Segunda Parte
Capítulo IV - A Dissolução da Constituinte
Nos primeiros dias, se não nas primeiras horas que se seguiram ao golpe de Estado, Lenine levantou a questão da Assembleia Constituinte.
- É preciso adiá-la, declarou, é necessário prorrogar as eleições. É preciso alargar o direito eleitoral dando aos jovens de dezoito anos a faculdade de votar. É necessário criar a possibilidade de rever as listas de candidatos. As nossas próprias listas não valem nada: encontramos nelas uma quantidade de intelectuais de ocasião e precisamos de operários e de camponeses. Os homens de Kornilov, os Cadetes, devem ser postos fora de lei.
Replicavam-lhe: — Não é cómodo adiá-la agora. Será tomado como uma suspensão da Assembleia Constituinte, porquanto nós próprios acusámos o Governo provisório de tergiversar com a Assembleia.
- Parvoíces! replicava Lenine. O que importa são os actos e não as palavras.. Para o Governo Provisório a Assembleia Constituinte marcava, ou podia marcar, um passo em frente; para o poder soviético, sobretudo com as listas actuais, seria inevitavelmente um passo à retaguarda. Porque razão achais cómodo adiar? E se a Assembleia Constituinte se compuser de Cadetes, de mencheviques e de socialistas-revolucionários, achas que será cómodo?
- Mas nessa altura seremos nós os mais fortes, respondiam-lhe; de momento estamos ainda demasiado fracos. Na província não se sabe quase nada acerca do poder soviético. E se agora se receber a notícia de termos adiado a Assembleia Constituinte, esse facto enfraquecer-nos-á ainda mais.
Sverdlov pronunciava-se contra o adiamento com particular energia, pois encontrava-se mais ligado à província do que nós.
Lenine via-se sozinho com o seu ponto de vista. Abanava a cabeça com um ar descontente, repetindo:
- É um erro, trata-se evidentemente de um erro que pode custar-nos caro! Oxalá não faça perder a revolução...
No entanto, quando se decidiu pelo não adiamento, Lenine
concentrou toda a sua atenção nas medidas de organização
necessárias aos preparativos para a Assembleia.
Neste intervalo de tempo tornou-se claro que estaríamos em minoria, mesmo com o apoio dos socialistas-revolucionários de esquerda inscritos juntamente com os da direita em listas comuns e que foram completamente "levados".
- Não há dúvida de que é preciso dissolver a Assembleia Constituinte, dizia Lenine, mas o que se há-de fazer com os socialistas-revolucionários de esquerda?
Fomos porém consolados pelo velho Natanson. Reuniu-se connosco "em conselho" e as suas primeiras palavras foram para nos dizer:
- Creio que, apesar de tudo, será necessário dissolver à força a Assembleia Constituinte.
- Bravo! exclamou Lenine; eis uma coisa acertada! Mas será que os vossos estão de acordo connosco sobre este assunto?
- Alguns dos nossos hesitam ainda, mas penso que ao fim e ao cabo terminarão por aceitar, respondeu Natanson.
Os socialistas-revolucionários de esquerda estavam então em plena lua-de-mel com o seu radicalismo extremo: com efeito, aceitaram.
Natanson fez uma proposta: - E se agíssemos da seguinte maneira, disse ele: unindo as nossas e as vossas facções na Assembleia Constituinte com o Comité Executivo Central e assim formássemos uma Convenção?
- Porquê? replicou Lenine com visível despeito. Para imitar a Revolução Francesa? Dispersando a Constituinte consolidamos o sistema soviético. Com o vosso plano tudo se complicaria: não teríamos nem uma coisa, nem outra.
Natanson esforçou-se por demonstrar que, adoptando o seu plano, poderíamos apropriar-nos duma parte da autoridade da Constituinte, mas acabou por se render.
Lenine dedicou-se então à resolução total da questão da Constituinte.
- O erro é evidente, dizia ele: já conquistámos o poder e, contudo, colocámo-nos numa situação tal que nos vemos agora forçados a tomar medidas bélicas para o reconquistarmos.
Encaminhou os preparativos com um cuidado escrupuloso, examinando todos os pormenores e, para tal, submetendo Uriski, que com grande mágoa de Lenine tinha sido nomeado comissário da Assembleia Constituinte, a um interrogatório apaixonado. Lenine prescrevia, entre outras coisas, levar para Petrogrado um regimento letão, composto sobretudo por operários.
- O mujique poderia ceder, disse; precisamos aqui da determinação proletária. Os deputados bolcheviques da Assembleia Constituinte, chegados de todos os pontos da Rússia, foram distribuídos, sob a pressão de Lenine e a direcção de Sverdlov, pelas fábricas, oficinas e pelas diversas formações do exército. Constituíam um elemento importante no aparelho de organização da "revolução complementar" de 5 de Janeiro. No que se refere aos deputados socialistas-revolucionários, julgavam ser incompatível com .a dignidade de eleitos do povo a sua participação na luta: "O povo escolheu-nos, compete-lhe defender-nos". Na realidade, estes pequenos burgueses da província não tinham qualquer noção sobre a forma como se haviam de conduzir; a grande maioria tinha, pura e simplesmente, medo. Preparavam, no entanto, cuidadosamente o cerimonia da primeira sessão. Trouxeram velas, para o caso dos bolcheviques cortarem a electricidade, e uma grande quantidade de torradas, para o caso de os fazerem jejuar. Foi assim que a democracia marchou para o combate contra a ditadura, fortemente armada com torradas e velas. O povo não teve sequer a ideia de apoiar esses homens que se consideravam por ele eleitos e que, na realidade, não eram senão as sombras de um período revolucionário já ultrapassado.
Durante a dissolução da Assembleia Constituinte, eu encontrava-me em Brest-Litovsk. Mas, em breve, quando voltei a Petrogrado para consultas, Lenine disse-me a propósito da dissolução da Assembleia:
- Não há dúvida de que foi muito arriscado da nossa parte não adiar a convocação, foi muito, muito imprudente. Mas, apesar de tudo, foi melhor assim. A dissolução da Assembleia Constituinte pelo poder soviético constituiu uma liquidação completa e aberta da forma democrática em nome da ditadura revolucionária. A partir de agora, a lição ficará aprendida.
Foi assim que a generalização teórica surgiu com a utilização de um regimento de caçadores letões.
Certamente, nesta altura se formaram ,em definitivo na consciência de Lenine as ideias que formulou mais tarde nas suas notáveis teses sobre a democracia, durante o I Congresso da Internacional Comunista.
Sabemos que a crítica da democracia formal tem uma longa história. O carácter intermediário da revolução de 1848 foi explicado, por nós e pelos nossos predecessores, como um naufrágio da democracia política. Esta democracia foi substituída pela democracia "social". Porém, a sociedade burguesa soube constrangê-la a ocupar a posição que a democracia pura já não tinha força para manter. A história política passa por um período dilatório durante o qual a democracia social, alimentando-se com a crítica da democracia pura, desempenhou, de facto, as obrigações desta, ficando completamente impregnada dos seus vícios. Produziu-se então o que sucedera frequentemente na história: a oposição foi chamada para resolver, num sentido conservador, os problemas que ultrapassavam já as forças comprometidas da véspera. Depois de se ter tornado a condição temporária duma preparação da ditadura proletária, a democracia passou a ser o critério supremo, a última instância de controlo, o inviolável sacrossanto, isto é, a hipocrisia superior da sociedade burguesa. Também assim sucedera entre nós. Ferida mortalmente nos seus interesses materiais, em Outubro, a burguesia tentou ressuscitar uma vez mais em Janeiro, sob a aparência do fantasma sagrado da Assembleia Constituinte. Seguidamente, a progressão vitoriosa da revolução proletária, que tinha dissolvido de um modo franco e brutal a Assembleia Constituinte, desfechou sobre a democracia formal o golpe benfazejo de que ela não mais viria a recompor-se. Eis o motivo porque Lenine tinha razão quando dizia:
- Afinal, as coisas compuseram-se melhor assim!
Nesta Assembleia Constituinte de socialistas-revolucionários, a República de Fevereiro encontrou ocasião de morrer pela segunda vez.
Baseado nas impressões gerais que me restam da Rússia oficial de Fevereiro, do Soviete de Petrogrado, composto então por mencheviques e socialistas-revolucionários, desenha-se actualmente, com nitidez no meu espirito, como se datasse de ontem, a fisionomia de um delegado socialista-revolucionário. Quem era, donde vinha, não o sabia e ainda não o sei. Da província, sem dúvida. Tinha o ar de um jovem mestre-escola, de origem eclesiástica: devia ter sido um bom seminarista. De nariz chato, quase imberbe, rosto simplório, maçãs do rosto salientes, usando óculos. Foi na sessão onde os ministros socialistas se apresentaram pela primeira vez no Soviete. Tchernov explicava em termos prolixos ,difusos, lamechas, sedutores e nauseabundos, porque razão ele e os outros tinham entrado para este governo e quais seriam as felizes consequências de tal decisão. Lembro-me de uma frase enfastiante repetida dezenas de vezes pelo orador:
- Vocês empurraram-nos para o governo, compete-vos colocarem-nos em evidência.
O seminarista contemplava o orador patenteando nos olhos uma adoração concentrada. É assim que deve sentir e olhar o peregrino fiel que tem a felicidade de visitar um santuário famoso e a honra de ouvir o sermão de um santo staretz.(1)
O discurso prosseguia interminavelmente; por vezes levantava-se um ligeiro murmúrio entre a audiência fatigada. Porém, no meu seminarista, a fonte da veneração e do entusiasmo parecia inesgotável.
- Eis a fisionomia que deve ter a nossa revolução, ou melhor, a deles!, dizia para mim próprio durante essa sessão do Soviete de 1917, a primeira a que assistia.
No final do discurso de Tchernov houve uma tempestade de aplausos. Num canto, apenas um pequeno número de bolcheviques manifestava entre si a expressão do seu descontentamento. Este grupo destacou-se do conjunto quando, em uníssono, apoiou a crítica que fiz ao ministerialismo de defesa nacional dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. O seminarista, piedoso estava assustado, alarmado ao mais alto grau. Não se indignava: nessa altura, não ousava ainda sentir indignação contra um emigrado que acabava de regressar ao país. Não podia, contudo, compreender como era possível haver quem se insurgisse contra um acontecimento tão feliz e tão maravilhoso sob todos os pontos de vista, como era o da entrada de Tchernov para o Governo Provisório. Estava sentado a alguns passos mim e no seu rosto, que eu ia consultando como um barómetro, o medo e o espanto lutavam com o respeito que ainda sentia. Esse rosto ficou-me para sempre gravado na memória como própria imagem da Revolução de Fevereiro, no que ela teve melhor, de simplista, de ingénuo, de medíocre, no seu elemento pequeno-burguês e seminarista; pois esta revolução apresentava um outro aspecto muito mais feio, o de Dan e de Tchernov.
Não foi em vão, nem por acaso, que Tchernov se viu presidente da Assembleia Constituinte. Tinha sido elevado a esse posto pela Rússia de Fevereiro, preguiçosamente revolucionária que ainda se parecia com Oblomov (2) e que era, por um lado, oh! tão cândida! e, por outro, ah! tão velhaca... O mujique, meio desperto, exaltava e impelia os Tchernov por intermédio dos seminaristas devotos. E Tchernov aceitava esse mandato não sem um certo encanto "russo" e uma certa desonestidade igualmente "russa". Pois Tchernov - e é aí que quero chegar constituiu também, no seu género, um tipo nacional. Digo "também" porque tive a oportunidade, há quatro anos, de falar do carácter "nacional" de Lenine. A justaposição ou, pelo menos a aproximação indirecta destas duas figuras poderá parecer inconveniente. E ela seria, com efeito, grosseira, indecente, se tratasse de personalidades. Falo porém aqui dos "elementos" nacionais tal como foram incarnados e reflectidos!
Tchernové o epígono da velha tradição dos intelectuais revolucionários; Lenine é a perfeição, o resultado completo e
definitivo.
Na velha sociedade intelectual encontrava-se o nobre "arrependido" que perorava profusamente acerca do dever de servir o povo; o seminarista reverente que, de casa da sua tia beata entreabria sobre o mundo a janela do pensamento crítico; o mujique instruído cuja escolha hesitava entre a socialização da terra e o emparcelamento segundo as fórmulas de Stolipine; o operário isolado que contactara com os senhores estudantes, se afastara dos seus e não pudera ligar-se aos outros.
Existe um pouco de tudo isto no género dos Tchernov de voz adocicada, de carácter e de espírito informes, intermediários, pródigos em mutações. Quase nada restou, no mundo dos Tchernov, do velho idealismo intelectual da época de Sofia Perovskaia. Em compensação, veio juntar-se-lhe algo da nova Rússia industrial e comercial, sobretudo algo que pode exprimir-se pelo ditado dos comerciantes: "Quem não mente, não vende".
Herzen constituiu, na sua época, um importante ,e maravilhoso fenómeno no desenvolvimento da opinião russa. Todavia, deixai Herzen decantar-se durante meio-século; suprimi nele as cores brilhantes do talento; suponde que se tenha tornado o seu próprio epígono; colocai-o tendo por fundo os anos de 1905-1917: e tereis o essencial do mundo de Tchernov.
Para Tchernichevski, não é possível decompor esse mundo tão facilmente, mas existe em Tchernov um elemento caricatural
de Tchernichevski.
O elo entre o nosso "socialista-revolucionário" e Mikhailovski parece mais imediato, pois neste último dominavam já a sobrevivência, o epigonismo.
Sob o tchernovismo, como sob a superfície total do nosso desenvolvimento, surge o elemento camponês, já interferindo porém com a semi-intelectualidade das cidades e vilas, da pequena burguesia pouco evoluída ou então da intelectualidade demasiado evoluída e já fortemente deteriorada.
A ascenção extrema do tchernovismo foi necessariamente efémera. Em Fevereiro verificou-se um primeiro abalo: o soldado, o operário e o mujique acordaram; gradualmente o movimento transmite-se aos voluntários do exército, aos seminaristas, aos estudantes, aos advogados; faz-se sentir nas comissões mistas e em toda a espécie de instituições que então se inventaram; eleva finalmente os Tchernov às alturas democráticas enquanto que... nas bases se produz um desvio: e as alturas democráticas ficam suspensas no ar.
Eis o motivo pelo qual o espírito do mundo de Tchernov - entre Fevereiro e Outubro - se resume nesta evocação: "Detém-te, momento: és demasiado belo!"
Mas o momento não se detinha, o soldado "enraivecia", o mujique parava, resistia, e o próprio seminarista começava a perder os sentimentos piedosos que Fevereiro lhe inspirara; após o que os Tchernov, abas da labita ao vento, desciam, escorregavam, sem qualquer encanto, das alturas imaginárias, para dentro das poças de lama da verdadeira realidade.
Existem também antecedentes camponeses na base do leninismo, na medida em que eles se encontram no proletariado russo e em toda a nossa história. Felizmente, na nossa história, não há apenas a passividade ou o espírito de Oblomov; há também movimento. No próprio camponês não existem apenas preconceitos, há também discernimento.
Tudo o que é actividade, coragem, ódio à inércia e à opressão, desprezo pelos caracteres fracos, numa palavra, todos os elementos que determinam o movimento, que se formam e acumulam nos movimentos das camadas sociais, na dinâmica da luta de classes, tudo isso encontra a sua expressão no bolchevismo.
A estrutura camponesa refracta-se através do proletariado, através da força dinâmica da nossa história e não apenas dela: é Lenine que imprime a esta refracção a sua expressão acabada. Ele constituiu precisamente neste sentido a expressão intelectual e capital do elemento nacional, enquanto que o tchernovismo reflecte o mesmo fundo nacional, mas não do ponto de vista intelectual, longe disso.
O episódio tragi-cómico de 5 de Janeiro de 1918 (dissolução da Assembleia Constituinte) foi o último choque que se produziu entre os princípios do leninismo e o tchernovismo. Nesse caso não se tratou verdadeiramente de um "princípio"; pois, praticamente, não se registou qualquer choque; o que se verificou foi uma pequena e lamentável demonstração da rectaguarda da "democracia", que entrou em cena armada com as suas velas e as suas torradas. Todas as ficções se evaporaram, os cenários baratos esboroaram-se, a enfática força moral manifestou a sua imbecil impotência. Finis!
Capítulo IV - A Dissolução da Constituinte
Nos primeiros dias, se não nas primeiras horas que se seguiram ao golpe de Estado, Lenine levantou a questão da Assembleia Constituinte.
- É preciso adiá-la, declarou, é necessário prorrogar as eleições. É preciso alargar o direito eleitoral dando aos jovens de dezoito anos a faculdade de votar. É necessário criar a possibilidade de rever as listas de candidatos. As nossas próprias listas não valem nada: encontramos nelas uma quantidade de intelectuais de ocasião e precisamos de operários e de camponeses. Os homens de Kornilov, os Cadetes, devem ser postos fora de lei.
Replicavam-lhe: — Não é cómodo adiá-la agora. Será tomado como uma suspensão da Assembleia Constituinte, porquanto nós próprios acusámos o Governo provisório de tergiversar com a Assembleia.
- Parvoíces! replicava Lenine. O que importa são os actos e não as palavras.. Para o Governo Provisório a Assembleia Constituinte marcava, ou podia marcar, um passo em frente; para o poder soviético, sobretudo com as listas actuais, seria inevitavelmente um passo à retaguarda. Porque razão achais cómodo adiar? E se a Assembleia Constituinte se compuser de Cadetes, de mencheviques e de socialistas-revolucionários, achas que será cómodo?
- Mas nessa altura seremos nós os mais fortes, respondiam-lhe; de momento estamos ainda demasiado fracos. Na província não se sabe quase nada acerca do poder soviético. E se agora se receber a notícia de termos adiado a Assembleia Constituinte, esse facto enfraquecer-nos-á ainda mais.
Sverdlov pronunciava-se contra o adiamento com particular energia, pois encontrava-se mais ligado à província do que nós.
Lenine via-se sozinho com o seu ponto de vista. Abanava a cabeça com um ar descontente, repetindo:
- É um erro, trata-se evidentemente de um erro que pode custar-nos caro! Oxalá não faça perder a revolução...
No entanto, quando se decidiu pelo não adiamento, Lenine
concentrou toda a sua atenção nas medidas de organização
necessárias aos preparativos para a Assembleia.
Neste intervalo de tempo tornou-se claro que estaríamos em minoria, mesmo com o apoio dos socialistas-revolucionários de esquerda inscritos juntamente com os da direita em listas comuns e que foram completamente "levados".
- Não há dúvida de que é preciso dissolver a Assembleia Constituinte, dizia Lenine, mas o que se há-de fazer com os socialistas-revolucionários de esquerda?
Fomos porém consolados pelo velho Natanson. Reuniu-se connosco "em conselho" e as suas primeiras palavras foram para nos dizer:
- Creio que, apesar de tudo, será necessário dissolver à força a Assembleia Constituinte.
- Bravo! exclamou Lenine; eis uma coisa acertada! Mas será que os vossos estão de acordo connosco sobre este assunto?
- Alguns dos nossos hesitam ainda, mas penso que ao fim e ao cabo terminarão por aceitar, respondeu Natanson.
Os socialistas-revolucionários de esquerda estavam então em plena lua-de-mel com o seu radicalismo extremo: com efeito, aceitaram.
Natanson fez uma proposta: - E se agíssemos da seguinte maneira, disse ele: unindo as nossas e as vossas facções na Assembleia Constituinte com o Comité Executivo Central e assim formássemos uma Convenção?
- Porquê? replicou Lenine com visível despeito. Para imitar a Revolução Francesa? Dispersando a Constituinte consolidamos o sistema soviético. Com o vosso plano tudo se complicaria: não teríamos nem uma coisa, nem outra.
Natanson esforçou-se por demonstrar que, adoptando o seu plano, poderíamos apropriar-nos duma parte da autoridade da Constituinte, mas acabou por se render.
Lenine dedicou-se então à resolução total da questão da Constituinte.
- O erro é evidente, dizia ele: já conquistámos o poder e, contudo, colocámo-nos numa situação tal que nos vemos agora forçados a tomar medidas bélicas para o reconquistarmos.
Encaminhou os preparativos com um cuidado escrupuloso, examinando todos os pormenores e, para tal, submetendo Uriski, que com grande mágoa de Lenine tinha sido nomeado comissário da Assembleia Constituinte, a um interrogatório apaixonado. Lenine prescrevia, entre outras coisas, levar para Petrogrado um regimento letão, composto sobretudo por operários.
- O mujique poderia ceder, disse; precisamos aqui da determinação proletária. Os deputados bolcheviques da Assembleia Constituinte, chegados de todos os pontos da Rússia, foram distribuídos, sob a pressão de Lenine e a direcção de Sverdlov, pelas fábricas, oficinas e pelas diversas formações do exército. Constituíam um elemento importante no aparelho de organização da "revolução complementar" de 5 de Janeiro. No que se refere aos deputados socialistas-revolucionários, julgavam ser incompatível com .a dignidade de eleitos do povo a sua participação na luta: "O povo escolheu-nos, compete-lhe defender-nos". Na realidade, estes pequenos burgueses da província não tinham qualquer noção sobre a forma como se haviam de conduzir; a grande maioria tinha, pura e simplesmente, medo. Preparavam, no entanto, cuidadosamente o cerimonia da primeira sessão. Trouxeram velas, para o caso dos bolcheviques cortarem a electricidade, e uma grande quantidade de torradas, para o caso de os fazerem jejuar. Foi assim que a democracia marchou para o combate contra a ditadura, fortemente armada com torradas e velas. O povo não teve sequer a ideia de apoiar esses homens que se consideravam por ele eleitos e que, na realidade, não eram senão as sombras de um período revolucionário já ultrapassado.
Durante a dissolução da Assembleia Constituinte, eu encontrava-me em Brest-Litovsk. Mas, em breve, quando voltei a Petrogrado para consultas, Lenine disse-me a propósito da dissolução da Assembleia:
- Não há dúvida de que foi muito arriscado da nossa parte não adiar a convocação, foi muito, muito imprudente. Mas, apesar de tudo, foi melhor assim. A dissolução da Assembleia Constituinte pelo poder soviético constituiu uma liquidação completa e aberta da forma democrática em nome da ditadura revolucionária. A partir de agora, a lição ficará aprendida.
Foi assim que a generalização teórica surgiu com a utilização de um regimento de caçadores letões.
Certamente, nesta altura se formaram ,em definitivo na consciência de Lenine as ideias que formulou mais tarde nas suas notáveis teses sobre a democracia, durante o I Congresso da Internacional Comunista.
Sabemos que a crítica da democracia formal tem uma longa história. O carácter intermediário da revolução de 1848 foi explicado, por nós e pelos nossos predecessores, como um naufrágio da democracia política. Esta democracia foi substituída pela democracia "social". Porém, a sociedade burguesa soube constrangê-la a ocupar a posição que a democracia pura já não tinha força para manter. A história política passa por um período dilatório durante o qual a democracia social, alimentando-se com a crítica da democracia pura, desempenhou, de facto, as obrigações desta, ficando completamente impregnada dos seus vícios. Produziu-se então o que sucedera frequentemente na história: a oposição foi chamada para resolver, num sentido conservador, os problemas que ultrapassavam já as forças comprometidas da véspera. Depois de se ter tornado a condição temporária duma preparação da ditadura proletária, a democracia passou a ser o critério supremo, a última instância de controlo, o inviolável sacrossanto, isto é, a hipocrisia superior da sociedade burguesa. Também assim sucedera entre nós. Ferida mortalmente nos seus interesses materiais, em Outubro, a burguesia tentou ressuscitar uma vez mais em Janeiro, sob a aparência do fantasma sagrado da Assembleia Constituinte. Seguidamente, a progressão vitoriosa da revolução proletária, que tinha dissolvido de um modo franco e brutal a Assembleia Constituinte, desfechou sobre a democracia formal o golpe benfazejo de que ela não mais viria a recompor-se. Eis o motivo porque Lenine tinha razão quando dizia:
- Afinal, as coisas compuseram-se melhor assim!
Nesta Assembleia Constituinte de socialistas-revolucionários, a República de Fevereiro encontrou ocasião de morrer pela segunda vez.
Baseado nas impressões gerais que me restam da Rússia oficial de Fevereiro, do Soviete de Petrogrado, composto então por mencheviques e socialistas-revolucionários, desenha-se actualmente, com nitidez no meu espirito, como se datasse de ontem, a fisionomia de um delegado socialista-revolucionário. Quem era, donde vinha, não o sabia e ainda não o sei. Da província, sem dúvida. Tinha o ar de um jovem mestre-escola, de origem eclesiástica: devia ter sido um bom seminarista. De nariz chato, quase imberbe, rosto simplório, maçãs do rosto salientes, usando óculos. Foi na sessão onde os ministros socialistas se apresentaram pela primeira vez no Soviete. Tchernov explicava em termos prolixos ,difusos, lamechas, sedutores e nauseabundos, porque razão ele e os outros tinham entrado para este governo e quais seriam as felizes consequências de tal decisão. Lembro-me de uma frase enfastiante repetida dezenas de vezes pelo orador:
- Vocês empurraram-nos para o governo, compete-vos colocarem-nos em evidência.
O seminarista contemplava o orador patenteando nos olhos uma adoração concentrada. É assim que deve sentir e olhar o peregrino fiel que tem a felicidade de visitar um santuário famoso e a honra de ouvir o sermão de um santo staretz.(1)
O discurso prosseguia interminavelmente; por vezes levantava-se um ligeiro murmúrio entre a audiência fatigada. Porém, no meu seminarista, a fonte da veneração e do entusiasmo parecia inesgotável.
- Eis a fisionomia que deve ter a nossa revolução, ou melhor, a deles!, dizia para mim próprio durante essa sessão do Soviete de 1917, a primeira a que assistia.
No final do discurso de Tchernov houve uma tempestade de aplausos. Num canto, apenas um pequeno número de bolcheviques manifestava entre si a expressão do seu descontentamento. Este grupo destacou-se do conjunto quando, em uníssono, apoiou a crítica que fiz ao ministerialismo de defesa nacional dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. O seminarista, piedoso estava assustado, alarmado ao mais alto grau. Não se indignava: nessa altura, não ousava ainda sentir indignação contra um emigrado que acabava de regressar ao país. Não podia, contudo, compreender como era possível haver quem se insurgisse contra um acontecimento tão feliz e tão maravilhoso sob todos os pontos de vista, como era o da entrada de Tchernov para o Governo Provisório. Estava sentado a alguns passos mim e no seu rosto, que eu ia consultando como um barómetro, o medo e o espanto lutavam com o respeito que ainda sentia. Esse rosto ficou-me para sempre gravado na memória como própria imagem da Revolução de Fevereiro, no que ela teve melhor, de simplista, de ingénuo, de medíocre, no seu elemento pequeno-burguês e seminarista; pois esta revolução apresentava um outro aspecto muito mais feio, o de Dan e de Tchernov.
Não foi em vão, nem por acaso, que Tchernov se viu presidente da Assembleia Constituinte. Tinha sido elevado a esse posto pela Rússia de Fevereiro, preguiçosamente revolucionária que ainda se parecia com Oblomov (2) e que era, por um lado, oh! tão cândida! e, por outro, ah! tão velhaca... O mujique, meio desperto, exaltava e impelia os Tchernov por intermédio dos seminaristas devotos. E Tchernov aceitava esse mandato não sem um certo encanto "russo" e uma certa desonestidade igualmente "russa". Pois Tchernov - e é aí que quero chegar constituiu também, no seu género, um tipo nacional. Digo "também" porque tive a oportunidade, há quatro anos, de falar do carácter "nacional" de Lenine. A justaposição ou, pelo menos a aproximação indirecta destas duas figuras poderá parecer inconveniente. E ela seria, com efeito, grosseira, indecente, se tratasse de personalidades. Falo porém aqui dos "elementos" nacionais tal como foram incarnados e reflectidos!
Tchernové o epígono da velha tradição dos intelectuais revolucionários; Lenine é a perfeição, o resultado completo e
definitivo.
Na velha sociedade intelectual encontrava-se o nobre "arrependido" que perorava profusamente acerca do dever de servir o povo; o seminarista reverente que, de casa da sua tia beata entreabria sobre o mundo a janela do pensamento crítico; o mujique instruído cuja escolha hesitava entre a socialização da terra e o emparcelamento segundo as fórmulas de Stolipine; o operário isolado que contactara com os senhores estudantes, se afastara dos seus e não pudera ligar-se aos outros.
Existe um pouco de tudo isto no género dos Tchernov de voz adocicada, de carácter e de espírito informes, intermediários, pródigos em mutações. Quase nada restou, no mundo dos Tchernov, do velho idealismo intelectual da época de Sofia Perovskaia. Em compensação, veio juntar-se-lhe algo da nova Rússia industrial e comercial, sobretudo algo que pode exprimir-se pelo ditado dos comerciantes: "Quem não mente, não vende".
Herzen constituiu, na sua época, um importante ,e maravilhoso fenómeno no desenvolvimento da opinião russa. Todavia, deixai Herzen decantar-se durante meio-século; suprimi nele as cores brilhantes do talento; suponde que se tenha tornado o seu próprio epígono; colocai-o tendo por fundo os anos de 1905-1917: e tereis o essencial do mundo de Tchernov.
Para Tchernichevski, não é possível decompor esse mundo tão facilmente, mas existe em Tchernov um elemento caricatural
de Tchernichevski.
O elo entre o nosso "socialista-revolucionário" e Mikhailovski parece mais imediato, pois neste último dominavam já a sobrevivência, o epigonismo.
Sob o tchernovismo, como sob a superfície total do nosso desenvolvimento, surge o elemento camponês, já interferindo porém com a semi-intelectualidade das cidades e vilas, da pequena burguesia pouco evoluída ou então da intelectualidade demasiado evoluída e já fortemente deteriorada.
A ascenção extrema do tchernovismo foi necessariamente efémera. Em Fevereiro verificou-se um primeiro abalo: o soldado, o operário e o mujique acordaram; gradualmente o movimento transmite-se aos voluntários do exército, aos seminaristas, aos estudantes, aos advogados; faz-se sentir nas comissões mistas e em toda a espécie de instituições que então se inventaram; eleva finalmente os Tchernov às alturas democráticas enquanto que... nas bases se produz um desvio: e as alturas democráticas ficam suspensas no ar.
Eis o motivo pelo qual o espírito do mundo de Tchernov - entre Fevereiro e Outubro - se resume nesta evocação: "Detém-te, momento: és demasiado belo!"
Mas o momento não se detinha, o soldado "enraivecia", o mujique parava, resistia, e o próprio seminarista começava a perder os sentimentos piedosos que Fevereiro lhe inspirara; após o que os Tchernov, abas da labita ao vento, desciam, escorregavam, sem qualquer encanto, das alturas imaginárias, para dentro das poças de lama da verdadeira realidade.
Existem também antecedentes camponeses na base do leninismo, na medida em que eles se encontram no proletariado russo e em toda a nossa história. Felizmente, na nossa história, não há apenas a passividade ou o espírito de Oblomov; há também movimento. No próprio camponês não existem apenas preconceitos, há também discernimento.
Tudo o que é actividade, coragem, ódio à inércia e à opressão, desprezo pelos caracteres fracos, numa palavra, todos os elementos que determinam o movimento, que se formam e acumulam nos movimentos das camadas sociais, na dinâmica da luta de classes, tudo isso encontra a sua expressão no bolchevismo.
A estrutura camponesa refracta-se através do proletariado, através da força dinâmica da nossa história e não apenas dela: é Lenine que imprime a esta refracção a sua expressão acabada. Ele constituiu precisamente neste sentido a expressão intelectual e capital do elemento nacional, enquanto que o tchernovismo reflecte o mesmo fundo nacional, mas não do ponto de vista intelectual, longe disso.
O episódio tragi-cómico de 5 de Janeiro de 1918 (dissolução da Assembleia Constituinte) foi o último choque que se produziu entre os princípios do leninismo e o tchernovismo. Nesse caso não se tratou verdadeiramente de um "princípio"; pois, praticamente, não se registou qualquer choque; o que se verificou foi uma pequena e lamentável demonstração da rectaguarda da "democracia", que entrou em cena armada com as suas velas e as suas torradas. Todas as ficções se evaporaram, os cenários baratos esboroaram-se, a enfática força moral manifestou a sua imbecil impotência. Finis!
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