Já em 8 de Outubro de 1 923 Trotski tinha posto acima da mesa a peremptória questão da planificação:(167)
“A mesma criação dum comitê para rebaixar os preços é um sintoma eloqüente e demolidor da maneira na que uma política que desconhece o significado das regelações planificadas e operativas cai pola força das suas próprias e inevitáveis conseqüências no intento de dirigir os preços ao estilo do comunismo de guerra”(168)
O primeiro documento escrito pola Oposição de Esquerda é de 15 de Outubro de 1 923: o «Manifesto dos 46».(169) Fala-se nele, face às carências evidentes da direcção – a troika Kamenev, Estaline e Zinoviev — em matéria econômica, da necessidade de planificação e industrialização paralelas à questão, cada vez mais urgente, da democratização interna do Partido. Foi tal o reboliço que os triunviros não tiveram mais remédio que fazer funcionar uma válvula de escape para aliviar a pressão. Desta maneira, por ocasião do 6º aniversário da Revolução anunciaram a abertura dum «novo curso» que incitou uma ampla discussão sobre os temas postos a lume polo manifesto, intervindo Trotski com uma série de artigos na Pravda sob o título Novo Curso; entre eles o VII: «O plano na economia» e o Anexo III: «Sobre a relação entre a cidade e o campo».
Para finais de 1925, no momento em que a sistematização de Estaline—Bukharine(170) sobre o «socialismo num só país» fazia-se-lhes insuportável,(171) Kamenev e Zinoviev abandonam o Buró Político e propõem Trotski a constituição duma «Nova Oposição (de esquerda) Unificada». Em Julho de 1926 Trotski lê, no nome da nova oposição, a «Declaração dos 13» onde as medidas que se preconizam são:
Acréscimo dos salários dos operários.
Reforma fiscal que impusesse uma forte taxa aos kulaks e libertasse dela aos bedniaks (pequenos lavradores).
Progressiva coletivização da agricultura.
Enceleramento da falência de industrialização: Queremos um plano qüinqüenal!, tal foi a palavra de ordem da Oposição Unificada durante o verão de 1 926.
De maneira empírica, a direcção rejeita uma trás de outra todas as propostas.
Em 7 de Novembro de 1927, no 10º aniversário da Revolução, a Oposição manifestou-se em Moscovo, em Leninegrado, em Kharkhov sob as suas próprias bandeiras: Abaixo o kulak, o nepman, o burocrata!.
O XV Congresso, previsto para últimos de 1 927, foi atrasado pola direcção que daquela não pisa terra firme. A agravação da situação econômica e a derrota da revolução chinesa de 1925 -1927, que antevera a Oposição, supõe um duríssimo baque para a direcção de Estaline—Bukharine que busca o momento para esmagar a Oposição. O XV Congresso olha a capitulação dos seguidores de Zinoviev em Leninegrado e milhares de militantes são deportados para a Sibéria e a Ásia Central aos poucos do Congresso. Uma feroz repressão abater-se-á sobre irrepreensíveis revolucionários.(172)
A luita dos oposicionistas não cessa nem no cárcere, nem no exílio.(173) Durante os seis primeiros meses de 1928 a GPU reprime mais de 150 revoltas dos lavradores enfurecidos por não poderem aceder nem às ferramentas nem aos bens de consumo. No seio do Comitê Central os estalinistas e os bukharinistas enfrentam-se em divergência polas medidas para tomar. São partidários os bukharinistas de certas concessões, de recurso à força os estalinistas. Em Janeiro de 1929, o Buró Político adopta severas medidas contra os camponeses que se resistam à requisição. Para meados de Fevereiro, ao não se produzir os resultados esperados polas ameaças, a Pravda lança uma campanha de imprensa com o título “Os Kulaks erguem de nova a cabeça”. Em Abril do mesmo ano, o Comitê Central decide tomar medidas de urgência. Eis a chamada “virada para a esquerda” que conduze à colectivizarão forçosa e ao Primeiro Plano Qüinqüenal. Sob estes parâmetros de repressão maciça, aonde “os fulgores de Outubro iam-se extinguindo nos sol - pores carcerários”,(174) nascem alguns dos textos fundamentais da época: A Internacional Comunista após Lenine, de Trotski, Os perigos profissionais do poder(175) de Christian Rakovski e Rumo à outra chama(176) de Panait Istrati,(177) primeira denúncia do estalinismo feita por um escritor de reputação internacional.
A “virada para a esquerda” produze divisões nas fileiras da Oposição. Tomando de conta que a fracção estaliniana semelhava adotar as medidas que urgia a Oposição, alguns quadros, Preobrazhenski, Esmilga e Radek entre outros, vem o momento em que é de necessidade apoiar a fracção de Estaline.
A “virada para a direita” de Julho de 1928, tornando nulas todas as medidas contra o kulak, não é mais que um episódio na luita no seio do Comitê Central entre as fracções de Estaline e Bukharine. Há que esperar em meados de 1929, derrotadas as posições de direita bukharinistas, que Estaline pode adoptar de novo a “virada para esquerda”, desta volta se sustentado numa nova elite privilegiada selecionada no movimento estakhanovista.
Pensar que Estaline e o seu grupo estavam dispostos para aplicar o programa da Oposição é, contudo, uma conclusão ligeira de mais; não só porque a aplicação do programa tivesse acarretado menos sacrifícios, embora porque a conceição central era profundamente divergente tanto da dos direitistas bukharinistas como da dos centristas estalinianos. Roy A. Medvedev observa a este respeito que,
“a sua violência contra os campesinos, o capricho burocrático e o governo arbitrário, tanto no campo como na cidade, discordavam do leninismo muito mais do que pudera propor qualquer dos grupos da oposição”(178)
A única ferramenta que permite limitar dentro do possível no seio dum Estado operário as conseqüências que acarreta numa sociedade em transição a lei do valor é o plano, assumido como arma para articular cada sector da actividade económica com o resto em função dos recursos que se possuam internamente no país e as possibilidades de exploração dos recursos naturais, mas também a articulação do país, como um todo, com o conjunto da economia universal. Tem de se considerar o plano como tarefa prioritária no desenvolvimento das forças produtivas no seu conjunto, o que implica antes de nada, um incessante ritmo de industrialização consciente e controlada polo próprio Estado. Por fim, mas nom menos importante nem muito menos, garantindo a máxima presença dos sectores postos no esforço — operários e lavradores — para o que se faz indispensável a mais completa e profunda democracia que garanta que aqueles que estão dispostos para o esforço o façam voluntária e conscientemente. O proletariado necessita da democracia como forma política da sua ditadura no senso que explicitara Engels com assaz precisão:
“Está absolutamente além de qualquer dúvida que o nosso partido e a classe operária só podem chegar ao domínio sob a forma de república democrática. Até é esta última a forma específica da ditadura do proletariado, como o tem provado já a Grande Revolução francesa.”(179)
A política, então, não se poderá estabelecer na enganosa dicotomia entre a melhora do bem-estar do conjunto da população e o abastecimento global em bens de produção; daquela, a acumulação tem de ser a óptima em troca da máxima, isto é, pôr em primeiro plano o incremento do nível vital dos trabalhadores tanto da cidade como do campo, desde que qualquer diminuição do nível de vida da massa operária levará para um decrescimento relativo da produtividade do trabalho empecendo quaisquer esforços acumulativos, vindo abaixo o plano ao não poder dar rendimento os efeitos da medrança de stokagem de bens de produção. Vale dizer, para trançar o valor de troco há que quebrar a escassez de valores de uso, rompendo, por esses meios, todo esbanjamento do sobre-produto social para fins improdutivos (aparelhos de propaganda, policiais, gastos sumptuários...) Por isso não era uma bizantina discussão a briga levada pola Oposição contra a gestão burocrática, embora o cerne mesmo do combate pola construção do socialismo.
Assim e tudo, moldurar tão só dentro dos fechados marcos económicos a discussão é deturpar toda a luita polo socialismo. Tem de estar um muito distante do espírito de 1917 para argumentar que a abordagem da construção do socialismo pode esquecer a relação de forças entre o impulso da planificação sob formas de propriedade colectiva num determinado espaço geográfico e o capitalismo mundial como um conjunto, não se tem de traçar desde o plano político. O particular finca-pé de Trotski neste ponto, e precedentemente toda a tradição Marxista que vai desde Marx e Engels até Lenine, da mais ampla democracia no movimento operário, endenta-se com o conjunto de elementos orgânicos no Estado conquistado polos operários, isto é, a planificação - que não é já um mecanismo imposto à economia como a “programação” nos países capitalistas - e a tarefa “esquecida” por Estaline e os seus: a imperiosa necessidade de alargamento da revolução para o plano internacional. Rosa Luxemburgo deixou-o gravado em frases joalheiras:
Este é o aspecto essencial e perene da política dos bolcheviques, aos que corresponde o mérito histórico imperecedoiro de mostrar o caminho ao proletariado mundial no relativo à conquista do poder político e os temas práticos da realização do socialismo, assim como ter empuxado poderosamente o enfrentamento entre o capital e o trabalho em todo o mundo. O único que cabia fazer na Rússia era traçar o problema, sem resolvê-lo. Neste sentido, o futuro pertence em todas as partes ao bolchevismo.(180)
Mas ao fim e ao cabo, Estaline era um político excessivamente empírico para chegar a tais conclusões.(181) Como na fábula bíblica, a burocracia procurou um homem à sua imagem e semelhança e achou Estaline. A classe dos operários esgotada pola Guerra Mundial, a Revolução, a Guerra Civil, desmoralizada pola frustração da revolução na Europa, desejava paz, tranqüilidade. Os funcionários, que receavam do internacionalismo bolchevique, queriam “ordem” para as suas tarefas administrativas e temiam a intromissão dos focinhos operários e campesinos nos seus “delicados” assuntos. O proletariado podia dizer com Bertolt Brecht: “comesto vivo fui polas mediocridades”.(182) Rodolfo Llopis,(183) perspicaz observador, reparou:
A burocracia obstaculiza os avanços rápidos. O obreiro funcionário faz-se, dia por dia, mais funcionário e menos operário. A sua mentalidade foi mudando. Sofre uma desviarão perigosa...(184)
A ambigüidade que se instalara como um tumor maligno entre Estado dos Sovietes e socialismo, haveria servir para uma maliciosa sagração do Estado por cima dos proletários e campesinos e dum modelo do “socialismo” pola malta de Estaline, bem longe da construção do socialismo que postularam Marx e Engels:
“uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”(185).
O Trunfo Burocrático-Despótico
Temos justificado já que a junção de factores: a estrutura económica hipotecando uma rápida industrialização em grande escala, a derrota das revoluções uma trás da outra e a pressão burguesa no plano internacional(186) empurravam para uma hierarquização maior cada vez, das instâncias partidárias e de governo do Estado. A feroz briga, fechada no estreito cercado do Buró Político do PC (B), permitia a ampliação dum controlo férreo deste órgão sobre o resto do Partido e dum engasgo brutal do conjunto das instituições do proletariado e dos lavradores pobres.
Na altura de 1927 o Buró Político estava polarizado em duas linhas de força, uma ocupada pola “ala direitista”: Bukharine (Presidente da Internacional Comunista), Rikov (Presidente do Conselho dos Comissários do Povo), Tomski (Presidente dos Sindicatos), Uglanov (Responsável do Partido em Moscovo) e Kalinine (Presidente dos Sovietes); outra a “estalinista”: Estaline (Secretário Geral), Molotov (Encarregado da agricultura e da organização no Partido), Kosior (Responsável do Partido na Ucrânia) e Esvernik. Entre estas duas posições abalavam de contínuo segundo os debates, Voroshilov (Responsável do Exército) e Rudzutak (Presidente do Comitê da Produção Química).
As luitas que se sucederam — cada grupo apoiando-se em diferentes forças sociais — traduziram um novo cenário com outra dramatis personae: Uglanov e Kosior foram substituídos por Kuibishev (Responsável da Planificação) e Kaganovitch (Responsável de Organização); Bukharine e de seguida Tomski, afastados dos círculos de poder, entanto Voroshilov e Kalinine optavam pola tendência Estaline junto Ordzonikidzé e Mikoiám. Este será o núcleo que deterá, já sem discussão nenhuma, as alavancas principais na União Soviética.
Não tivesse sido possível tal triunfo engenhoca se importantes estratos da sociedade não lhe brindar uma protecção mais ou menos activa. A ampla camada de quadros dirigentes do Partido e de directores e técnicos das empresas(187) apostavam por apressar a industrialização, não para alentar ao proletariado com miras à vitória da revolução noutros países, embora por razoes nacionalistas de seguridade perante o exterior, mais recursos para os negócios e mais incentivos pessoais. A este respeito Claudín, observa que
“a perspectiva da construção integral do socialismo não foi uma meta cientificamente elaborada, mas antes o mito que se agitou perante o povo soviético para darem uma justificação aos imensos sacrifícios que lhe demandavam. E por isso não valeram para formar às massas como sujeito consciente, exigente e crítico, da sua própria obra, mas ao contrário, para cultivarem nelas uma atitude acrítica, de resignação; para convertê-las em objecto de doada manipulação (...) para afirmar o mito houve de recorrer ao terror”.(188)
À vez, muitos trabalhadores e pequenos lavradores, fartos de penúrias, atrassamento, extremamente severa pressão disciplinar nas fábricas, salários bem raquíticos, demoras nas remunerações, considerável desprovimento alimentário nas cidades e condições sumamente ásperas de proletarização para os camponeses, desejavam alívio e dignidade para as suas desventuradas vidas conformando um amplo e poderoso basamento social.
Os tons nacionalistas e autocratas principiados polos dirigentes concordavam com as características pessoais da mais alta burocracia conduzindo-os rumo a um sistemático recurso das molas repressivas com que resolverem divergências ideológicas e políticas, reduzindo-as a simples questões administrativas e formalismos disciplinares e, harmonizado com isto, para versões ideológicas encobridoras de realidades muito longe das formulações que oficialmente a eito se manifestavam: função rectora dos sovietes e democratização, apoio aos camponeses pobre e assim seguido. O que deu na imposição desde os centros de poder aos organismos normativos em qualquer graduação, de decisões que contradiziam o próprio funcionamento estabelecido nos estatutos do Partido e mesmo a legalidade constitucional do Estado. Enquanto o XV Congresso (2 ao 19 de Dezembro de 1927) acordou continuar com uma política económica sem desequilíbrios entre os sectores industriais nem tirar as proporções entre a indústria e a agricultura, o Comitê Central em 1928 apressou a industrialização com orientação de preferência para os meios de produção com um abusivo descuido dos de consumo. O Buró Político e nomeadamente Estaline, aos poucos, aceleraram ainda mais as cadências sepultando os acordos do XV Congresso.(189) A XVI Conferência de Abril de 1929 assegurou esta política que até 1930 não fora aprovada polo XVI Congresso, dissipando os acordos do XV com uma estrategia radicalmente oposta ao aprovado três anos quase não.
Poder-se-ia, daquela, interpretar que foram os fados os que empurraram à Revolução para o escuro, triste e sanguinolento beco onde atolou? Uma interpretação nesta via seria mística e dum fraco servilismo com as circunstâncias. Que a URSS ficou condenada para uma acumulação socialista primitiva sabemo-lo bem desde o Preobrazhenski,(190) mas seria errado, todavia, que tirássemos de aí finalmente que a acumulação tivesse que dar em resultado fatal a fusão numa camada social privilegiada dos aparelhos do Estado, das molas económicas e das alavancas de fundamento do Partido e que a acumulação socialista desse em conseqüência um iniludível rebaixamento das condições vitais dos operários e dos lavradores até os engolir e engrunhir. No entanto ao contrário, foram estas horríveis condições económicas as que robusteceram ferreamente o estalinismo. O Estado furtou de coacção a gestão dos interesses comuns apoderando-se violentamente das funções dos autônomos corpos organizados dos trabalhadores e lavradores por uma tenaz de coerção e de fraqueza, subordinando as anelações da generalidade aos duma cambada. Órgão omnímodo e despótico, pudo alçar-se sobre o envasamento duma imensa humanidade lavradora e dumas cidades ilhadas nesse interminável mar, transformadas polos acontecimentos históricos em agrupações meio-parasitárias de centros administrativos e militares.
Mas, poderia perguntar qualquer, era isso inevitável? Lenine gostava porfiar que não há situações sem saída, e a luita incansável da Oposição de Esquerda assim o avalia. Uma reação dos quadros bolcheviques pudo trocar de rumo o barco aquele, inclinando a proa do partido na direcção donde vinha o vento favorável para a revolução proletária na União Soviética e no mundo. Argumentar que Trotski e os oposicionistas sob-estimaram o Thermidor e os factores objectivos que empurravam para uma “acumulação burocrática”, envolve a superestimação dos burocratas e, disso, que estes sempre tiveram razão. Por isso é que Lukács, como já sublinhamos, teimou:
“não havia ninguém naquela época em condições de proporcionar uma perspectiva rica em conseqüências teóricas e aplicáveis aos problemas de fases ulteriores”.
Os oposicionistas bolcheviques, polo contra, luitaram com o ponto de mira na relativa autonomia dos factores subjectivos que poderiam provocar uma troca das condições políticas e económicas a nível nacional e internacional que arredasse o estalinismo, visto que inclusive no cenário dum estado autenticamente socialista, a consciência da vanguarda do proletariado é primária. Uma reação correcta ter-se-ia dado se a vanguarda tivesse compreendido cabalmente para onde ia a Revolução. As raízes e as conseqüências tarde de mais e bastante dispersadas foram compreendidas. E com estas incompreensões e o caldo de cultivo favorável, a vaga do trunfo dos déspotas sobre o proletariado.
A ferocidade com que Estaline liquidou os seus velhos aliados fraccionais: Zinoviev, Kamenev e Bukharine, aos obreiros, artistas, ingenierios, intelectuais e simples militantes comunistas, não é mais que reconhecimento de que para Estaline próprio o regime que tinha montado andava de cote no gume da navalha. Para manter a ficção de serem herdeiro directo do bolchevismo e de Lenine, entanto expropriava politicamente o proletariado e os camponeses pobres, revertia o internacionalismo, tão caro à tradição do Partido, num pequeno-burguês socialismo num só país e reforçava a grande falsidade com um feroz terror de estado policiado.
Um Contributo Imorredoiro
Há que voltar muitas vezes às estrênuas e arrepiantes palavras de quem fora chefe da rede de espionagem soviética na Alemanha nazi, Leopold Domb-Trepper:
A revolução degenerada engendrara um sistema de terror e horror, na que eram escarnecidos os ideais socialistas no nome dum dogma fossilizado que os verdugos ainda tinham o descaramento de chamar Marxismo.
E malgrado, dilacerados, mas dóceis, seguíramos esmiuçando a engrenagem que tínhamos posto em marcha com as nossas próprias mãos. Como rodas do mecanismo, aterrorizados até o extravio, converteramos-nos em instrumento da nossa própria submissão. Todos os que não se ergueram contra a máquina estalinista são responsáveis, coletivamente responsáveis dos seus crimes. Também não me eu liberto deste veredicto.
Mas, quem daquela protestou? Quem se ergueu para gritar o seu desgosto?
Os trotskistas podem reivindicar esta honra. Em semelhança do seu líder, que pagou a sua teimosia com um golpe de piolete, os trotskistas combateram totalmente o estalinismo e foram os únicos que o fizeram. Na época das grandes purgas, já só podiam berrar a sua rebeldia nas imensidades geadas, aonde os conduziram para melhor exterminá-los. Nos campos de concentração, a sua conduta foi sempre digna e mesmo exemplar. Mas as suas vozes perderam-se na tundra da Sibéria.
Hoje em dia os trotskistas têm o direito de acusar os que antanho coraram os oulidos de morte dos lobos. Que não esqueçam, porém, que possuíam sobre nós a imensa vantagem de dispor dum sistema político coerente, susceptível de substituir o estalinismo, e ao que podiam agarrar-se no meio da profunda miséria da revolução traída. Os trotskistas não “confessavam”, porque sabiam que as suas confissões não serviriam nem ao partido nem ao socialismo.(191)
Este magistral volume de Trotski expõe com clareza não habitual a lide contra o descarrilamento da revolução operária, o duro combate contra a urgência burocrática por conduzir os combóios da emancipação para trilhos sem saída. Explica que a briga política desenvolvida vinha determinada por correlações de forças de classe desfavoráveis para a vanguarda proletária, ao passo que o autor cumpria a obriga de honesto e incansável revolucionário de ajustar as contas a tanto enleamento com uma seriedade e qualidade além do comum. Anos mais tarde haveria escrever na Revolução Traída, súmula do seu pensamento, sobre a burocracia estalinista:
Temos definido o Termidor soviético como a vitória da burocracia sobre as massas. Tentámos mostrar quais as condições históricas desta vitória. A vanguarda revolucionária do proletariado foi absorvida em parte polos serviços do Estado e, pouco a pouco, desmoralizada, em parte destruída na guerra civil, em parte eliminada e esmagada. As massas, fadigadas e desiludidas, nada mais apresentavam do que indiferença polo que se passava nos meios dirigentes. Estas condições, por importantes que sejam, de modo algum bastam para nos explicar como a burocracia conseguiu elevar-se acima da sociedade e tomar nas mãos por muito tempo os destinos desta; a sua vontade seria unicamente, em qualquer caso, insuficiente; a formação duma nova camada social deve assentar em causas sociais mais profundas.(192)
Enquanto, “o espectro da revolução acossava as noites de Macbeth-Estaline, que procurava se resguardar dele, aos olhos da classe operária e da juventude instruídas no culto à Revolução de Outubro, com a ajuda da matança e dos enfeites do crime, ao mesmo tempo em que se amparava proporcionando empregos públicos e privilégios a dezenas de milhares de candidatos. Estaline, fruto monstruoso e parasitário dum avanço não interrompido para a revolução mundial, «traía» a revolução ao batalhar, no nome dos privilégios que encarnava, o profundo movimento da revolução obreira mundial, tanto na URSS como nos países capitalistas”,(193) os povos soviéticos laiavam a morte de Lenine:
“Se Lenine vivesse!... Quantas vezes não terei escuitado semelhante queixa nos dias que passei na Rússia... Se Lenine vivesse –disseram-me— não se tivesse trançado a unidade do partido... Se Lenine vivesse, ele, que sabia antever os problemas e adiantar-se aos acontecimentos, não se houvesse deixado surpreender por estes conflitos que com tanta freqüência estalam. Lenine dava a sensação de ser superior aos problemas. De dominá-los. Agora, ao contrário, são os problemas que dominam os homens.”(194)
A luita levada até o derradeiro fôlego por Trotski contra o estalinismo para endireitar o calvário dos povos projectou uma labareda de fulgor tal que não perdeu intensidade sessenta anos após o seu assassinato. Rematando Trotski o 20 de Agosto de 1 940 a reacção termidoriana rendeu, ao final, a mais alta homenagem ao Marxismo ao tentar clausular a Revolução terminando com a sua vida.
“Quem com os seus próprios olhos enxergou a BelezaCedeu nos braços da morte.”(195)
Não se pode entender, em nossa opinião, nem o Marxismo do tempo presente, nem a trágica história do século XX(196), sem conhecer a sério, a vida e a obra deste combatente incansável. É justamente no estudo sobre a sua vida e obra, num pretérito assaz complexo que traduze um presente bem enguedelhado, que se pode inaugurar um novo capítulo que afaste da barbárie o porvir da humanidade.
Este livro de batalha nas entranhas do monstro, esforço imenso para pôr sobre os pés os alicerçados princípios do Marxismo: o internacionalismo proletário, a democracia obreira e a autonomia das organizações dos operários defronte a qualquer movimento burguês, chamem-se como se chamar(197) é, simultaneamente, um poderoso latejo desde o passado para uma acção libertadora das espessas trevas da opressão e uma fulgente labareda arremessada ao futuro.
A humanidade ainda não chegou à descoberta do método epidural para o parto sem dor no domínio das transformações sociais. Procurar na abreviação dos sofrimentos para “que podam brincar os nenos ledamente”,(198) como escrevera ainda não há muito um grande poeta galego, mais que útil, é urgente.
Anda um espectro pola Europa, polo mundo, o espectro do Comunismo, e nada nem ninguém poderá esconjurá-lo já.
José André Lôpez Gonçâlez
24 de Julho de 2001
“A mesma criação dum comitê para rebaixar os preços é um sintoma eloqüente e demolidor da maneira na que uma política que desconhece o significado das regelações planificadas e operativas cai pola força das suas próprias e inevitáveis conseqüências no intento de dirigir os preços ao estilo do comunismo de guerra”(168)
O primeiro documento escrito pola Oposição de Esquerda é de 15 de Outubro de 1 923: o «Manifesto dos 46».(169) Fala-se nele, face às carências evidentes da direcção – a troika Kamenev, Estaline e Zinoviev — em matéria econômica, da necessidade de planificação e industrialização paralelas à questão, cada vez mais urgente, da democratização interna do Partido. Foi tal o reboliço que os triunviros não tiveram mais remédio que fazer funcionar uma válvula de escape para aliviar a pressão. Desta maneira, por ocasião do 6º aniversário da Revolução anunciaram a abertura dum «novo curso» que incitou uma ampla discussão sobre os temas postos a lume polo manifesto, intervindo Trotski com uma série de artigos na Pravda sob o título Novo Curso; entre eles o VII: «O plano na economia» e o Anexo III: «Sobre a relação entre a cidade e o campo».
Para finais de 1925, no momento em que a sistematização de Estaline—Bukharine(170) sobre o «socialismo num só país» fazia-se-lhes insuportável,(171) Kamenev e Zinoviev abandonam o Buró Político e propõem Trotski a constituição duma «Nova Oposição (de esquerda) Unificada». Em Julho de 1926 Trotski lê, no nome da nova oposição, a «Declaração dos 13» onde as medidas que se preconizam são:
Acréscimo dos salários dos operários.
Reforma fiscal que impusesse uma forte taxa aos kulaks e libertasse dela aos bedniaks (pequenos lavradores).
Progressiva coletivização da agricultura.
Enceleramento da falência de industrialização: Queremos um plano qüinqüenal!, tal foi a palavra de ordem da Oposição Unificada durante o verão de 1 926.
De maneira empírica, a direcção rejeita uma trás de outra todas as propostas.
Em 7 de Novembro de 1927, no 10º aniversário da Revolução, a Oposição manifestou-se em Moscovo, em Leninegrado, em Kharkhov sob as suas próprias bandeiras: Abaixo o kulak, o nepman, o burocrata!.
O XV Congresso, previsto para últimos de 1 927, foi atrasado pola direcção que daquela não pisa terra firme. A agravação da situação econômica e a derrota da revolução chinesa de 1925 -1927, que antevera a Oposição, supõe um duríssimo baque para a direcção de Estaline—Bukharine que busca o momento para esmagar a Oposição. O XV Congresso olha a capitulação dos seguidores de Zinoviev em Leninegrado e milhares de militantes são deportados para a Sibéria e a Ásia Central aos poucos do Congresso. Uma feroz repressão abater-se-á sobre irrepreensíveis revolucionários.(172)
A luita dos oposicionistas não cessa nem no cárcere, nem no exílio.(173) Durante os seis primeiros meses de 1928 a GPU reprime mais de 150 revoltas dos lavradores enfurecidos por não poderem aceder nem às ferramentas nem aos bens de consumo. No seio do Comitê Central os estalinistas e os bukharinistas enfrentam-se em divergência polas medidas para tomar. São partidários os bukharinistas de certas concessões, de recurso à força os estalinistas. Em Janeiro de 1929, o Buró Político adopta severas medidas contra os camponeses que se resistam à requisição. Para meados de Fevereiro, ao não se produzir os resultados esperados polas ameaças, a Pravda lança uma campanha de imprensa com o título “Os Kulaks erguem de nova a cabeça”. Em Abril do mesmo ano, o Comitê Central decide tomar medidas de urgência. Eis a chamada “virada para a esquerda” que conduze à colectivizarão forçosa e ao Primeiro Plano Qüinqüenal. Sob estes parâmetros de repressão maciça, aonde “os fulgores de Outubro iam-se extinguindo nos sol - pores carcerários”,(174) nascem alguns dos textos fundamentais da época: A Internacional Comunista após Lenine, de Trotski, Os perigos profissionais do poder(175) de Christian Rakovski e Rumo à outra chama(176) de Panait Istrati,(177) primeira denúncia do estalinismo feita por um escritor de reputação internacional.
A “virada para a esquerda” produze divisões nas fileiras da Oposição. Tomando de conta que a fracção estaliniana semelhava adotar as medidas que urgia a Oposição, alguns quadros, Preobrazhenski, Esmilga e Radek entre outros, vem o momento em que é de necessidade apoiar a fracção de Estaline.
A “virada para a direita” de Julho de 1928, tornando nulas todas as medidas contra o kulak, não é mais que um episódio na luita no seio do Comitê Central entre as fracções de Estaline e Bukharine. Há que esperar em meados de 1929, derrotadas as posições de direita bukharinistas, que Estaline pode adoptar de novo a “virada para esquerda”, desta volta se sustentado numa nova elite privilegiada selecionada no movimento estakhanovista.
Pensar que Estaline e o seu grupo estavam dispostos para aplicar o programa da Oposição é, contudo, uma conclusão ligeira de mais; não só porque a aplicação do programa tivesse acarretado menos sacrifícios, embora porque a conceição central era profundamente divergente tanto da dos direitistas bukharinistas como da dos centristas estalinianos. Roy A. Medvedev observa a este respeito que,
“a sua violência contra os campesinos, o capricho burocrático e o governo arbitrário, tanto no campo como na cidade, discordavam do leninismo muito mais do que pudera propor qualquer dos grupos da oposição”(178)
A única ferramenta que permite limitar dentro do possível no seio dum Estado operário as conseqüências que acarreta numa sociedade em transição a lei do valor é o plano, assumido como arma para articular cada sector da actividade económica com o resto em função dos recursos que se possuam internamente no país e as possibilidades de exploração dos recursos naturais, mas também a articulação do país, como um todo, com o conjunto da economia universal. Tem de se considerar o plano como tarefa prioritária no desenvolvimento das forças produtivas no seu conjunto, o que implica antes de nada, um incessante ritmo de industrialização consciente e controlada polo próprio Estado. Por fim, mas nom menos importante nem muito menos, garantindo a máxima presença dos sectores postos no esforço — operários e lavradores — para o que se faz indispensável a mais completa e profunda democracia que garanta que aqueles que estão dispostos para o esforço o façam voluntária e conscientemente. O proletariado necessita da democracia como forma política da sua ditadura no senso que explicitara Engels com assaz precisão:
“Está absolutamente além de qualquer dúvida que o nosso partido e a classe operária só podem chegar ao domínio sob a forma de república democrática. Até é esta última a forma específica da ditadura do proletariado, como o tem provado já a Grande Revolução francesa.”(179)
A política, então, não se poderá estabelecer na enganosa dicotomia entre a melhora do bem-estar do conjunto da população e o abastecimento global em bens de produção; daquela, a acumulação tem de ser a óptima em troca da máxima, isto é, pôr em primeiro plano o incremento do nível vital dos trabalhadores tanto da cidade como do campo, desde que qualquer diminuição do nível de vida da massa operária levará para um decrescimento relativo da produtividade do trabalho empecendo quaisquer esforços acumulativos, vindo abaixo o plano ao não poder dar rendimento os efeitos da medrança de stokagem de bens de produção. Vale dizer, para trançar o valor de troco há que quebrar a escassez de valores de uso, rompendo, por esses meios, todo esbanjamento do sobre-produto social para fins improdutivos (aparelhos de propaganda, policiais, gastos sumptuários...) Por isso não era uma bizantina discussão a briga levada pola Oposição contra a gestão burocrática, embora o cerne mesmo do combate pola construção do socialismo.
Assim e tudo, moldurar tão só dentro dos fechados marcos económicos a discussão é deturpar toda a luita polo socialismo. Tem de estar um muito distante do espírito de 1917 para argumentar que a abordagem da construção do socialismo pode esquecer a relação de forças entre o impulso da planificação sob formas de propriedade colectiva num determinado espaço geográfico e o capitalismo mundial como um conjunto, não se tem de traçar desde o plano político. O particular finca-pé de Trotski neste ponto, e precedentemente toda a tradição Marxista que vai desde Marx e Engels até Lenine, da mais ampla democracia no movimento operário, endenta-se com o conjunto de elementos orgânicos no Estado conquistado polos operários, isto é, a planificação - que não é já um mecanismo imposto à economia como a “programação” nos países capitalistas - e a tarefa “esquecida” por Estaline e os seus: a imperiosa necessidade de alargamento da revolução para o plano internacional. Rosa Luxemburgo deixou-o gravado em frases joalheiras:
Este é o aspecto essencial e perene da política dos bolcheviques, aos que corresponde o mérito histórico imperecedoiro de mostrar o caminho ao proletariado mundial no relativo à conquista do poder político e os temas práticos da realização do socialismo, assim como ter empuxado poderosamente o enfrentamento entre o capital e o trabalho em todo o mundo. O único que cabia fazer na Rússia era traçar o problema, sem resolvê-lo. Neste sentido, o futuro pertence em todas as partes ao bolchevismo.(180)
Mas ao fim e ao cabo, Estaline era um político excessivamente empírico para chegar a tais conclusões.(181) Como na fábula bíblica, a burocracia procurou um homem à sua imagem e semelhança e achou Estaline. A classe dos operários esgotada pola Guerra Mundial, a Revolução, a Guerra Civil, desmoralizada pola frustração da revolução na Europa, desejava paz, tranqüilidade. Os funcionários, que receavam do internacionalismo bolchevique, queriam “ordem” para as suas tarefas administrativas e temiam a intromissão dos focinhos operários e campesinos nos seus “delicados” assuntos. O proletariado podia dizer com Bertolt Brecht: “comesto vivo fui polas mediocridades”.(182) Rodolfo Llopis,(183) perspicaz observador, reparou:
A burocracia obstaculiza os avanços rápidos. O obreiro funcionário faz-se, dia por dia, mais funcionário e menos operário. A sua mentalidade foi mudando. Sofre uma desviarão perigosa...(184)
A ambigüidade que se instalara como um tumor maligno entre Estado dos Sovietes e socialismo, haveria servir para uma maliciosa sagração do Estado por cima dos proletários e campesinos e dum modelo do “socialismo” pola malta de Estaline, bem longe da construção do socialismo que postularam Marx e Engels:
“uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”(185).
O Trunfo Burocrático-Despótico
Temos justificado já que a junção de factores: a estrutura económica hipotecando uma rápida industrialização em grande escala, a derrota das revoluções uma trás da outra e a pressão burguesa no plano internacional(186) empurravam para uma hierarquização maior cada vez, das instâncias partidárias e de governo do Estado. A feroz briga, fechada no estreito cercado do Buró Político do PC (B), permitia a ampliação dum controlo férreo deste órgão sobre o resto do Partido e dum engasgo brutal do conjunto das instituições do proletariado e dos lavradores pobres.
Na altura de 1927 o Buró Político estava polarizado em duas linhas de força, uma ocupada pola “ala direitista”: Bukharine (Presidente da Internacional Comunista), Rikov (Presidente do Conselho dos Comissários do Povo), Tomski (Presidente dos Sindicatos), Uglanov (Responsável do Partido em Moscovo) e Kalinine (Presidente dos Sovietes); outra a “estalinista”: Estaline (Secretário Geral), Molotov (Encarregado da agricultura e da organização no Partido), Kosior (Responsável do Partido na Ucrânia) e Esvernik. Entre estas duas posições abalavam de contínuo segundo os debates, Voroshilov (Responsável do Exército) e Rudzutak (Presidente do Comitê da Produção Química).
As luitas que se sucederam — cada grupo apoiando-se em diferentes forças sociais — traduziram um novo cenário com outra dramatis personae: Uglanov e Kosior foram substituídos por Kuibishev (Responsável da Planificação) e Kaganovitch (Responsável de Organização); Bukharine e de seguida Tomski, afastados dos círculos de poder, entanto Voroshilov e Kalinine optavam pola tendência Estaline junto Ordzonikidzé e Mikoiám. Este será o núcleo que deterá, já sem discussão nenhuma, as alavancas principais na União Soviética.
Não tivesse sido possível tal triunfo engenhoca se importantes estratos da sociedade não lhe brindar uma protecção mais ou menos activa. A ampla camada de quadros dirigentes do Partido e de directores e técnicos das empresas(187) apostavam por apressar a industrialização, não para alentar ao proletariado com miras à vitória da revolução noutros países, embora por razoes nacionalistas de seguridade perante o exterior, mais recursos para os negócios e mais incentivos pessoais. A este respeito Claudín, observa que
“a perspectiva da construção integral do socialismo não foi uma meta cientificamente elaborada, mas antes o mito que se agitou perante o povo soviético para darem uma justificação aos imensos sacrifícios que lhe demandavam. E por isso não valeram para formar às massas como sujeito consciente, exigente e crítico, da sua própria obra, mas ao contrário, para cultivarem nelas uma atitude acrítica, de resignação; para convertê-las em objecto de doada manipulação (...) para afirmar o mito houve de recorrer ao terror”.(188)
À vez, muitos trabalhadores e pequenos lavradores, fartos de penúrias, atrassamento, extremamente severa pressão disciplinar nas fábricas, salários bem raquíticos, demoras nas remunerações, considerável desprovimento alimentário nas cidades e condições sumamente ásperas de proletarização para os camponeses, desejavam alívio e dignidade para as suas desventuradas vidas conformando um amplo e poderoso basamento social.
Os tons nacionalistas e autocratas principiados polos dirigentes concordavam com as características pessoais da mais alta burocracia conduzindo-os rumo a um sistemático recurso das molas repressivas com que resolverem divergências ideológicas e políticas, reduzindo-as a simples questões administrativas e formalismos disciplinares e, harmonizado com isto, para versões ideológicas encobridoras de realidades muito longe das formulações que oficialmente a eito se manifestavam: função rectora dos sovietes e democratização, apoio aos camponeses pobre e assim seguido. O que deu na imposição desde os centros de poder aos organismos normativos em qualquer graduação, de decisões que contradiziam o próprio funcionamento estabelecido nos estatutos do Partido e mesmo a legalidade constitucional do Estado. Enquanto o XV Congresso (2 ao 19 de Dezembro de 1927) acordou continuar com uma política económica sem desequilíbrios entre os sectores industriais nem tirar as proporções entre a indústria e a agricultura, o Comitê Central em 1928 apressou a industrialização com orientação de preferência para os meios de produção com um abusivo descuido dos de consumo. O Buró Político e nomeadamente Estaline, aos poucos, aceleraram ainda mais as cadências sepultando os acordos do XV Congresso.(189) A XVI Conferência de Abril de 1929 assegurou esta política que até 1930 não fora aprovada polo XVI Congresso, dissipando os acordos do XV com uma estrategia radicalmente oposta ao aprovado três anos quase não.
Poder-se-ia, daquela, interpretar que foram os fados os que empurraram à Revolução para o escuro, triste e sanguinolento beco onde atolou? Uma interpretação nesta via seria mística e dum fraco servilismo com as circunstâncias. Que a URSS ficou condenada para uma acumulação socialista primitiva sabemo-lo bem desde o Preobrazhenski,(190) mas seria errado, todavia, que tirássemos de aí finalmente que a acumulação tivesse que dar em resultado fatal a fusão numa camada social privilegiada dos aparelhos do Estado, das molas económicas e das alavancas de fundamento do Partido e que a acumulação socialista desse em conseqüência um iniludível rebaixamento das condições vitais dos operários e dos lavradores até os engolir e engrunhir. No entanto ao contrário, foram estas horríveis condições económicas as que robusteceram ferreamente o estalinismo. O Estado furtou de coacção a gestão dos interesses comuns apoderando-se violentamente das funções dos autônomos corpos organizados dos trabalhadores e lavradores por uma tenaz de coerção e de fraqueza, subordinando as anelações da generalidade aos duma cambada. Órgão omnímodo e despótico, pudo alçar-se sobre o envasamento duma imensa humanidade lavradora e dumas cidades ilhadas nesse interminável mar, transformadas polos acontecimentos históricos em agrupações meio-parasitárias de centros administrativos e militares.
Mas, poderia perguntar qualquer, era isso inevitável? Lenine gostava porfiar que não há situações sem saída, e a luita incansável da Oposição de Esquerda assim o avalia. Uma reação dos quadros bolcheviques pudo trocar de rumo o barco aquele, inclinando a proa do partido na direcção donde vinha o vento favorável para a revolução proletária na União Soviética e no mundo. Argumentar que Trotski e os oposicionistas sob-estimaram o Thermidor e os factores objectivos que empurravam para uma “acumulação burocrática”, envolve a superestimação dos burocratas e, disso, que estes sempre tiveram razão. Por isso é que Lukács, como já sublinhamos, teimou:
“não havia ninguém naquela época em condições de proporcionar uma perspectiva rica em conseqüências teóricas e aplicáveis aos problemas de fases ulteriores”.
Os oposicionistas bolcheviques, polo contra, luitaram com o ponto de mira na relativa autonomia dos factores subjectivos que poderiam provocar uma troca das condições políticas e económicas a nível nacional e internacional que arredasse o estalinismo, visto que inclusive no cenário dum estado autenticamente socialista, a consciência da vanguarda do proletariado é primária. Uma reação correcta ter-se-ia dado se a vanguarda tivesse compreendido cabalmente para onde ia a Revolução. As raízes e as conseqüências tarde de mais e bastante dispersadas foram compreendidas. E com estas incompreensões e o caldo de cultivo favorável, a vaga do trunfo dos déspotas sobre o proletariado.
A ferocidade com que Estaline liquidou os seus velhos aliados fraccionais: Zinoviev, Kamenev e Bukharine, aos obreiros, artistas, ingenierios, intelectuais e simples militantes comunistas, não é mais que reconhecimento de que para Estaline próprio o regime que tinha montado andava de cote no gume da navalha. Para manter a ficção de serem herdeiro directo do bolchevismo e de Lenine, entanto expropriava politicamente o proletariado e os camponeses pobres, revertia o internacionalismo, tão caro à tradição do Partido, num pequeno-burguês socialismo num só país e reforçava a grande falsidade com um feroz terror de estado policiado.
Um Contributo Imorredoiro
Há que voltar muitas vezes às estrênuas e arrepiantes palavras de quem fora chefe da rede de espionagem soviética na Alemanha nazi, Leopold Domb-Trepper:
A revolução degenerada engendrara um sistema de terror e horror, na que eram escarnecidos os ideais socialistas no nome dum dogma fossilizado que os verdugos ainda tinham o descaramento de chamar Marxismo.
E malgrado, dilacerados, mas dóceis, seguíramos esmiuçando a engrenagem que tínhamos posto em marcha com as nossas próprias mãos. Como rodas do mecanismo, aterrorizados até o extravio, converteramos-nos em instrumento da nossa própria submissão. Todos os que não se ergueram contra a máquina estalinista são responsáveis, coletivamente responsáveis dos seus crimes. Também não me eu liberto deste veredicto.
Mas, quem daquela protestou? Quem se ergueu para gritar o seu desgosto?
Os trotskistas podem reivindicar esta honra. Em semelhança do seu líder, que pagou a sua teimosia com um golpe de piolete, os trotskistas combateram totalmente o estalinismo e foram os únicos que o fizeram. Na época das grandes purgas, já só podiam berrar a sua rebeldia nas imensidades geadas, aonde os conduziram para melhor exterminá-los. Nos campos de concentração, a sua conduta foi sempre digna e mesmo exemplar. Mas as suas vozes perderam-se na tundra da Sibéria.
Hoje em dia os trotskistas têm o direito de acusar os que antanho coraram os oulidos de morte dos lobos. Que não esqueçam, porém, que possuíam sobre nós a imensa vantagem de dispor dum sistema político coerente, susceptível de substituir o estalinismo, e ao que podiam agarrar-se no meio da profunda miséria da revolução traída. Os trotskistas não “confessavam”, porque sabiam que as suas confissões não serviriam nem ao partido nem ao socialismo.(191)
Este magistral volume de Trotski expõe com clareza não habitual a lide contra o descarrilamento da revolução operária, o duro combate contra a urgência burocrática por conduzir os combóios da emancipação para trilhos sem saída. Explica que a briga política desenvolvida vinha determinada por correlações de forças de classe desfavoráveis para a vanguarda proletária, ao passo que o autor cumpria a obriga de honesto e incansável revolucionário de ajustar as contas a tanto enleamento com uma seriedade e qualidade além do comum. Anos mais tarde haveria escrever na Revolução Traída, súmula do seu pensamento, sobre a burocracia estalinista:
Temos definido o Termidor soviético como a vitória da burocracia sobre as massas. Tentámos mostrar quais as condições históricas desta vitória. A vanguarda revolucionária do proletariado foi absorvida em parte polos serviços do Estado e, pouco a pouco, desmoralizada, em parte destruída na guerra civil, em parte eliminada e esmagada. As massas, fadigadas e desiludidas, nada mais apresentavam do que indiferença polo que se passava nos meios dirigentes. Estas condições, por importantes que sejam, de modo algum bastam para nos explicar como a burocracia conseguiu elevar-se acima da sociedade e tomar nas mãos por muito tempo os destinos desta; a sua vontade seria unicamente, em qualquer caso, insuficiente; a formação duma nova camada social deve assentar em causas sociais mais profundas.(192)
Enquanto, “o espectro da revolução acossava as noites de Macbeth-Estaline, que procurava se resguardar dele, aos olhos da classe operária e da juventude instruídas no culto à Revolução de Outubro, com a ajuda da matança e dos enfeites do crime, ao mesmo tempo em que se amparava proporcionando empregos públicos e privilégios a dezenas de milhares de candidatos. Estaline, fruto monstruoso e parasitário dum avanço não interrompido para a revolução mundial, «traía» a revolução ao batalhar, no nome dos privilégios que encarnava, o profundo movimento da revolução obreira mundial, tanto na URSS como nos países capitalistas”,(193) os povos soviéticos laiavam a morte de Lenine:
“Se Lenine vivesse!... Quantas vezes não terei escuitado semelhante queixa nos dias que passei na Rússia... Se Lenine vivesse –disseram-me— não se tivesse trançado a unidade do partido... Se Lenine vivesse, ele, que sabia antever os problemas e adiantar-se aos acontecimentos, não se houvesse deixado surpreender por estes conflitos que com tanta freqüência estalam. Lenine dava a sensação de ser superior aos problemas. De dominá-los. Agora, ao contrário, são os problemas que dominam os homens.”(194)
A luita levada até o derradeiro fôlego por Trotski contra o estalinismo para endireitar o calvário dos povos projectou uma labareda de fulgor tal que não perdeu intensidade sessenta anos após o seu assassinato. Rematando Trotski o 20 de Agosto de 1 940 a reacção termidoriana rendeu, ao final, a mais alta homenagem ao Marxismo ao tentar clausular a Revolução terminando com a sua vida.
“Quem com os seus próprios olhos enxergou a BelezaCedeu nos braços da morte.”(195)
Não se pode entender, em nossa opinião, nem o Marxismo do tempo presente, nem a trágica história do século XX(196), sem conhecer a sério, a vida e a obra deste combatente incansável. É justamente no estudo sobre a sua vida e obra, num pretérito assaz complexo que traduze um presente bem enguedelhado, que se pode inaugurar um novo capítulo que afaste da barbárie o porvir da humanidade.
Este livro de batalha nas entranhas do monstro, esforço imenso para pôr sobre os pés os alicerçados princípios do Marxismo: o internacionalismo proletário, a democracia obreira e a autonomia das organizações dos operários defronte a qualquer movimento burguês, chamem-se como se chamar(197) é, simultaneamente, um poderoso latejo desde o passado para uma acção libertadora das espessas trevas da opressão e uma fulgente labareda arremessada ao futuro.
A humanidade ainda não chegou à descoberta do método epidural para o parto sem dor no domínio das transformações sociais. Procurar na abreviação dos sofrimentos para “que podam brincar os nenos ledamente”,(198) como escrevera ainda não há muito um grande poeta galego, mais que útil, é urgente.
Anda um espectro pola Europa, polo mundo, o espectro do Comunismo, e nada nem ninguém poderá esconjurá-lo já.
José André Lôpez Gonçâlez
24 de Julho de 2001
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