Segunda Parte
Capítulo VII - Lenine na tribuna
A partir de Outubro, os fotógrafos "captaram" Lenine muitas vezes; foi igualmente "filmado". A sua voz foi gravada em discos de fonógrafo. Os seus discursos estenografados e impressos. Possuíamos assim todos os elementos sobre Vladimir Ilitch. Mas eram só elementos. A personalidade viva apenas se encontra na combinação sempre dinâmica desses elementos que se não presta a repetição.
Quando procuro imaginar, despertar em mim a primeira impressão que produzia Lenine na tribuna, vejo um homem de constituição sólida, um corpo de uma grande maleabilidade; ouço uma voz igual, fluente, muito rápida, um pouco gutural, que não se detém, cujo discurso não tem ou quase não tem pausas, nem, de início, uma entoação particular.
Habitualmente, as primeiras frases exprimem ideias gerais; o tom é o de um homem que apalpa o auditório; o corpo do orador parece não ter ainda encontrado o equilíbrio; o gesto carece de precisão; o olhar está absorvido pelo pensamento interior; o rosto é um tanto ou quanto tristonho e como que contrariado; a ideia procura o meio de atingir a assistência.
Este período inicial dura mais ou menos tempo segundo a composição do auditório, o assunto versado, o estado de espírito do orador.
Mas eis que entra na linha, engrena. O tema começa desenhar-se. O orador inclina para a frente a parte superior do corpo, enfiando os polegares nas cavas do colete. Imediatamente ao fazer este duplo gesto, erguem-se a cabeça e os braços. A cabeça não parece assim muito grande neste corpo baixo, mas fortemente constituído, equilibrado, rítmico. O que parece enorme é a testa, são as saliências desnudadas do crânio. Os braços são muito móveis, mas sem nervosismo, sem movimentos inúteis. O pulso é largo, os dedos curtos, a mão plebeia, vigorosa. Encontram-se nesta mão os traços da bonomia corajosa repetidos no conjunto da sua estrutura e que inspiram confiança.
Todavia, para que seja possível apercebermo-nos deste facto, é preciso que o orador tenha tido tempo de se iluminar por dentro, o que sucede quando adivinhou a malícia do adversário, ou quando conseguiu fazê-lo cair na armadilha.
Então, por debaixo da forte protuberância da testa e do crânio, destacam-se os olhos de Lenine, de que algo restou numa fotografia bastante feliz - datando de l9l9.
Ao surpreender este olhar, até o ouvinte mais indiferente ficava de sobreaviso esperando a continuação. Os malares angulosos iluminavam-se e adoçavam nestes momentos com uma indulgência sagaz, sob a qual se adivinhava um grande conhecimento dos homens, das relações sociais, da situação, conhecimento que ia até ao âmago das coisas. A parte inferior do rosto, de barba arruivada, já um pouco grisalha, ficava de certo modo na sombra. A voz adoçava-se, tornava-se muito suave e, por momentos, maliciosamente insinuante.
Mas eis que o orador introduz no seu discurso a objecção imaginada por um contraditor, ou qualquer frase mal intencionada extraída de um artigo do inimigo. Antes mesmo de ter dissecado o pensamento do adversário, faz-vos compreender que a objecção é infundada, superficial, falsa. Retirando os polegares das cavas do colete, lança o corpo ligeiramente para trás, recua com passos miúdos como que para ganhar espaço e tomar lanço e, umas vezes ironicamente, outras com um ar desesperado, encolhe os ombros maciços e abre os braços, as mãos, afastando os polegares de um modo expressivo.
Condena o adversário, torna-o alvo de troça ou crucifica-o - conforme o homem de que se trata e conforme a ocasião - antes mesmo de o ter refutado.
O interlocutor fica prevenido, fica a saber que espécie de prova deve esperar e em que sentido deve preparar o seu pensamento.
Inicia-se seguidamente a ofensiva lógica. A mão esquerda volta a colocar-se quer na cava do colete, quer mais frequente- mente no bolso da calça. A direita segue o movimento da exposição, marcando-lhe o ritmo. Nos momentos em que tal se torna necessário, a esquerda vem ajudar a direita. O orador avança sobre o auditório, atinge o bordo do estrado, inclina-se para a frente e, com movimentos curvilíneos dos braços, trabalha a sua própria matéria verbal. Isto significa ter Lenine chegado à expressão do pensamento central, ao ponto essencial de todo o seu discurso. Se no auditório se encontram adversários, levantam-se de vez em quando exclamações hostis e críticas contra o orador. Em nove casos sobre dez as interrupções ficam sem resposta. O orador dirá o que tem a dizer àqueles a que julga ser útil dirigir-se e do modo que lhe parece necessário. Não lhe agrada fazer desvios para replicar a um ou a outro. As saídas rápidas, no decorrer do discurso, não são produto do seu pensamento concentrado. Após as interrupções hostis, apenas a voz se torna mais áspera, o discurso mais compacto, mais apressado, o pensamento mais agudo, o gesto mais brusco.
Não utiliza a exclamação de um adversário senão no caso de ela responder ao desenvolvimento geral do seu pensamento, de poder ajudá-lo a atingir mais depressa a dedução necessária. Mas então as suas réplicas são absolutamente imprevistas pela simplicidade impressionante e de imediato destruidora. Põe a descoberto uma situação, nos casos em que, pelo contrário, se esperava que a mascarasse.
Foi o que sucedeu mais do que uma vez aos mencheviques no primeiro período da revolução, quando acusavam o bolchevismo de violar a democracia e essas acusações mantinham ainda toda a sua frescura.
"Os nossos jornais foram suprimidos! - Pois claro, mas ainda o não foram todos, infelizmente. Em breve os suprimiremos. (Grandes aplausos). A ditadura do proletariado cortará a raiz desta propaganda e evitará esse vergonhoso tráfico do ópio burguês. (Grandes aplausos)"
O orador endireitou-se. Tem as mãos nos bolsos. Não dá qualquer aparência de pose e a sua voz não tem modulações oratórias; em compensação, nota-se-lhe em todo o corpo, na atitude da cabeça... nos lábios cerrados, nos malares, no timbre imperceptivelmente rouco da voz, uma inquebrantável segurança na justeza dos seus actos, na justiça da sua causa. "Se quereis lutar, lutemos, mas como deve ser."
Quando o orador ataca já não o inimigo mas os seus, isso nota-se tanto no tom calmo ,no gesto. O ataque mais furioso mantém, nesse caso, o carácter de um processo para "chamar à razão" as pessoas. Por vezes, a voz do orador pára, quebra-se numa nota alta: isto produz-se quando denuncia com violência algum dos seus, quando quer envergonhá-lo, quando demonstra que o opositor não compreende absolutamente nada do assunto e que foi incapaz de apresentar "o mínimo" motivo, de encontrar "o mais pequeno" fundamento para as suas objecções. Nestas expressões "mínimo" e "mais pequeno" a voz chega, por vezes, a atingir o falsete e é então que se quebra no ar; chegada aí, a tirada mais colérica toma subitamente um tom de bonomia.
O orador meditou antecipadamente a forma de levar a sua ideia até ao fim, até à última dedução prática; a ideia sim, mas não o modo de a expor, não a forma, com a excepção porém de algumas expressões, de algumas "palavras" particularmente concisas, precisas, saborosas, que entram seguidamente na vida política do Partido e do país como moeda sonante que circula por todo o lado. A construção das frases é habitualmente pesada, carregada; uma vem ligar-se, sobrepor-se à outra, ou penetrar nela profundamente. Para os estenógrafos, este género de construção constitui uma experiência penosa que, em seguida, o não é menos para os redactores. Mas, por entre estas frases maciças, por entre o pensamento tenso e autoritário, abre-se vigorosamente um caminho seguro.
Será no entanto verdade que aquele que fala é um marxista profundamente instruído, um teórico ,de consciências económicas, um homem duma imensa erudição? Dir-se-ia, julgar-se-ia, pelo menos em certos momentos, que, ao contrário, se está em presença de um extraordinário autodidacta que conseguiu sozinho, através das suas faculdades naturais, compreender todas estas coisas, que as meteu todas no cérebro, sem qualquer aprendizagem científica, sem qualquer terminologia rigorosa, expondo à sua maneira tudo o que sabe. De onde deriva isto? Do facto do orador, após ter meditado na questão por sua própria conta, voltar a reflectir sobre ela colocando-se no ponto de vista das massas, aplicando ao seu pensamento a experiência das multidões, libertando completamente a sua exposição de toda a estrutura teórica que lhe servira para elaborar o discurso.
No entanto, por vezes, o orador sobe de um modo precipitado a escada das suas ideias, passando por cima de alguns degraus: procede assim quando a conclusão que pretende atingir lhe parece já demasiado clara, demasiado evidente, logo que se torna na prática por demais urgente chegar lá; quando é necessário conduzir os ouvintes a essa conclusão o mais depressa possível.
Mas eis que sente não poderem segui-lo, que a ligação entre ele e o auditório abranda. Corrige-se imediatamente, volta para trás e recomeça a sua ascenção, mas, desta vez, com um ritmo mais calmo, mais medido. A própria voz se modifica, já não se sente o excesso de intensidade do início, envolve-se de cambiantes persuasivos.
Este retorno, este movimento de vai-e-vem prejudica, como é evidente, a construção do discurso. Mas far-se-á um discurso pelo simples prazer da bela construção? Haverá necessidade, num discurso, duma lógica diferente ,daquela que irá determinar a acção?
E quando o orador chega de novo à sua conclusão, agora acompanhado de todos os auditores, não tendo abandonado ninguém pelo caminho, tem-se na sala como que a sensação física do seu sucesso, experimenta-se a alegria reconhecida que marca a completa satisfação do pensamento colectivo.
Nada mais resta do que sublinhar duas ou três vezes para indicar claramente a conclusão, para lhe atribuir vigor, para lhe fornecer uma expressão simples, brilhante, imaginativa, para a imprimir nas memórias; seguidamente, é possível conceder a si próprio e aos outros uma pausa para retomar o fôlego; graceja-se, ri-se, entretanto o pensamento colectivo assimila ainda melhor a aquisição que acabou de fazer.
O humor oratório de Lenine é tão simples como os outros processos utilizados, se é que se pode falar de processos. Porém, não será possível ,encontrar nos seus discursos aquilo a que se chama "espírito" e menos ainda "piadas"; as suas graças são saborosas, inteligíveis para as massas, populares na verdadeira acepção ,da palavra. Se as circunstâncias políticas não inspiram uma inquietação particular, se o auditório se compõe, na sua maioria, de "fiéis", não repugna ao orador uma certa "brincadeira". O auditório ouve com prazer essas facécias maliciosamente ingénuas, esses "ataques" amavelmente impiedosos; percebe-se que não se trata apenas de proferir palavras e de fazer rir, mas sim que tudo isso conduz ao mesmo objectivo.
Quando o orador recorre à brincadeira, a parte inferior do rosto torna-se mais saliente, sobretudo a boca, cujo riso é contagioso. As rugas da testa e do crânio parecem esbater-se; o olhar deixa de perscrutar e ilumina-se de contentamento; acentua-se a pronúncia gutural; a tensão vigorosa do pensamento másculo amolece com bom humor e risonha bonomia.
Nos discursos de Lenine, como em todas as suas tarefas, a característica que se manifesta essencialmente é a tensão dirigida para o objectivo. O orador não se preocupa em construir uma arenga; procura apenas conduzir a uma conclusão que apele aos actos.
Aborda os auditores de diversas maneiras; explica-lhes os factos, procura convencê-los, vitupera, brinca, persuade de novo, explica mais uma vez. O que faz a unidade do seu discurso não é um plano previamente estabelecido, é um objectivo prático, nitidamente definido, rigorosamente marcado para o momento presente, é uma ideia cujo princípio deve entrar e alojar-se no espírito do auditório.
O humor de Lenine subordina-se a este fim essencial. As suas graças são utilitárias. A menor "expressão" picante tem um destino prático: é preciso castigar estes, necessário refrear aqueles. Entram então em jogo expressões que ficaram muitas vezes no vocabulário da nossa política. Antes de se lançar numa das suas tiradas, o orador descreve alguns círculos preparatórios, como se procurasse um ponto para as pousar. Encontrado esse ponto, ajusta o bico do prego, afasta um pouco para ver melhor e, dum gesto largo, assenta a primeira martelada na cobertura que pretende perfurar: primeiro uma pancada, depois outra, depois muitas outras - até que o prego tenha entrado completamente, de tal maneira que é por vezes muito difícil arrancá-lo mais tarde, quando já não é necessário. Nessa altura, proferindo uma outra graça, Lenine começará a martelar a cabeça do prego, de um lado para o outro, para a abafar; e quando o tiver arrancado, lançá-lo-á ao ferro-velho dos arquivos, o que causará grande tristeza àqueles que já se tinham habituado a este enfeite, inútil a partir de agora.
Mas eis que o discurso chega ao fim. Fazem-se os últimos cálculos, e as conclusões são fortemente sublinhadas. O orador tem o ar de um operário que sai esgotado do seu trabalho, mas que se sente feliz por ter executado essa tarefa. Passa de tempos a tempos a mão sobre o crânio desnudado, onde aparecem pequenas gotas de suor. A voz já não tem a mesma veemência, extingue-se qual brasa em vias de consumir-se. É possível acabar. Não devemos porém esperar esse ar de vitória que coroa habitualmente os discursos e sem o qual parece que não se pode descer da tribuna. Aos outros é indispensável um final brilhante; Lenine não precisa disso. Não termina as suas arengas como um profissional: acaba o seu trabalho e põe um ponto final. "Se compreendermos isto, se fizermos aquilo, seguramente venceremos..." Esta é com frequência a frase final. Ou então: "Eis o que queria dizer..." - e nada mais. E estas últimas palavras, totalmente de acordo com a natureza. da eloquência de Lenine e com a sua própria natureza, não esfriam de modo algum o auditório. Pelo contrário, após esta conclusão "sem efeitos", "cinzenta", a multidão parece compreender de novo, através duma chispa do pensamento, tudo o que Lenine acaba de oferecer com as suas palavras, e é então que rebentam as tempestades de reconhecimento e de entusiasmo denominadas: aplausos.
Mas recolhendo já o monte dos papéis, Lenine sai rapidamente do estrado, para evitar o inevitável. Encolhe ligeiramente a cabeça entre os ombros, encosta o queixo ao peito, dissimula os olhos sob as sobrancelhas, enquanto o bigode ,se eriça com um ar quase colérico, no lábio superior, fazendo um trejeito de descontentamento. Aumentam as salvas de palmas e de aclamações como vagas rolando umas sobre as outras: "Viva... Lenine... chefe... Ilitch..." Sob o brilho das lâmpadas eléctricas, o crânio deste homem único, vergastado de todos os lados pelas vagas irresistíveis, cintila ao passar. E quando o turbilhão do entusiasmo parece ter atingido ,o seu furor extremo, de repente, através do ribombar, do ressoar, do marulhar, eleva-se uma voz jovem, vibrante, feliz como o grito da sereia tendendo a tempestade: Viva Ilitch! E então, das mais fundas frementes profundezas da alma colectiva, do amor e do entusiasmo popular, sobe em resposta, qual formidável ciclone, um clamor geral, indefinível, indiviso, que abala as abóbadas: Viva Lenine!
Capítulo VII - Lenine na tribuna
A partir de Outubro, os fotógrafos "captaram" Lenine muitas vezes; foi igualmente "filmado". A sua voz foi gravada em discos de fonógrafo. Os seus discursos estenografados e impressos. Possuíamos assim todos os elementos sobre Vladimir Ilitch. Mas eram só elementos. A personalidade viva apenas se encontra na combinação sempre dinâmica desses elementos que se não presta a repetição.
Quando procuro imaginar, despertar em mim a primeira impressão que produzia Lenine na tribuna, vejo um homem de constituição sólida, um corpo de uma grande maleabilidade; ouço uma voz igual, fluente, muito rápida, um pouco gutural, que não se detém, cujo discurso não tem ou quase não tem pausas, nem, de início, uma entoação particular.
Habitualmente, as primeiras frases exprimem ideias gerais; o tom é o de um homem que apalpa o auditório; o corpo do orador parece não ter ainda encontrado o equilíbrio; o gesto carece de precisão; o olhar está absorvido pelo pensamento interior; o rosto é um tanto ou quanto tristonho e como que contrariado; a ideia procura o meio de atingir a assistência.
Este período inicial dura mais ou menos tempo segundo a composição do auditório, o assunto versado, o estado de espírito do orador.
Mas eis que entra na linha, engrena. O tema começa desenhar-se. O orador inclina para a frente a parte superior do corpo, enfiando os polegares nas cavas do colete. Imediatamente ao fazer este duplo gesto, erguem-se a cabeça e os braços. A cabeça não parece assim muito grande neste corpo baixo, mas fortemente constituído, equilibrado, rítmico. O que parece enorme é a testa, são as saliências desnudadas do crânio. Os braços são muito móveis, mas sem nervosismo, sem movimentos inúteis. O pulso é largo, os dedos curtos, a mão plebeia, vigorosa. Encontram-se nesta mão os traços da bonomia corajosa repetidos no conjunto da sua estrutura e que inspiram confiança.
Todavia, para que seja possível apercebermo-nos deste facto, é preciso que o orador tenha tido tempo de se iluminar por dentro, o que sucede quando adivinhou a malícia do adversário, ou quando conseguiu fazê-lo cair na armadilha.
Então, por debaixo da forte protuberância da testa e do crânio, destacam-se os olhos de Lenine, de que algo restou numa fotografia bastante feliz - datando de l9l9.
Ao surpreender este olhar, até o ouvinte mais indiferente ficava de sobreaviso esperando a continuação. Os malares angulosos iluminavam-se e adoçavam nestes momentos com uma indulgência sagaz, sob a qual se adivinhava um grande conhecimento dos homens, das relações sociais, da situação, conhecimento que ia até ao âmago das coisas. A parte inferior do rosto, de barba arruivada, já um pouco grisalha, ficava de certo modo na sombra. A voz adoçava-se, tornava-se muito suave e, por momentos, maliciosamente insinuante.
Mas eis que o orador introduz no seu discurso a objecção imaginada por um contraditor, ou qualquer frase mal intencionada extraída de um artigo do inimigo. Antes mesmo de ter dissecado o pensamento do adversário, faz-vos compreender que a objecção é infundada, superficial, falsa. Retirando os polegares das cavas do colete, lança o corpo ligeiramente para trás, recua com passos miúdos como que para ganhar espaço e tomar lanço e, umas vezes ironicamente, outras com um ar desesperado, encolhe os ombros maciços e abre os braços, as mãos, afastando os polegares de um modo expressivo.
Condena o adversário, torna-o alvo de troça ou crucifica-o - conforme o homem de que se trata e conforme a ocasião - antes mesmo de o ter refutado.
O interlocutor fica prevenido, fica a saber que espécie de prova deve esperar e em que sentido deve preparar o seu pensamento.
Inicia-se seguidamente a ofensiva lógica. A mão esquerda volta a colocar-se quer na cava do colete, quer mais frequente- mente no bolso da calça. A direita segue o movimento da exposição, marcando-lhe o ritmo. Nos momentos em que tal se torna necessário, a esquerda vem ajudar a direita. O orador avança sobre o auditório, atinge o bordo do estrado, inclina-se para a frente e, com movimentos curvilíneos dos braços, trabalha a sua própria matéria verbal. Isto significa ter Lenine chegado à expressão do pensamento central, ao ponto essencial de todo o seu discurso. Se no auditório se encontram adversários, levantam-se de vez em quando exclamações hostis e críticas contra o orador. Em nove casos sobre dez as interrupções ficam sem resposta. O orador dirá o que tem a dizer àqueles a que julga ser útil dirigir-se e do modo que lhe parece necessário. Não lhe agrada fazer desvios para replicar a um ou a outro. As saídas rápidas, no decorrer do discurso, não são produto do seu pensamento concentrado. Após as interrupções hostis, apenas a voz se torna mais áspera, o discurso mais compacto, mais apressado, o pensamento mais agudo, o gesto mais brusco.
Não utiliza a exclamação de um adversário senão no caso de ela responder ao desenvolvimento geral do seu pensamento, de poder ajudá-lo a atingir mais depressa a dedução necessária. Mas então as suas réplicas são absolutamente imprevistas pela simplicidade impressionante e de imediato destruidora. Põe a descoberto uma situação, nos casos em que, pelo contrário, se esperava que a mascarasse.
Foi o que sucedeu mais do que uma vez aos mencheviques no primeiro período da revolução, quando acusavam o bolchevismo de violar a democracia e essas acusações mantinham ainda toda a sua frescura.
"Os nossos jornais foram suprimidos! - Pois claro, mas ainda o não foram todos, infelizmente. Em breve os suprimiremos. (Grandes aplausos). A ditadura do proletariado cortará a raiz desta propaganda e evitará esse vergonhoso tráfico do ópio burguês. (Grandes aplausos)"
O orador endireitou-se. Tem as mãos nos bolsos. Não dá qualquer aparência de pose e a sua voz não tem modulações oratórias; em compensação, nota-se-lhe em todo o corpo, na atitude da cabeça... nos lábios cerrados, nos malares, no timbre imperceptivelmente rouco da voz, uma inquebrantável segurança na justeza dos seus actos, na justiça da sua causa. "Se quereis lutar, lutemos, mas como deve ser."
Quando o orador ataca já não o inimigo mas os seus, isso nota-se tanto no tom calmo ,no gesto. O ataque mais furioso mantém, nesse caso, o carácter de um processo para "chamar à razão" as pessoas. Por vezes, a voz do orador pára, quebra-se numa nota alta: isto produz-se quando denuncia com violência algum dos seus, quando quer envergonhá-lo, quando demonstra que o opositor não compreende absolutamente nada do assunto e que foi incapaz de apresentar "o mínimo" motivo, de encontrar "o mais pequeno" fundamento para as suas objecções. Nestas expressões "mínimo" e "mais pequeno" a voz chega, por vezes, a atingir o falsete e é então que se quebra no ar; chegada aí, a tirada mais colérica toma subitamente um tom de bonomia.
O orador meditou antecipadamente a forma de levar a sua ideia até ao fim, até à última dedução prática; a ideia sim, mas não o modo de a expor, não a forma, com a excepção porém de algumas expressões, de algumas "palavras" particularmente concisas, precisas, saborosas, que entram seguidamente na vida política do Partido e do país como moeda sonante que circula por todo o lado. A construção das frases é habitualmente pesada, carregada; uma vem ligar-se, sobrepor-se à outra, ou penetrar nela profundamente. Para os estenógrafos, este género de construção constitui uma experiência penosa que, em seguida, o não é menos para os redactores. Mas, por entre estas frases maciças, por entre o pensamento tenso e autoritário, abre-se vigorosamente um caminho seguro.
Será no entanto verdade que aquele que fala é um marxista profundamente instruído, um teórico ,de consciências económicas, um homem duma imensa erudição? Dir-se-ia, julgar-se-ia, pelo menos em certos momentos, que, ao contrário, se está em presença de um extraordinário autodidacta que conseguiu sozinho, através das suas faculdades naturais, compreender todas estas coisas, que as meteu todas no cérebro, sem qualquer aprendizagem científica, sem qualquer terminologia rigorosa, expondo à sua maneira tudo o que sabe. De onde deriva isto? Do facto do orador, após ter meditado na questão por sua própria conta, voltar a reflectir sobre ela colocando-se no ponto de vista das massas, aplicando ao seu pensamento a experiência das multidões, libertando completamente a sua exposição de toda a estrutura teórica que lhe servira para elaborar o discurso.
No entanto, por vezes, o orador sobe de um modo precipitado a escada das suas ideias, passando por cima de alguns degraus: procede assim quando a conclusão que pretende atingir lhe parece já demasiado clara, demasiado evidente, logo que se torna na prática por demais urgente chegar lá; quando é necessário conduzir os ouvintes a essa conclusão o mais depressa possível.
Mas eis que sente não poderem segui-lo, que a ligação entre ele e o auditório abranda. Corrige-se imediatamente, volta para trás e recomeça a sua ascenção, mas, desta vez, com um ritmo mais calmo, mais medido. A própria voz se modifica, já não se sente o excesso de intensidade do início, envolve-se de cambiantes persuasivos.
Este retorno, este movimento de vai-e-vem prejudica, como é evidente, a construção do discurso. Mas far-se-á um discurso pelo simples prazer da bela construção? Haverá necessidade, num discurso, duma lógica diferente ,daquela que irá determinar a acção?
E quando o orador chega de novo à sua conclusão, agora acompanhado de todos os auditores, não tendo abandonado ninguém pelo caminho, tem-se na sala como que a sensação física do seu sucesso, experimenta-se a alegria reconhecida que marca a completa satisfação do pensamento colectivo.
Nada mais resta do que sublinhar duas ou três vezes para indicar claramente a conclusão, para lhe atribuir vigor, para lhe fornecer uma expressão simples, brilhante, imaginativa, para a imprimir nas memórias; seguidamente, é possível conceder a si próprio e aos outros uma pausa para retomar o fôlego; graceja-se, ri-se, entretanto o pensamento colectivo assimila ainda melhor a aquisição que acabou de fazer.
O humor oratório de Lenine é tão simples como os outros processos utilizados, se é que se pode falar de processos. Porém, não será possível ,encontrar nos seus discursos aquilo a que se chama "espírito" e menos ainda "piadas"; as suas graças são saborosas, inteligíveis para as massas, populares na verdadeira acepção ,da palavra. Se as circunstâncias políticas não inspiram uma inquietação particular, se o auditório se compõe, na sua maioria, de "fiéis", não repugna ao orador uma certa "brincadeira". O auditório ouve com prazer essas facécias maliciosamente ingénuas, esses "ataques" amavelmente impiedosos; percebe-se que não se trata apenas de proferir palavras e de fazer rir, mas sim que tudo isso conduz ao mesmo objectivo.
Quando o orador recorre à brincadeira, a parte inferior do rosto torna-se mais saliente, sobretudo a boca, cujo riso é contagioso. As rugas da testa e do crânio parecem esbater-se; o olhar deixa de perscrutar e ilumina-se de contentamento; acentua-se a pronúncia gutural; a tensão vigorosa do pensamento másculo amolece com bom humor e risonha bonomia.
Nos discursos de Lenine, como em todas as suas tarefas, a característica que se manifesta essencialmente é a tensão dirigida para o objectivo. O orador não se preocupa em construir uma arenga; procura apenas conduzir a uma conclusão que apele aos actos.
Aborda os auditores de diversas maneiras; explica-lhes os factos, procura convencê-los, vitupera, brinca, persuade de novo, explica mais uma vez. O que faz a unidade do seu discurso não é um plano previamente estabelecido, é um objectivo prático, nitidamente definido, rigorosamente marcado para o momento presente, é uma ideia cujo princípio deve entrar e alojar-se no espírito do auditório.
O humor de Lenine subordina-se a este fim essencial. As suas graças são utilitárias. A menor "expressão" picante tem um destino prático: é preciso castigar estes, necessário refrear aqueles. Entram então em jogo expressões que ficaram muitas vezes no vocabulário da nossa política. Antes de se lançar numa das suas tiradas, o orador descreve alguns círculos preparatórios, como se procurasse um ponto para as pousar. Encontrado esse ponto, ajusta o bico do prego, afasta um pouco para ver melhor e, dum gesto largo, assenta a primeira martelada na cobertura que pretende perfurar: primeiro uma pancada, depois outra, depois muitas outras - até que o prego tenha entrado completamente, de tal maneira que é por vezes muito difícil arrancá-lo mais tarde, quando já não é necessário. Nessa altura, proferindo uma outra graça, Lenine começará a martelar a cabeça do prego, de um lado para o outro, para a abafar; e quando o tiver arrancado, lançá-lo-á ao ferro-velho dos arquivos, o que causará grande tristeza àqueles que já se tinham habituado a este enfeite, inútil a partir de agora.
Mas eis que o discurso chega ao fim. Fazem-se os últimos cálculos, e as conclusões são fortemente sublinhadas. O orador tem o ar de um operário que sai esgotado do seu trabalho, mas que se sente feliz por ter executado essa tarefa. Passa de tempos a tempos a mão sobre o crânio desnudado, onde aparecem pequenas gotas de suor. A voz já não tem a mesma veemência, extingue-se qual brasa em vias de consumir-se. É possível acabar. Não devemos porém esperar esse ar de vitória que coroa habitualmente os discursos e sem o qual parece que não se pode descer da tribuna. Aos outros é indispensável um final brilhante; Lenine não precisa disso. Não termina as suas arengas como um profissional: acaba o seu trabalho e põe um ponto final. "Se compreendermos isto, se fizermos aquilo, seguramente venceremos..." Esta é com frequência a frase final. Ou então: "Eis o que queria dizer..." - e nada mais. E estas últimas palavras, totalmente de acordo com a natureza. da eloquência de Lenine e com a sua própria natureza, não esfriam de modo algum o auditório. Pelo contrário, após esta conclusão "sem efeitos", "cinzenta", a multidão parece compreender de novo, através duma chispa do pensamento, tudo o que Lenine acaba de oferecer com as suas palavras, e é então que rebentam as tempestades de reconhecimento e de entusiasmo denominadas: aplausos.
Mas recolhendo já o monte dos papéis, Lenine sai rapidamente do estrado, para evitar o inevitável. Encolhe ligeiramente a cabeça entre os ombros, encosta o queixo ao peito, dissimula os olhos sob as sobrancelhas, enquanto o bigode ,se eriça com um ar quase colérico, no lábio superior, fazendo um trejeito de descontentamento. Aumentam as salvas de palmas e de aclamações como vagas rolando umas sobre as outras: "Viva... Lenine... chefe... Ilitch..." Sob o brilho das lâmpadas eléctricas, o crânio deste homem único, vergastado de todos os lados pelas vagas irresistíveis, cintila ao passar. E quando o turbilhão do entusiasmo parece ter atingido ,o seu furor extremo, de repente, através do ribombar, do ressoar, do marulhar, eleva-se uma voz jovem, vibrante, feliz como o grito da sereia tendendo a tempestade: Viva Ilitch! E então, das mais fundas frementes profundezas da alma colectiva, do amor e do entusiasmo popular, sobe em resposta, qual formidável ciclone, um clamor geral, indefinível, indiviso, que abala as abóbadas: Viva Lenine!
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