tenha de ser um apaixonado do materialismo filosófico. É preciso ,que seja um membro ativo do partido, um combatente corajoso pela causa da classe operária – mas, quando uma pessoa se aventura no domínio da filosofia, não deve confundir tudo".
E erguia-se em toda a sua estatura, tomando na mão a sua maravilhosa pena polêmica. Se folhearmos a história do partido, veremos que numerosos são aqueles que ainda mostram os seus vestígios.
No domínio da filosofia militar, considero que devemos seguir a boa tradição do defunto Plekhanov. De modo algum somos obrigados a tratar de questões ditas "gnosiológicas"; "teórico-cognitivas" ou filosóficas; mas se acontece que já nos preocupamos com elas, não devemos confundir nada nem comprometermo-nos num ou outro domínio com armas inadequadas, esforçando-nos por aplicar diretamente o método marxista aos assuntos militares, no sentido mais estrito do termo (e não na política militar).
Esforçar-se por edificar um domínio militar especial, através do método marxista, constitui o maior dos erros, que em nada cede à tentativa de incluir o saber militar no domínio das ciências naturais. Se não me engano; os representantes destas duas tendências preparam-se para tomar hoje a palavra; explicarão sem dúvida melhor do que eu as suas idéias – e depois discutiremos.
Não penso, camaradas, que cheguemos hoje à mínima solução geral e obrigatória desta questão. Mas, se conseguirmos clarificar certas coisas e se se impuser a conclusão de que temos de ser mais prudentes quanto à utilização direta do marxismo nos domínios particulares da criação, já não será mau.
Toda a gente sabe que com a nossa "doutrina militar" – um tanto ligada à discussão atual – andamos principalmente em círculos e emitimos as opiniões mais diversas; não penso, contudo, que por isso nos tenhamos enriquecido, a não ser num sentido negativo: toda a gente pôde convencer-se que nada de especial daí saiu.
Tínhamos prometido a nós próprios criar uma "doutrina militar unitária" numa base "proletária e marxista"e, depois de termos discutido chegamos a uma conclusão anterior – rever os nossos regulamentos em função da experiência acumulada. Estamos a revê-los – lentamente, cambaleando, porque as nossas estradas são caminhos de aldeia e numerosos são os trilhos.
Mas, espero firmemente que a revisão dos regulamentos será realmente útil; não vamos inventar uma nova doutrina militar por via de decreto; pelo contrário, vamos desembaraçar-nos de muitas coisas inúteis e formular mais claramente outras.
Quanto à reunião de hoje, a utilidade de uma larga discussão consagrada às relações entre os assuntos militares e o marxismo, será, por assim dizer, mais de ordem intelectual e higiênica e permitirá eliminar certas confusões.
A tarefa prática é a seguinte: aprendamos a falar mais simplesmente da cavalaria, é inútil sobrecarregar as nossas discussões sobre a aviação com uma pedante terminologia marxista, com termos sonoros, com problemas altamente significativos – que se revelam muitas vezes um envelope sem conteúdo nem essência...
Camaradas, eis as observações introdutórias que me permito fazer. No interesse do auditório, que compreende camaradas diversamente versados nos problemas filosóficos, peço encarecidamente a todos os relatores e participantes nos debates que se se exprimam da maneira mais concreta, mais precisa, mais simples e mais compreensível possível.
Penso estar próximo da verdade, ao afirmar que nem todas as pessoas aqui presentes estudaram a filosofia de A a Z e é mesmo provável que alguns de nós não tenham lido nunca os mais elementares livros de filosofia.
Penso que o fato de nos dirigirmos a um auditório não iniciado em filosofia apresenta mais uma vantagem: permite verificar a bagagem de cada um dos relatores, pois a terminologia filosófica é também um processo que se parece muito com o teatro...
A maquilagem pode ser impressionante, mas acontece às vezes que não há nada por baixo. Aliás, esse ocultismo para augures e outros iniciados, essas tradições e métodos medievais, segundo o que eu pude observar, são ainda respeitados em numerosos artigos das nossas publicações militares. Peço-vos, pois, que se dignem exprimir mais simplesmente as suas idéias.
Permitam, camaradas, que passemos agora aos debates. Na ordem dos relatórios previstos, peço ao camarada Loukirski que apresente a sua exposição.
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