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sexta-feira, 21 de novembro de 2008

As Lições de Outubro


Capítulos 4 a 6
A Conferência de Abril
O discurso de Lenine na estação da Finlândia sobre o carácter socialista da Revolução russa foi como que uma bomba para muitos dirigentes do Partido. Logo no primeiro dia rebentou a polémica entre Lenine e os partidários da "conclusão da revolução democrática".
A demonstração armada de Abril, em que a palavra de ordem: "Abaixo o Governo Provisório" ecoou, deu ensejo a um grave conflito. Serviu de pretexto a certos representantes da direita para acusar Lenine de blanquismo: o derrube do Governo Provisório sustentado pelo soviete na sua maioria, só poderia pretensamente ser obtido, escamoteando a vontade da maioria dos trabalhadores. Formalmente, podia parecer que a censura não deixava de ter sentido; na realidade, não havia nem sombra de blanquismo na polémica de Lenine em Abril. Na sua opinião, toda a questão consistia em saber em que medida é que os Sovietes continuavam a reflectir o verdadeiro estado de espírito das massas e em determinar se o Partido não estava enganar-se, orientando-se por eles. A manifestação de Abril, "mais á esquerda" do que convinha, foi um reconhecimento destinado a verificar o estado de espírito das massas e as relações entre estas e a maioria do soviete. Demonstrou a necessidade de um longo trabalho de preparação. Em princípios de Maio, Lenine censurou severamente os marinheiros de Cronstadt que, no seu ardor, se adiantaram demasiadamente, declarando não reconhecer o Governo Provisório.
Os adversários da luta pelo poder abordaram a questão de forma completamente diferente. Kamenev, na Conferência de Abril do Partido, expunha as suas queixas: "No n.0 19 da Pravda houve camaradas (trata-se evidentemente de Lenine. L. T.) que propuseram uma resolução sobre o derrube do Governo Provisório, impressa antes da última crise, que contudo rejeitaram mais tarde como susceptível de introduzir a desorganização e de influência aventureira. Como se vê, os camaradas em questão aprenderam alguma coisa durante a crise. A resolução proposta (quer dizer, a resolução proposta por Lenine à Conferência. - L. T.) comete o mesmo erro." Esta maneira de encarar a questão é extremamente significativa. Uma vez efectuado o reconhecimento, Lenine retirou a palavra de ordem de derrube imediato do Governo Provisório; retirou-a contudo temporariamente, por algumas semanas ou meses, de acordo com a maior ou menor rapidez com que crescesse a indignação das massas com os conciliadores. A oposição, essa, considerava esta palavra de ordem como um erro. O recuo provisório de Lenine não comportava a mais pequena modificação na sua linha. Lenine não se baseava no facto de ainda não ter terminado a revolução democrática, mas tão somente em que a massa ainda não era capaz de derrubar o governo provisório, para o que devia prepará-la o mais depressa possível.
Toda a conferência de Abril do partido foi consagrada a esta questão essencial: lançamo-nos à conquista do poder para realizar a revolução socialista, ou ajudamos a concluir a revolução democrática? Infelizmente, o relatório desta conferência ainda não está impresso; contudo, talvez não haja nenhum outro congresso na história do nosso Partido com uma importância tão grande, tão directa, para a sorte da revolução.
Luta irredutível contra o defensismo e os defensistas; conquista da maioria nos Sovietes; derrube. por seu intermédio, do governo provisório; política revolucionária de paz; programa de revolução socialista no interior e de revolução internacional, no exterior. Tal é a plataforma de Lenine. Como se sabe, a oposição era pelo acabamento da revolução democrática através de uma pressão sobre o Governo Provisório, devendo permanecer os Sovietes como órgãos de "controle" do poder burguês. Daí uma atitude muito mais conciliadora para com o defensismo.
Um dos adversários de Lenine declarava na conferência de Abril: "Falamos dos sovietes operários e soldados como centros organizadores das nossas forças e do poder... Só pelo nome se mostra que são um bloco de forças pequeno-burguesas e proletárias. ao qual se impõe a necessidade de completar as tarefas democrático-burguesas. Se a revolução democrática burguesa terminasse, este bloco deixaria de existir... e o proletariado prosseguiria a luta contra ele... Contudo, reconhecemos nestes sovietes os centros de organização das nossas forças... Logo, a revolução burguesa ainda não é assunto arrumado, não mostrou aquilo que vale e, é forçoso reconhecê-lo, se já tivesse terminado, o poder passaria para as mãos do proletariado." (Discurso de Kamenev).
A inconsistência deste raciocínio é evidente: com efeito, enquanto o poder não passar para outras mãos, nunca a revolução se dará por completamente terminada. O autor do percipitado discurso ignora o verdadeiro eixo da revolução, deduzindo as tarefas do partido, não do agrupamento real das forças de classe, mas de uma definição formal da revolução considerada como burguesa ou democrático-burguesa. Na sua opinião, enquanto não se tiver concluído a revolução burguesa, é necessário fazer bloco com a pequena burguesia e exercer um controle sobre o poder burguês. Aí está um esquema nitidamente menchevique. Limitando doutrinariamente as tarefas da revolução com o qualificativo correspondente (revolução "burguesa") devia-se fatalmente acabar na política de controle do Governo Provisório, na reivindicação de um programa de paz sem anexações, etc... Por acabamento da revolução democrática subentendia-se a realização de uma série de reformas por intermédio da Constituinte, onde o partido bolchevique devia desempenhar o papel de ala esquerda. A palavra de ordem: "Todo o poder aos sovietes" perdia assim todo e qualquer conteúdo real. Foi o que Noguine, mais lógico do que os seus camaradas de oposição, declarou à conferência de Abril: "No decorrer da evolução, desaparecem as atribuições mais importantes dos sovietes, uma série das suas funções sendo transmitidas às municipalidades ,aos zemstvos, etc... Consideremos o desenvolvimento ulterior da organização estatal: que há de vir a ser formada uma Assembléia Constituinte e, depois dela, um Parlamento, não restam dúvidas. Daí resulta que os sovietes ir-se-ão progressivamente desincumbindo das suas principais funções, o que não quer dizer que terminem vergonhosamente a sua existência. Nada mais farão do que transmitir as suas funções. Com sovietes do tipo actual é que a república-comuna não se realizará entre nós."
Por fim, um terceiro oponente abordou a questão do ponto de vista da maturidade da Rússia para o socialismo: "Arvorando a palavra de ordem da revolução de massas? Não, porque a Rússia.é. o país mais pequeno-burguês da Europa. Se o partido adoptar a plataforma da revolução socialista, transformar-se-á num círculo de propagandistas. Do Ocidente é que se deve desencadear a revolução... Onde é que brilhará o sol da revolução socialista? Dado o estado de coisas por cá reinante e o meio pequeno-burguês, creio que não nos cabe tomar a iniciativa da revolução socialista. Não dispomos de forças necessárias para o efeito; além disso, faltam as condições objectivas. No Ocidente a questão da revolução socialista põe-se aproximadamente da mesma forma que a do derrube do czarismo, entre nós.".
Apesar de nem todos os adversários de Lenine chegarem às conclusões de Noguine na conferência de Abril, todos, pela lógica das coisas, foram forçados a aceitá-las alguns meses mais tarde, nas vésperas de Outubro: dirigir a revolução proletária ou limitar-se ao papel de oposição no Parlamento burguês, tal era a alternativa em que se via colocado o nosso partido. A segunda posição era menchevique ou, mais exactamente, a posição que estes se viram forçados a abandonar depois da revolução de Fevereiro. Com efeito, os chefes mencheviques afirmaram durante anos que a futura revolução seria burguesa, que o governo de tal revolução só podia realizar as tarefas da burguesia, que a social-democracia não podia assumir as tarefas da democracia burguesa, pelo que devia, "empurrando a burguesia para a esquerda", confinar-se ao papel de oposição. Sobretudo Martinov não se tinha cansado de desenvolver o tema. Muito em breve, a revolução de Fevereiro levou os mencheviques a participar no governo. Da sua posição de princípio só conservaram a tese de que o proletariado não devia conquistar o poder.
Desta feita, os bolcheviques que condenavam o ministerialismo menchevique, insurgindo-se contra a tomada do poder pelo proletariado, estavam a entrincheirar-se nas posições pré-revolucionárias dos mencheviques.
A revolução provocou deslocamentos políticos nos dois sentidos: as direitas tornaram-se cadetes e os cadetes, republicanos (deslocamento para a esquerda); os s. - r. e os mencheviques tornaram-se partidos burgueses dirigentes (deslocamento para a direita). É através de processos deste género que a sociedade burguesa tenta criar uma nova ossatura para o seu poder, estabilidade e ordem.
Mas enquanto os mencheviques abandonam o seu socialismo formal pela democracia vulgar, a direita dos bolcheviques passa ao socialismo formal, quer dizer, à posição ocupada ainda na véspera pelos mencheviques.
A questão da guerra manifestou o mesmo reagrupamento. À excepção de alguns doutrinários, a burguesia (que, aliás, quase que já não esperava a vitória militar) adoptou a fórmula: "Nem anexações, nem contribuição". Os mencheviques e os s. - r. zimmerwaldianos, que tinham criticado os socialistas franceses por defenderem a sua pátria republicana burguesa, logo que se sentiram em república burguesa tornaram-se defensistas: da posição internacionalista passiva passaram ao patriotismo activo. Simultaneamente, a direita bolchevique resvalou no internacionalismo passivo de "pressão" sobre o Governo Provisório, na mira de uma paz democrática "sem anexações, nem contribuição". Deste modo, a fórmula da ditadura democrática do proletariado e do campesinato desmembra-se teórica e politicamente na conferência de Abril, dando origem a dois pontos de vista opostos: o ponto de vista democrático, disfarçado com restrições socialistas formais, e o ponte de vista social-revolucionário ou ponto de vista verdadeiramente bolchevique.
As Jornadas de Julho, a Sublevação de Kornilov, a Conferência Democrática e o Pré-Parlamento
As decisões da conferência de Abril, embora tenham dado ao partido uma base justa, não liquidaram as divergências de cúpula na direcção. Pelo contrário, essas divergências, no decurso dos acontecimentos, viriam a revestir formas ainda mais concretas, atingindo a sua maior acuidade no momento mais grave da revolução, as jornadas de julho.
A tentativa de organizar uma demonstração em 10 de Junho, sugerida por Lenine, foi condenada c. mo uma aventura pelos bolcheviques que tinham. reprovado o carácter da manifestação de Abril. Por ter sido proibida pelo Congresso dos sovietes, não teve lugar a manifestação de 10 de Junho. Porém, a 18 de Junho, o Partido desforrou-se: a demonstração geral de Petrogrado organizada pela iniciativa, bastante prudente aliás, dos conciliadores, efectuou-se quase que inteiramente sob as palavras de ordem bolcheviques. O governo tentou, contudo, levar a melhor: empreendeu uma ofensiva estúpida na frente. O momento era decisivo. Lenine precaveu o Partido contra as imprudências, escrevendo, a 21 de Junho na Pravda: "Camaradas, na hora actual, não seria racional intervir. É preciso que transpunhamos. agora, uma nova etapa na nossa revolução."
Com as jornadas de Julho, assinala-se um importante momento na via da revolução e do desenvolvimento das divergências no interior do Partido. Nestas jornadas a pressão espontânea das massas petersburguesas desempenhou um papel decisivo. Não há dúvida, porém, de que Lenine perguntava então. lá para consigo, se não seria já a altura, se o estado de espírito das massas não ultrapassara a superestrutura sovietista e não nos arriscávamos, hipnotizados pela legalidade sovietista, a ficar em atraso com relação às massas, destacando-nos delas. É muito provável que, durante as jornadas de Julho, certas operações puramente militares tivessem tido lugar por iniciativa de camaradas sinceramente persuadidos de que não estavam em desacordo com Lenine, ria forma de apreciar a situação. Mais tarde, Lenine dizia: "Em Julho, fizemos asneiras que fartam." Na realidade, também dessa vez a questão se reduziu a um reconhecimento, porém de mais vasta envergadura e numa etapa mais avançada do movimento. Tivemos que bater em retirada. Preparando-se para a insurreição e para a tomada do poder, Lenine e o Partido não viram na intervenção de Julho mais do que um episódio em que pagamos a peso de oiro o reconhecimento profundo efectuado entre as forças inimigas, mas que não podia fazer desviar a linha geral da nossa acção. Pelo contrário, os camaradas hostis à política da tomada do poder veriam no episódio de Julho uma aventura prejudicial. Os elementos da direita reforçaram a sua mobilização; a sua crítica tornou-se mais categórica, mudando, por conseguinte, o tom da resposta. Lenine escrevia: "Todas estas lamentações e reflexões tendentes a provar que não era necessário participar, provêm de renegados, se emanam dos bolcheviques. ou são manifestações de horror e confusão, habituais nos pequenos burgueses". A palavra renegado, proferida em tal momento, iluminava com uma trágica claridade as divergências no Partido. Viria a surgir cada vez mais freqüentemente.
A atitude oportunista na questão do poder e da guerra, não-determinava evidentemente uma atitude análoga para com a Internacional. Os direitistas tentaram levar o Partido a participar na conferência dos social-patriotas de Estocolmo. A 16 de Agosto Lenine escrevia: "Os bolcheviques, fiéis ao seu Partido e aos seus princípios, não podem deixar de reprovar o discurso de Kamenev no Conselho Executivo Central, a 6 de Agosto, a respeito da conferência de Estocolmo". Mais adiante, a propósito duma frase na qual se dizia que a bandeira revolucionária começava a flutuar em Estocolmo. Lenine escrevia; "Trata-se de uma declaração oca, no espírito das de Tchernov e Tseretelli; é uma mentira revoltante. A bandeira que começa a flutuar em Estocolmo não é a bandeira revolucionária, mas sim a das transacções, dos acordos, da anistia dos social-imperialistas e das negociações dos banqueiros para a partilha dos territórios anexados."
Em direcção a Estocolmo chegava-se, na realidade, à II Internacional. De igual forma, com a participação no pré-Parlamento, acabava-se na república burguesa. Lenine pronunciou-se pelo boicote da conferência de Estocolmo, tal como defendeu, mais tarde, o do pré-Parlamento. Mesmo no auge da luta, nunca se esqueceu, um instante que fosse, da tarefa de criação duma nova Internacional, duma Internacional Comunista.
Já em 10 de Abril Lenine intervém para pedir a modificação do nome do Partido. As objeções que lhe são feitas, aprecia-as assim: "Esses são os argumentos da rotina, do entorpecimento e da passividade". E insiste: "Já é tempo de despirmos a camisa suja e vestir roupa lavada." Contudo, a resistência nas esferas dirigentes foi tão forte que teve de se esperar um ano até que o Partido se decidisse a mudar de nome, voltando às tradições de Marx e Engels. Este episódio é característico do papel de Lenine durante todo o ano de 1917: na viragem mais brusca da história, não deixa de travar uma luta implacável contra o dia de ontem, pelo dia de amanhã. E a resistência de ontem, que se manifesta sob a bandeira da tradição, atinge por momentos uma extrema acuidade.
A sublevação de Kornilov, que provocou uma viragem sensível a nosso favor, atenuou temporariamente os desacordos, embora não os fizesse desaparecer. A certa altura, no terreno da defesa da revolução e, em parte, da pátria, manifestou-se entre a direita uma tendência para a aproximação do Partido e da maioria sovietista. Lenine reagiu no começo de Setembro, na sua carta ao Comité Central: "Estou profundamente convencido de que admitir o ponto de vista da defesa nacional ou (como certos bolcheviques) chegar a fazer bloco com os s. - r., a ponto de sustentar o Governo Provisôrio, é o mais grosseiro dos erros, pelo qual se dá prova ao mesmo tempo de uma absoluta falta de princípios. Só nos tornaremos defensistas depois da tomada do poder pelo proletariado. . ." E, mais adiante: "Mesmo agora, não devemos sustentar o governo de Kerenski. Seria faltar aos princípios. Mas então, dir-se-á, não tem de se combater Kornilov? Certamente que sim. Mas entre combater Kornilov e sustentar Kerenski há uma diferença, um limite, que certos bolcheviques trans-põem, caindo no "conciliacionismo", deixando-se arrastar na torrente de acontecimentos".Kornilov
A Conferência Democrática (14-22 de Setembro) e o pré-Parlamento a que deu origem, assinalaram uma nova etapa no desenvolvimento das divergências. Mencheviques e s. - r. procuravam ligar-se aos bolcheviques através da legalidade parlamentar burguesa. A direita bolchevique simpatizava com esta táctica. Já vimos como os direitistas concebiam o desenvolvimento da revolução: os sovietes transferiam progressivamente as suas funções para as instituições qualificadas (municipalidades, zemstvos, sindicatos e, finalmente, Assembleia Constituinte), abandonando, por isso mesmo, a cena política. Pela via do pré-Parlamento, o pensamento político das massas deveria encaminhar-se para a Assembleia Constituinte, coroamento da revolução democrática. Ora, os bolcheviques já estavam em maioria nos sovietes de Petrogrado e de Moscovo; a nossa influência no exército crescia de dia para dia. Já não se tratava de prognósticos, nem de perspectivas, mas da escolha da via pela qual seria necessário enveredar.
A conduta dos partidos conciliadores na Conferência Democrática foi de uma baixeza lamentável. No entanto, a nossa proposta de abandono ostensivo da conferência, onde nos arriscávamos a ficar atolados, colidia com uma resistência categórica dos elementos de direita, dispondo ainda de uma grande influência na direcção do nosso Partido. As colisões neste caso serviram de introdução à luta sobre a questão do boicote do pré-Parlamento. A 24 de Setembro, quer dizer, depois da Conferência Democrática, Lenine escrevia: "Os bolcheviques deviam retirar-se em sinal de protesto, a fim de não caírem na armadilha pela qual a Conferência procura desviar a atenção popular das questões sérias."
Apesar do seu campo restrito, os debates na fracção bolchevique à Conferência Democrática, respeitantes à questão do boicote do pré-Parlamento, tiveram uma importância excepcional. Representaram, realmente, a mais vasta tentativa dos direitistas no sentido de instigar o Partido a enveredar pelo "acabamento da revolução democrática". Provavelmente, não se fez o relatório estenográfico destes debates; em todo o caso, que eu saiba, não se encontrou até agora uma única nota do secretário. A redacção desta colectânea descobriu nos meus papéis alguns materiais extremamente restritos sobre o assunto. Kamenev desenvolveu a argumentação eiposta mais tarde, com mais violência e nitidez, na carta de Kamenev e de Zinoviev às organizações do Partido (11 de Outubro). Noguine foi quem mais logicamente pôs a questão. "O boicote do pré-Parlamento", dizia ele, "é, em resumo, um apelo à insurreição, quer dizer, à repetição das jornadas de Julho. Só porque se chama pré-Parlamento, ninguém ousaria boicotar tal instituição."
A concepção essencial dos direitistas era que a revolução conduzia inevitavelmente dos sovietes ao parlamentarismo burguês, representando o pré-Parlamento urna etapa natural nesta via; e que,a partir do momento em que nos dispúnhamos a ocupar os bancos da esquerda no parlamento, não havia motivo para nos recusarmos a participar. Era preciso, segundo se supunha, completar a revolução democrática e "preparar" a revolução socialista. Mas preparar, como? Através da escola do parlamentarismo burguês; com efeito, os países avançados são para os retardatários a imagem do seu desenvolvimento. A queda do czarismo concebia-se revolucionariamente, tal como se produzira na realidade; mas a conquista do poder pelo proletariado concebia-se parlamentar-mente, na base da democracia acabada. Entre a revolução burguesa e a proletária deviam mediar longos anos de regime democrático. A luta pela participação no pré-Parlamento era uma luta pela "europeização" do movimento operário, pela sua canalização, o mais rapidamente possível, no seio da "luta" democrática "pelo poder", quer dizer, no seio da social-democracia. A nossa fracção à Conferência Democrática contava com mais de cem membros, não se distinguindo em nada de um Congresso de Partido, sobretudo nesta época. Uma boa metade desta fracção pronunciou-se pela participação no pré-Parlamentou Por si só,este facto era já de natureza a suscitar sérias inquietações; com efeito, Lenine não deixa de tocar a rebate a partir daí.
Na altura da Conferência Democrática, Lenine escrevia: "Comportar-nos para com a Conferência Democrática como para com o parlamento seria um erro enorme da nossa parte, uma manifestação de cretinismo parlamentar sem paralelo, pois, ainda que se proclamasse parlamento soberano da revolução, a Conferência nada decidiria: a decisão é exterior, pertence aos bairros operários de Petrogrado e Moscovo." Qual era a opinião de Lenine sobre a participação no pré-Parlamento é o que revelam as suas numerosas declarações e, em particular, a carta de 29 de Setembro ao Comité Central, onde fala de "erros revoltantes dos bolcheviques, tais como a vergonhosa decisão de participar no pré-Parlamento". Para ele tal decisão era uma manifestação de ilusões democráticas no decurso da luta e de erros pequeno-burgueses que nunca deixara de combater. Não é verdade que longos anos separem a revolução burguesa da proletária. Não é verdade que a única ou principal escola de preparação para a conquista do poder, seja a do parlamentarismo. Não é verdade que a via em direcção ao poder passe necessariamente pela democracia burguesa. Isso são abstracções inconsistentes e esquemas doutrinários cujo resultado é tão-só acorrentar a vanguarda, fazendo dela, por intermédio do mecanismo estatal "democrático", a oposição, a sombra política da. burguesia; são manifestações de social-democracia. É preciso dirigir a política do proletariado, não de acordo com esquemas escolares, mas pelo fluxo real da luta de classes. O que é preciso, não é entrar para o pré-Parlamento, mas sim organizar a insurreição, arrancando o poder ao adversário. O resto virá por acréscimo. Lenine chegava a propor a convocação de um Congresso do Partido extraordinário, cuja plataforma deveria ser o boicote do pré-Parlamento. A partir daí, todos os artigos e cartas desenvolvem. exclusivamente o pensamento seguinte: o que é preciso, não é passar pelo pré-Parlamento, mas descer à rua, a fim de travar a luta pelo poder.
Em Torno da Revolução de Outubro
Não houve necessidade de reunir um Congresso extraordinário. A pressão de Lenine garantiu o necessário deslocamento de forças para a esquerda no Comité Central ,assim como na fracção do pré-Parlamento, abandonado a 10 de Outubro pelos bolcheviques. Em Petrogrado processa-se o conflito do soviete com o governo, à volta da questão do envio para a frente das unidades da guarnição simpatizantes com o bolchevismo. A 16 de Outubro, é criado o Comité militar revolucionário, órgão sovietista legal da insurreição. A direita do Partido esforça-se por travar a marcha dos acontecimentos. Entra numa fase decisiva a luta das tendências, no interior do Partido, e a das classes, pelo país. Na carta Sobre o momento presente, subscrita por Kamenev e Zinoviev, a posição da direita demarca-se o mais completamente possível, revelando as suas motivações. Escrita a 11 de Outubro (quer dizer, duas semanas antes do golpe de força) e enviada às principais organizações do Partido, esta carta insurge-se categoricamente contra a decisão do Comité Central a respeito da insurreição armada. Precavendo o Partido contra uma subestimação das forças do inimigo - na realidade, eles é que subestimavam monstruosamente as forças da revolução, chegando até a negar a existência de estado de espírito combativo nas massas (isto duas semanas antes de 25 de Outubro!) - os seus autores declaram: "Estamos profundamente convencidos de que proclamar nesta altura a insurreição armada, é pôr em jogo, não só a sorte do nosso Partido, mas também a da revolução russa e internacional". Mas então, se a insurreição e a tomada de poder estão fora de propósito, o que é que se há-de fazer? A carta responde com bastante clareza a esta questão. "Por intermédio do exército e dos operários, empunhamos um revólver assestado às fontes da burguesia", que, sob esta ameaça, não poderá impedir a convocação da Assembleia Constituinte. "Nas eleições para a. Assembleia Constituinte o nosso Partido tem todas as oportunidades... A influência do bolchevismo aumenta... Com uma táctica justa, podemos obter pelo menos um terço dos mandatos para a Assembleia Constituinte." Assim, de acordo com a carta, o Partido devia desempenhar o papel de oposição "influente" na Assembleia Constituinte burguesa. De qualquer modo, esta concepção social-democrática disfarça-se com as seguintes considerações: "Os sovietes, que se tornaram um elemento constitutivo da nossa vida, não poderão ser abolidos... No seu trabalho revolucionário a Assembleia Constituinte só se poderá apoiar nos sovietes. Eis o tipo combinado de instituições estatais para que convergimos: a Assembléia Constituinte e os Sovietes". Facto curioso, muito característico da linha geral dos direitistas: a teoria do poder estatal "combinado" que alia a Assembléia Constituinte aos sovietes, foi retomada na Alemanha, um ano e meio ou dois anos mais tarde, por Rudolph Hilferding que, também ele, lutava contra a tomada do poder pelo proletariado. O oportunista austro-alemão estava longe de desconfiar, na altura, que cometia um plágio.
A carta Sobre o momento presente contesta que tenhamos já a nosso favor a maioria do povo da Rússia. Só tem em conta a maioria puramente parlamentar. "Na Rússia - declara-se nela - conquistámos a maioria dos operários e uma parte importante dos soldados. Mas o restante é duvidoso. Por exemplo: estamos convencidos de que se as eleições para a Assembleia Constituinte tiverem lugar, os camponeses votarão na sua maioria pelos s. - r. Pode-se considerar o fenómeno fortuito?" Esta maneira de abordar a questão comporta um erro radical: não se compreende que, apesar de não ter uma posição política independente (tem de votar pela burguesia, dando os seus votos aos s. - r., ou então ligar-se activamente ao proletariado), o campesinato possa ter poderosos interesses revolucionários e um intenso desejo de os satisfazer. Ora, da nossa política dependia a realização de uma ou de outra dessas duas eventualidades. Se entrássemos para o pré-Parlamento, assumindo o papel de oposição na Assembleia Constituinte, punha mos, por isso mesmo, quase que automaticamente, o campesinato numa situação em que devia procúrar a satisfação dos seus interesses por meio da Assembleia Constituinte, logo, através da sua maioria e não da oposição. Muito pelo contrário, a tomada do poder pelo proletariado criava imediatamente um quadro revolucionário para a luta dos camponeses contra os grandes proprietários de terras e funcionários. Para empregar as nossas expressões correntes, diria que nesta carta há .simultaneamente uma subestimação e uma sobrestimação do campesinato; uma subestimação das suas possibilidades revolucionárias (sob a direcção do proletariado) e uma sobrestimação da sua importância política. Por sua vez, este duplo erro resulta duma subestimação da força do proletariado e do seu Partido, quer dizer, de uma concepção social-democrática do proletariado. Não há nada de surpreendente nisso. Em última análise, todas as matizes do oportunismo radicam numa avaliação irracional das forças revolucionárias e das possibilidades do proletariado.
Ao combater a ideia da tomada do poder, os autores da carta procuram assustar com as perspectivas da guerra revolucionária. "A massa dos soldados apoia-nos, não na palavra de ordem da guerra, mas na da paz... Depois de termos, sozinhos, conquistado o poder e dada a situação mundial, se se vier a sentir a necessidade de travar uma guerra revolucionária, a massa dos soldados abandonar-nos-á. A elite dos jovens soldados permanecerá certamente ao nosso lado, mas a massa abandonar-nos-á." Esta argumentação é extremamente elucidativa. Nela se encontram as razões fundamentais que mais tarde justificaram a conclusão da paz de Brest-Litovsk, sem que por isso, no caso em questão, deixassem de ser carreadas contra a tomada do poder. Claro que a posição adoptada nesta carta facultava extraordinariamente aos seus autores e partidários a aceitação da paz de Brest. Resta-nos só repetir aqui o que já dissemos mais atrás: o que caracteriza o génio político de Lenine não é a capitulação de Brest considerada abstractamente, mas a aliança de Outubro com Brest. Isso sim, é que se não deve esquecer.
A classe operária luta e cresce na consciência de que o seu adversário é mais forte. Observa-se constantemente isto na vida corrente. O adversário érico, podeioso, dispondo de todos os meios de pressão ideológica e de todos os instrumentos de repressão. Habituar-se a pensar que o inimigo é superior em força, é parte integrante da vida e do trabalho dum partido revolucionário, no periodo da preparaçao. Aliás, as consequências de actos imprudentes ou prematuros em que venha a incorrer o Partido, advertem-no brutalmente, de cada vez, da força do inimigo. Mas este hábito de considerar o adversário mais poderoso, torna-se, a certa altura, o principal obstáculo para a vitória. A fraqueza actual da burguesia dissimula-se, de qualquer forma, à sombra da sua força passada. "Vocês subestimam a força do inimigo!" Este é o ponto de união de todos os elementos hostis à insurreição armada. "Aqueles que não quiserem dissertar, pura e simplesmente, sobre a insurreição - escreviam os direitistas duas semanas antes da vitória - devem ponderar friamente todas as hipóteses. Consideramos como um dever, declarar que seria extremamente prejudicial, sobretudo no presente momento, subestimar as forças do adversário, sobrestimando as nossas. Petrogrado será decisivo para o desfecho da luta; ora, os inimigos do partido proletário acumularam forças consideráveis em Petrogrado: cinco mil junkers muito bem armados, perfeitamente organizados e com ardentes desejos (e sabendo) de se baterem; o estado-maior, os destacamentos de choque, os cossacos, uma fracção considerável da guarnição e uma parte enorme da artilharia, disposta em leque à volta da cidade. Além disso, com a ajuda do Comité Executivo Central, os nossos adversários tentarão quase de certeza trazer tropas da frente." (No momento presente).
É evidente que na guerra civil já que não se trata simplesmente de contar os batalhões mas de avaliar o seu grau de consciência, nunca é possível alcançar uma exactidão perfeita. Até mesmo Lenine julgava que o inimigo dispunha de importantes forças em Petrogrado, pelo que propunha lançar-se a insurreição a partir de Moscovo, onde, no seu parecer, se realizaria sem efusão de sangue. No domínio da previsão, erros parciais deste gênero são inevitáveis, até nas condições mais favoráveis, sendo sempre mais racional encarar a hipótese menos propicia. Contudo, o que nos interessa no caso em questão? É a formidável sobrestimação das forças do inimigo e a completa deformação de todas as proporções, quando, na realidade, o inimigo não dispunha de força armada nenhuma.
Tal como ficou demonstrado pela experiência da Alemanha, esta questão assume uma enorme importância. Enquanto a palavra de ordem de insurreição servia principal, senão exclusivamente, de meio de agitação, os dirigentes do Partido comunista alemão não se preocupavam com as forças armadas do inimigo (Reichswehr, destacamentos fascistas, policia). Parecia-lhes que o fluxo revolucionário, crescendo incessantemente, resolveria, por si só, a questão militar. Mas quando se viram perante o problema, esses mesmos camaradas que, por qualquer forma, haviam considerado a força armada do inimigo como inexistente, caíram no outro extremo: puseram-se a aceitar confiadamente todos os números que lhes eram fornecidos sobre as forças armadas da burguesia, adicionaram-nos cuidadosamente às forças do Reichswehr e da policia, para depois arredondarem a soma (até ao meio milhão e tal) e terem assim à sua frente uma massa compacta, armada até aos dentes, suficiente para paralizar os seus esforços. Apesar de as forças da contra-revolução alemã, além de incontestavelmente mais consideráveis, estarem sem dúvida mais bem organizadas e preparadas, o que é certo é que também as forças activas da revolução alemã não se comparavam com as nossas. O proletariado representava a maioria esmagadora da população da Alemanha. Entre nós, pelo menos na primeira fase, a questão decidia-se em Petrogrado e Moscovo. Na Alemanha, a insurreição disporia logo de uma dezena de potentes núcleos proletários. Se os dirigentes do P.C.A. tivessem tomado isso em consideração, as forças armadas do inimigo parecer-lhes-iam menos imponentes do que nos seus cálculos estatísticos colossalmente exagerados. Em todo o caso, é preciso rejeitar categoricamente os cálculos tendenciosos que se fizeram e continuam a fazer, depois da derrota de Outubro na Alemanha, a fim de justificar a política que a provocou. No caso em questão o nosso exemplo russo tem uma importância excepcional: duas semanas antes da nossa vitória sem efusão de sangue em Petrogrado - vitória que já podíamos ter alcançado há duas semanas - políticos experientes do Partido viam uma multidão de inimigos erguer-se contra nós: os junkers, desejosos de se bater e sabendo fazê-lo, as tropas de choque, os cossacos, uma parte considerável da guarnição, a artilharia disposta em leque à volta de Petrogrado e as tropas vindas da frente. Ora, na realidade, não se passava absolutamente nada disso. Admitamos agora, por momentos, que os adversários da insurreição tivessem levado a melhor no Partido e no Comitê Central. Nesse caso, não fosse o apelo contra o Comitê Central, que Lenine se dispunha a lançar ao Partido e que seria certamente eficaz, a revolução ficaria votada à ruína. Mas nem todos os partidos poderão dispor de um Lenine, quando defrontarem situação idêntica. Não é difícil de imaginar como a história seria escrita se tivesse triunfado no Comitê Central a tendência para evitar a batalha. Os historiadores oficiais exporiam a situação, sem dúvida alguma, de modo a mostrar que a insurreição, em Outubro de 1917, teria sido uma verdadeira loucura; muniriam o leitor com estatísticas fantásticas acerca do número de junkers, cosacos, destacamentos de choque, artilharia "disposta em leque" e corpos do exército vindos da frente. Na ausência de uma insurreição que as pusesse à prova, semelhantes forças podiam parecer muito mais ameaçadoras do que na realidade eram. Esta é a lição que se deve incrustar profundamente na consciência de cada revolucionário.
A pressão instante, contínua, incansável, exercida por Lenine no Comitê Central durante os meses de Setembro e Outubro, justificava-se pelo receio de que deixássemos escapar o momento. Que bagatela! respondiam os direitistas, a nossa influência nada mais fará do que aumentar. Quem tinha razão? E que significava deixar escapar o momento? Com isto abordamos a questão na qual a apreciação bolchevique activa, a avaliação estratégica das vias e métodos da revolução, mais nitidamente contrasta com a social-democrática, menchevique, impregnada de fatalismo. O que significava deixar escapar o momento? Evidentemente que a situação mais favorável para a insurreição é aquela em que a correlação das forças pende mais para o nosso lado. Escusado será dizer que se trata neste caso da correlação das forças no domínio da consciência, quer dizer, da superestrutura política e não da base, que se pode considerar mais ou menos constante durante toda a época revolucionária. Na mesma base econômica e com idêntica diferenciação de classe da sociedade, a correlação das forças varia em função do estado de espírito das massas proletárias, do naufrágio das suas ilusões, da acumulação da sua experiência política, do abalo de confiança no poder estatal das classes e grupos intermediários e, finalmente, do enfraquecimento da confiança deste em si próprio. Em épocas revolucionárias estes processos decorrem rapidamente. Toda a arte táctica consiste em saber aproveitar o momento em que combinação das condições é mais favorável. A sublevação de Kornilov preparara definitivamente estas condições. As massas, que tinham perdido a confiança nos partidos da maioria sovietista, viram o perigo de contra-revolução com os próprios olhos. Consideraram que cabia agora aos bolcheviques encontrar uma saída para a situação. Nem a desagregação do poder estatal, nem tão pouco o afluxo espontâneo da confiança impaciente e exigente das massas nos bolcheviques, podiam ser de longa duração; de uma maneira ou de outra, a crise tinha que desembocar numa solução. Agora ou nunca! repetia Lenine.
Ao que os direitistas replicavam: "É um profundo erro histórico abordar desta forma (ou agora ou nunca) a questão da passagem do poder para as mãos do partido proletário. Não, o partido do proletariado crescerá e o seu programa tornar-se-á cada vez mais claro para massas cada vez mais numerosas... Nas actuais circunstâncias, tomar a iniciativa da insurreição só serviria para interromper a marcha das suas vitórias... Saibamos prevenir-nos contra esta política funesta." (No momento presente).
Este optimismo fatalista exige um estudo atento. Não tem nada de nacional nem, com mais forte razão, de individual. A mesma tendência, observamo-las o ano passado na Alemanha, para não irmos mais longe. No fundo, sob este fatalismo expectante oculta-se a irresolução e até a incapacidade de acção, disfarçadas porém com um prognóstico consolador: pretende-se que nos tornaremos cada vez mais influentes, a nossa força nada mais fazendo do que aumentar com o decorrer do tempo. Que erro grosseiro! A força dum partido proletário só aumenta ate determinado momento, a partir do qual pode declinar: face à passividade do partido, as esperanças das massas dão lugar à desilusão, enquanto o inimigo se refaz do pânico, tirando partido dela. Assistimos a uma viragem deste género na Alemanha em Outubro de 1923. Também não estivemos muito longe disso no Outono de 1917, na Rússia. Para que se consumasse, bastaria talvez deixar passar mais algumas semanas. Lenine tinha razão: Agora ou nunca!
"Mas a questão decisiva - dizem os adversários da insurreição, esgrimindo assim o seu último e mais forte argumento - é a seguinte: será o estado de espírito dos operários e soldados da capital verdadeiramente de molde a já não verem salvação, a não ser na batalha de rua, ansiada custe o que custar? Não. Tal estado de espírito não existe... A existência dum estado de espírito combativo nas massas da população pobre da capital, incitando-as a descer à rua, seria uma garantia de que, se tomassem a iniciativa da intervenção, arrastariam na sua esteira as mais consideráveis e importantes organizações (sindicato dos empregados dos caminhos de ferro, dos correios e telégrafos, etc.), entre as quais a influência do nosso Partido é fraca. Mas como tal estado de espírito nem sequer existe nas usinas e casernas, arquitectar planos nessa base seria uma ilusão." (No momento presente).
Estas linhas, escritas a 11 de Outubro, adquiriram importância pela sua actualidade excepcional, se nos lembrarmos de que também os camaradas alemães, dirigentes do Partido, para explicarem a retirada sem luta do ano passado, alegaram que as massas não se queriam bater. Todavia, é preciso compreender que, regra geral, é quando as massas - já na posse de uma experiência suficiente para se não lançarem à batalha despropositadamente - esperam e exigem uma direcção combativa, resoluta e inteligente, que melhor se garante a vitória insurreccional. Em Outubro de 1917, as massas operárias (pelo menos a sua elite), educadas pela intervenção de Abril, pelas jornadas de Julho e pela sublevação de Kornilov, compreendiam perfeitamente que já não se tratava de protestos expor números parciais, nem de reconhecimentos, mas da insurreição decisiva para a tomada do poder. Por conseguinte, o seu estado de espírito tornara-se mais concentrado, mais crítico e racional. A passagem da espontaneidade confiante, cheia de ilusões, a uma consciência mais critica, provoca inevitavelmente uma crise revolucionária. Esta crise progressiva no estado de espírito das massas só pode ser superada através de uma política de Partido adequada, quer dizer, acima de tudo através do desejo e verdadeira capacidade para dirigir a insurreição do proletariado. Pelo contrário, um partido que por muito tempo se consagrou a uma agitação revolucionária, arrancando pouco a pouco o proletariado à influência dos conciliadores, mas que, uma vez guindado à direcção dos acontecimentos pela confiança das massas, começa a hesitar, á procura de complicações onde não as há, tergiversando e cambaleando, tal partido, dizíamos, apesar de paralisar a actividade das massas e provocar nelas a decepção e a desorganização, condenando à morte a revolução, garante, em contrapartida, a possibilidade de alegar, depois da derrota, a falta de actividade das massas. A carta Sobre o momento presente concitava a organização nesse sentido. Felizmente, sob a direcção de Lenine, o Partido eliminou resolutamente esse estado de espírito nas esferas dirigentes e, só graças a isso, realizou vitoriosamente o golpe de Estado.
Agora que caracterizamos a essência das questões políticas referentes á preparação da revolução de Outubro, na tentativa de esclarecer o sentido profundo das divergências no nosso Partido, resta-nos examinar brevemente os momentos mais importantes da luta desencadeada no seu interior, no decurso das últimas semanas, as decisivas.
Em 10 de Outubro o C. C. adoptou a decisão de empreender a insurreição armada. Em 11, a carta Sobre o momento presente foi enviada às principais organizações do Partido. Em 18, quer dizer, uma semana antes da revolução, Kamenev publicou uma carta no Novaia Jizn. "Não só Zinoviev e eu" - declara -, "mas também uma série de camaradas, reputamos de inadmissível; de acto funesto para o proletariado e a revolução, tomar a iniciativa da insurreição armada nesta altura, com a actual correlação de forças, independentemente do Congresso dos sovietes e a alguns dias da sua convocação." (No vaia Jizn, 18 de Outubro de 1917). Tomado o poder em 25 de Outubro, constituía-se o governo sovietista em São Petersburgo. Em 4 de Novembro, vários militantes eminentes apresentaram a sua demissão do C. C. e do Conselho dos Comissários do povo, exigindo a criação dum governo de coligação recrutado entre os partidos dos sovietes. "Caso contrário" - escreviam -"ficamos sujeitos a ter que nos resignar com um governo puramente bolchevique, mantendo-se através do exercício do terror político." Pela mesma altura, noutro documento: "Não nos podemos responsabilizar pela funesta política praticada pelo C. C., contrária à vontade de uma grande parte do proletariado e dos soldados, que deseja o fim da efusão de sangue entre as diferentes partes da democracia, o mais rapidamente possível. Por isso nos demitimos de membros do C. C., pelo que passamos a gozar do direito de dar a nossa opinião sincera à massa dos operários e soldados, exortando-a a apoiar a divisa: "Viva um governo dos partidos sovietistas! Imediato acordo nesta base!" (O Golpe de força de Outubro, Arquivos da Revolução de 1917).
Desta feita, aqueles que se opuseram á insurreição armada e à tomada do poder, considerando-as como uma aventura, intervieram, depois da vitória insurreccional, para que se restituísse o poder aos partidos a quem o proletariado o arrancara. Por que razão devia o partido bolchevique vitorioso restituir o poder - tratava-se evidentemente duma restituição - aos mencheviques e s. -r.? Os membros da oposição respondiam:
"Consideramos necessária a criação de um tal governo, de modo a precaver qualquer derramamento de sangue, ameaça de fome, esmagamento da revolução pelos partidários de Kaledine e como garantia de convocação da Assembléia Constituinte na data fixada e realização efectiva do programa de paz adoptado pelo Congresso pan-russo dos sovietes dos deputados operários e soldados."
Ou melhor, tratava-se de abrir caminho em direcção ao parlamentarismo burguês através da porta soviética. Se a revolução se recusasse a passar pelo pré-Parlamento, escavando no terreno de Outubro o seu leito, a tarefa que se impunha no parecer da oposição consistia em salvar a revolução da ditadura, canalizando-a para o regime burguês com a ajuda dos mencheviques e s. - r. Tratava-se, nem mais nem menos, que da liquidação de Outubro. Evidentemente que em tais condições não se podia admitir nenhum acordo.
No dia seguinte, 5 de Novembro, apareceu mais uma carta reflectindo a mesma tendência:
"Quando há marxistas que, contrariamente ao bom senso e a despeito da situação, se recusam a considerar as condições efectivas que nos ditam imperiosamente o acordo com todos os partidos socialistas, não posso ficar calado, mesmo em nome da disciplina do Partido... Não posso, em nome dessa disciplina, entregar-me ao culto da personalidade e fazer depender um acordo político com todos os partidos socialistas (que consolida as nossas reivindicações fundamentais) da participação anterior de determinada pessoa no ministério, prolongando assim, por instantes que seja, a efusão de sangue." (Gazeta Operária, 5 de Novembro de 1917).
Lozovsky, o autor desta carta, proclama, em conclusão, a necessidade de lutar pelo Congresso do Partido, a fim de se decidir "se o P. S. - D. O. R. dos bolcheviques continuará a ser o partido marxista da classe operária ou se deverá definitivamente adoptar uma orientação que nada tem a ver com o marxismo revolucionário".
Com efeito, a situação parecia desesperada. Não só a burguesia e os proprietários de terras, nem tão pouco a "democracia revolucionária" - na posse da qual se encontravam ainda numerosas organizações (Comité pan-russo dos empregados dos caminhos de ferro, funcionários, etc.) -condenavam publicamente o Partido pela tentativa de permanecer no poder a fim de realizar o seu programa. Também os militantes mais influentes do nosso Partido, os membros do C. C. e do Conselho dos Comissários do Povo, o condenavam. Examinada superficialmente, a situação podia parecer desesperante. Aceitar as reivindicações da oposição era o mesmo que liquidar Outubro. Nesse caso não valia a pena ter feito a revolução. Só havia uma coisa a fazer: avançar, confiando na vontade revolucionária das massas. Em 7 de Outubro, o Pravda publicou uma declaração categórica do C. C., escrita por Lenine, irradiando entusiasmo revolucionário e com fórmulas claras, simples e indiscutíveis, destinadas á massa do Partido. Este apelo dissipou definitivamente todas as dúvidas sobre a política ulterior do Partido e do seu Comité Central.
"Que vergonha para todos esses homens de pouca fé, para todos os que hesitam, que duvidam, que se deixaram assustar pela burguesia ou pelos clamores dos seus auxiliares directos ou indirectos! Nas massas dos operários e soldados petersburgueses, moscovitas e outros, não há sombra de hesitação. Como um só homem, o nosso Partido monta guarda à volta do poder sovietista, velando pelos interesses de todos os trabalhadores e, prioritariamente, pelos dos operários e camponeses pobres." (Pravda, 20 de Novembro de 1917).
Superara-se a crise mais aguda no Partido. No entanto, a luta interior, que prosseguia na mesma linha, não se dava ainda por terminada. Mas cada vez mais diminuía a sua importância política. Num relatório apresentado por Uritsky à sessão do Comité de Petrogrado do nosso Partido, a 12 de Novembro, respeitante à convocação da Assembleia Constituinte, encontra-se um testemunho extremamente interessante:
"As divergências no nosso Partido não são de agora. Anteriormente, aquando da questão da insurreição, já o processo era o mesmo. Hoje em dia, certos camaradas consideram a Assembleia Constituinte como o coroamento da revolução. Raciocinam como pequenos burgueses, pedem que não tenhamos falta de tacto, etc., não querem que os bolcheviques, como membros da Assembleia Constituinte, controlem a sua convocação, a relação de forças, etc. Encaram as coisas dum ponto de vista formal, não compreendendo que os dados desse controle nos permitem ver o que se passa em redor da Assembleia Constituinte e, por conseguinte, determinar a nossa atitude para com ela... Estamos a lutar pelos interesses do proletariado e dos camponeses pobres; ora, alguns camaradas consideram que a revolução é burguesa, devendo terminar pela Assembleia Constituinte".
A dissolução da Assembleia Constituinte assinalou o fim de uma importante etapa na história da Rússia e do nosso Partido. Depois de superadas as resistências internas, o Partido do proletariado não só conquistara o poder, como também o conservara.

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