Descreve o presente volume as etapas da luita de há já seis anos que a fracção dirigente prossegue na URSS contra a oposição de esquerda (bolchevique-leninista) em geral e contra o autor deste livro em particular.
Tem por objecto grande parte desta obra rebater as incriminações e as grosseiras imputações mentirosas dirigidas pessoalmente contra mim. Qual a razão, pois, que me faculta a importunar a atenção do leitor com estes documentos? Não pode fundamentar por si só a publicação deste livro, o facto de ter estado a minha vida aderida aos acontecimentos da Revolução. Nada haveria de instrutivo na narração desta luita se a pugna da fracção de Estaline contra mim fosse apenas um combate pessoal polo poder, pois na história parlamentar abundam as lides entre grupos e indivíduos em nome do poder. Bem outra é a razão: é que a peleja polo poder dos grupos e dos indivíduos na URSS faz parte indissolúvel das diversas fases da Revolução de Outubro.
Em época alguma o determinismo histórico se patenteia com tanta veemência como nos períodos revolucionários; de facto, este, põe em evidência e eleva os problemas e as contradições das relações de classes ao mais alto grau de acuidade. A lida ideológica torna-se, nesses períodos, a mais directa arma das classes inimigas ou das fracções duma só e mesma classe. Precisamente foi este o carácter que revestiu a luita contra o «trotskismo» na Revolução russa. É, neste caso, tão inequívoco o elo que ata argumentos, por vezes essencialmente escolásticos, à procura de proveito material de certas classes ou camadas sociais, que há chegar o dia em que esta experiência histórica terá de ser objecto dum capítulo exclusivo nos manuais escolares de materialismo histórico.
Devido à doença e morte de Lenine, a Revolução de Outubro divide-se em dous ciclos que se irão dissemelhando um do outro quanto mais nos arredamos dela. Foi o primeiro o da tomada do poder, da instituição e fortalecimento da ditadura do proletariado, da sua defesa militar, nas medidas indispensáveis a que se teve que recorrer para assentar a sua via económica. Nesse momento todo o partido tem a consciência de ser o pilar da ditadura do proletariado; desse conhecimento íntimo é que tira a sua segurança interna.
Caracteriza-se o segundo, pola persistência no país dum crescente número de princípios de dualidade de poder. O proletariado, que conquistou o poder em Outubro, por efeito duma série de causas tanto materiais quanto morais de ordem externa como interna, foi relegado e arredado para segundo plano. Ao lado dele, detrás dele, mesmo por vezes à sua frente, levantam-se outros elementos, outras camadas sociais e fracções de outras classes, que açambarcam uma boa parte, se não do poder, polo menos duma influência sobre este. São essas outras camadas: funcionários do Estado, dos sindicatos profissionais e cooperativas, profissões liberais e intermediários, que compõem um sistema de vasos comunicantes. Estas camadas, ao mesmo tempo, estão desligadas do proletariado ou afastam-se cada vez mais dele, polas suas condições de existência, polos hábitos e modos de pensar. Nessa camada, em definitivo, têm de serem incluídos os funcionários do partido, conforme formam uma casta solidamente constituída que, não tanto polos meios internos do partido, como polos do aparelho do Estado, asseguram a sua própria inamovibilidade.
O poder soviético, pola sua origem e tradições, pola procedência da sua actual força, prossegue a apoiar-se no proletariado, se bem cada vez menos directamente. Mas, através das camadas sociais acima enumeradas, cai cada vez mais na órbita de influência dos interesses burgueses. Esta pressão torna-se tanto mais sensível quanto uma grande porção, não só do aparelho do partido, vem a ser o agente, senão consciente polo menos eficaz, dos concebimentos e das esperanças burguesas. Qualquer que seja a sua falta de vigor interior, a nossa burguesia tem, e com razão, o conhecimento íntimo de ser uma fracção da burguesia mundial e de constituir o mecanismo de transmissão do imperialismo mundial. Mas também a camada inferior burguesa está longe de ser desprezível. Conforme a economia agrícola se desenvolve sobre as bases individuais do mercado, inevitàvelmente abrolha do seu seio uma copiosa pequena burguesia rural. O mujique [camponês] enriquecido, ou o que só pensa enriquecer, e que bate com as barreiras da legislação soviética, é o agente natural dos impulsos latentes bonapartistas. Este facto, provado por toda a evolução da história moderna, foi mais uma vez corroborado pola experiência da República Soviética. Estas são as primeiras causas determinantes dos elementos de dualidade de poder que caracterizam o segundo capítulo da Revolução de Outubro, posterior à morte de Lenine.
Dispensado será manifestar que, mesmo o primeiro período —1917-1923— não é homogéneo de todo em todo. Teve não só movimentos de avanço, mas também recuos. A Revolução fez importantes concessões nesse período também: por um lado à classe camponesa, por outro à burguesia mundial. Brest-Litovsk foi o primeiro retrocesso da Revolução vitoriosa. Depois disso a Revolução reaviou para a frente. Uma séria manobra de retrogradação, por mais parcos que até agora tenham sido os seus resultados práticos foi, no princípio, a política de concessões comerciais e industriais. O maior recuamento foi, no entanto, duma maneira geral, a nova política económica, a NEP. Ao restabelecer o mercado, a NEP, recriou as condições que podem fazer ressuscitar a pequena burguesia. Compendiando, a NEP encerrava as possibilidades de dualidade de poder, contudo inexistentes fora do potencial económico. Desenvolveram só um ímpeto real no segundo capítulo da história de Outubro cujo ponto de partida é geralmente o da doença e morte de Lenine, e princípio da luita contra o «trotskismo».
Escusado será dizer que as concessões, em si mesmas, às classes burguesas não são ainda uma violação da ditadura do proletariado. Em geral, não se deu na história uma dominação quimicamente pura. A burguesia exerce o domínio apoiando-se nas outras classes, submetendo-as, corrompendo-as ou arremedando-as. As reformas sociais em favor dos obreiros, e mais sim, não conformam de maneira alguma uma transgressão à incondicional soberania da burguesia num país. Pode cada capitalista individualmente, decerto, ter a impressão de não ser já o senhor da sua casa — isto é, na sua fábrica — constrangido como é a ter em conta os limites legislativos da sua ditadura económica. Mas estes lindes não têm outra razão que não seja o de segurar e sustentar o domínio de classe no seu conjunto. Os interesses do capitalista isolado a todo o momento entram em contradição com os do Estado capitalista, não só polas questões de legislação social, mas também, no que tem relação com os impostos, a dívida pública, a guerra, a paz, etc. A vantagem continua a ser do conjunto dos interesses da classe. Esta é a única a decidir quais as emendas que pode outorgar sem abalar as bases da sua dominação.
De jeito semelhante põe-se o problema para a ditadura do proletariado. Só poderia existir em meio imaterial uma ditadura de pureza química. O proletariado dirigente é obrigado a contar com as outras classes e, segundo a relação de forças no interior do país ou na areia internacional, a fazer concessões às outras classes para manter a sua dominação. Todo o assunto está em saber quais os limites dados às concessões e qual o grau de conhecimento íntimo com que são feitas.
A nova política económica toldava-se de dous aspectos. Em primeiro lugar, derivava da obriga para o próprio proletariado de fazer uso, com vista à direcção da indústria e, em geral, de toda a economia, dos métodos elaborados polo capitalismo. Em segundo lugar, conforme lhe dava oportunidade para conduzir a economia polas formas de compra e venda que à burguesia lhe são essencialmente próprias, manifestava uma concessão à burguesia e, sobretudo, à pequena burguesia. Devido a uma população rural predominante na Rússia, este segundo aspecto da NEP dimanou duma importância decisiva. Ante a paralisação do desenvolvimento revolucionário nos outros países, a NEP, significando um profundo e duradoiro recuo, era inevitável. Sob a direcção de Lenine aplicámo-la com plena unanimidade. Esta volta para trás foi reconhecida como tal, com pleno conhecimento de todos. O partido, e a classe operária através dele, compreenderam perfeitamente o seu sentido de forma geral. Até certo ponto, a pequena burguesia obteve a possibilidade de acumular. Mas o poder e, por conseqüência, as prerrogativas de precisar as demarcações dessa acumulação continuaram, como antes, nas mãos do proletariado.
Há uma analogia, como já dissemos, entre as reformas sociais que a burguesia dirigente se vê obrigada a fazer no interesse do proletariado e as mercês que faz às classes burguesas o proletariado dirigente. Mas é forçoso assentar esta analogia em quadros históricos bem definidos se queremos evitar erros. Existe desde há séculos o poder burguês, tem um carácter mundial, basea-se numa imensa acumulação de riquezas, arruma um vigoroso conjunto orgánico de instituições, de ligações e de idéias. Séculos de dominação criaram uma qualidade de instinto de dominação que muitas vezes foi, em situações difíceis, um guia seguro para a burguesia. Para o proletariado foram séculos de opressão, os séculos de domínio burguês. A classe dos proletários não tem nem tradições históricas de dominação, nem com maior razão, o instinto de poder. Chegou ao poder num dos países mais pobres e atrasados da Europa. Isso quer dizer que a ditadura do proletariado, na actual etapa e nas condições históricas do tempo presente, está infinitamente menos resguardada do que o poder burguês. Uma política justa, uma consideração acaída dos seus actos e, em particular, das irremediáveis outorgas às classes burguesas são, para o poder soviético, uma questão de vida ou de morte.
Caracteriza-se o capítulo da Revolução de Outubro posterior à morte de Lenine, tanto polo desenvolvimento das forças socialistas como polo ímpeto das capitalistas no interior da economia soviética. A solução depende da sua proporção dinâmica. Assenta mais na evolução quotidiana da vida económica do que na estatística, o controle desta proporção. A profunda crise actual, que paradoxalmente adoptou a forma da penúria de produtos agrícolas num país agrário, é a prova objectiva e certa da fractura das proporções económicas essenciais. Desde o Outono de 1923, no XII Congresso do partido, o autor deste livro tinha avisado para as conseqüências que poderiam advir duma enganosa direcção económica; o atraso da indústria provoca a “tesoura”, isto é, a desproporção entre os preços dos produtos industriais e agrários, facto que, por sua vez, incita a paralisação do desenvolvimento da agricultura. De maneira nenhuma é sinal da irremediabilidade ou, ainda menos, da iminência da queda do regime soviético, o facto de estas conseqüências se terem verificado. Apenas denota –mas de maneira mais imperiosa- a necessidade duma mudança de política económica.
Então a dúvida que se põe é a de saber se a dita direcção é competente para compreender a necessidade duma modificação de política e se, na prática, está em situação de a efectuar. Voltemos, assim, à questão de saber em que grau o poder do Estado se encontra ainda nas mãos do proletariado e do seu partido, isto é, até onde continua a ser o poder da Revolução de Outubro. Dar resposta a priori a esta questão é impossível. Não se rege por princípios mecânicos a política. As forças das classes e dos partidos revelam-se na luita. E ainda está para vir toda a luita. Não pode durar muito a dualidade de poder, quer dizer, a existência paralela do poder ou semi-poder de duas classes antagónicas, como por exemplo, no período de Kerenski. Tal conjuntura tem de achar solução num sentido ou noutro. A asseveração dos anarquistas ou anarquizantes, segundo a qual a URSS é já um país burguês, é rebatida da melhor maneira polo modo de proceder que a própria burguesia interna e estrangeira seguiu a esse respeito. Irem mais alô do que o reconhecimento de elementos de dualidade de poder seria teoricamente falso, perigoso politicamente, mesmo um facto suicida. A questão da dualidade de poder funda-se, portanto, neste momento, em saber quanto se enraizaram as classes burguesas no aparelho do Estado soviético e em que medida enraizaram as idéias e as tendências burguesas no aparelho do partido e do proletariado. Deste grau deriva a liberdade de manobra do partido e a capacidade para a classe obreira de adoptar as medidas precisas de defesa e de ataque.
Não se distingue apenas o segundo capítulo da Revolução de Outubro polo progredimento das posições económicas da pequena burguesia das cidades e dos campos, mas por um encadeamento mais perigoso e agudo de desarmamento teórico e político do proletariado, de par com um acréscimo da segurança a consciência das camadas sociais burguesas. O interesse político das classes pequeno-burguesas em crescimento consistiu e ainda consiste, segundo o estádio por que passam estes processos, em dissimular o mais possível os seus avanços, em disfarçar os seus progressos sob uma aparência soviética protectora, em apresentar as suas conquistas como partes integrantes da edificação socialista. Ao certo alguns progressos, aliás importantes da burguesia, fundamentados na NEP, eram indeclináveis e, por outro lado, necessários para o próprio progresso do socialismo. Mas, exactamente iguais ganhos económicos da burguesia podem atingir toda outra importância e representar um perigo bastante diferente, conforme a classe operária, e, sobretudo o seu partido, tenham uma idéia mais ou menos clara dos decursos e das deslocações que se operam no país e mantenham, mais ou menos com consistência, a direcção nas mãos. A política é uma economia concentrada. A questão económica resolve-se na República soviética, na actual etapa, mais do que nunca, do ponto de vista político.
Não se reduze tanto o vício da política posterior a Lenine em ter feito novas e relevantes concessões às diferentes camadas da burguesia no interior do país, no Ocidente e na Ásia. Foram necessárias ou forçosas algumas destas concessões, polo menos devido a erros prévios. Tais foram as novas permissões, feitas aos kulaks em Abril de 1925: o direito da arrenda da terra e de empregar mão de obra. Foram outras, em si mesmas, erradas, prejudiciais, mesmo funestas. Neste caso está a capitulação perante os agentes burgueses do movimento obreiro britânico e, ainda pior, a rendição perante a burguesia chinesa. Mas o mais notável crime da política posterior a Lenine, a anti-leninista, foi o de expor graves concessões como êxitos do proletariado, os recuos como progressos, o de interpretar a ampliação das dificuldades internas como um avanço vitorioso para uma sociedade socialista nacional.
Esta actuação de desarmamento teórico do partido e de sufocação da espreitadela do proletariado foi encarreirada durante os últimos anos, a coberto da luita contra o «trotskismo». Os alicerces do Marxismo, os métodos essenciais da Revolução de Outubro, as mais notáveis lições de estratégia leninista, foram submetidos a uma rude e veemente revisão, na qual o apressado apuro de ordem e tranqüilidade do renascente pequeno-burguês achou a sua expressão. Tiveram o dom de assanhar acima de tudo as novas camadas sociais conservadoras, a idéia da revolução permanente, isto é, da vinculação indissolúvel e real da República soviética com a marcha da revolução proletária no mundo inteiro, persuadidas intimamente de que a revolução, elevando-as ao primeiro plano, tinha cumprido assim a sua missão.
Leccionam-me, com grande autoridade, os meus críticos das facções social-democrata e democrata, que a Rússia não está «madura» para o socialismo e que Estaline tem toda a razão em reconduzi-la, aos ziguezagues, no rumo do capitalismo. É cousa certa que aquilo a que os social-democratas designam, com real satisfação, o restabelecimento do capitalismo, chama-o Estaline construção do socialismo nacional. Mas como tem em vista o mesmo processo, a variedade terminológica não nos deve encobrir a identidade de fundo. Mesmo aceitando que Estaline leve a cabo a sua tarefa com conhecimento de causa, o que de momento não é o caso, ver-se-ia obrigado apesar de tudo, para adoçar fricções, a dar o nome de socialismo ao capitalismo. Ora, quanto menor ele compreende os problemas históricos essenciais, mais o seu modo de proceder vai seguro neste caminho. A sua cegueira aforra-lhe no caso o recurso à falsidade.
A controvérsia não é, no entanto, de saber se a Rússia é capaz de edificar o socialismo polos seus próprios meios. Para o Marxismo em geral, esta questão não existe. Tudo o que foi dito pola escola estalinista a este respeito é, no plano teórico, do domínio da alquimia e da astrologia. Serve o estalinismo, no melhor das hipóteses, enquanto doutrina, para fazer parte dum museu teórico da história natural. O essencial é se o capitalismo proporciona possibilidades de tirar a Europa do impasse histórico; se é capaz a Índia de libertar-se da escravatura e da miséria sem sair dos quadros dum progresso capitalista pacífico; se a China tem capacidade de atingir, sem revolução e sem guerras, o nível de cultura de América e da Europa; se os Estados-Unidos poderão conter as suas próprias forças produtivas sem abalar a Europa e sem encarreirar para uma terrível catástrofe toda a humanidade. Eis como se põe o argumento do curso posterior da Revolução de Outubro. Se se aceitar que o capitalismo prossegue a ser uma força histórica que progride, com possibilidades para achar as soluções polos seus próprios métodos e meios as propostas essenciais que estão na ordem do dia da história e de fazer prosperar a humanidade mais alguns lances, não se poria, então, a questão de converter a República soviética em país socialista. Deste jeito estaria fatalmente sentenciada à sua destruição a estrutura socialista da Revolução de Outubro, para legar unicamente as conquistas agrárias democráticas. Este recuo da revolução proletária à revolução burguesa seria levado a efeito pola fracção de Estaline, por uma fracção desta fracção, ou seriam necessárias uma ou mais substituições políticas gerais? Estes são problemas que estão em segundo lugar. Manifestei muitas vezes já que a forma política deste movimento regressivo seria, muito possivelmente, o bonapartismo e de maneira nenhuma a democracia. Ora, o indispensável é saber se, enquanto sistema mundial é o capitalismo ainda uma força progressiva. Precisamente nisso é que os nossos opositores social-democratas dão testemunho dum utopismo aflitivo, arcaico, incapaz; dum utopismo reaccionário e não progressista.
A política de Estaline é um «centrismo», isto é, uma tendência que oscila entre a social-democracia e o comunismo. As mais notáveis tentativas «teóricas» da escola de Estaline, que emergiu apenas depois da morte de Lenine, propendem a separar a sorte da República soviética do desenvolvimento revolucionário em geral. Isto equivale a separar a revolução dela própria. O problema teórico dos epígonos, por verbo disso, revestiu a forma duma oposição do «trotskismo» ao leninismo.
Far-se-ia indispensável para fazer desaparecer o carácter internacional do Marxismo, permanecendo-lhe fiel em palavras até nova ordem, voltar as armas, em primeiro lugar, contra os que foram pilares das idéias da Revolução de Outubro e do internacionalismo proletário. Neste caso, o primeiro posto correspondeu a Lenine. Mas Lenine morreu no limiar de dous estádios da Revolução. Por conseqüência não pôde defender a obra da sua vida. Os epigónios pugeram a retalho os seus livros em citações e é com esta arma que combatem o Lenine vivo e ao mesmo tempo erigem-lhe mausoléus, não apenas na Praça Vermelha, mas ainda na própria consciência do partido. Lenine abriu o seu livro O Estado e a Revolução, como se antevisse a fortuna que seria dada em breve às suas idéias, com as seguintes palavras aplicadas ao destino dos grandes revolucionários:
«Procuram convertê-los depois de mortos em ícones inofensivos, canonizá-los por assim dizer, nimbando o seu nome duma auréola de glória para “consolar” as classes oprimidas e para enganá-las, ao mesmo tempo em que se torna infecundo o mais essencial e importante dos seus ensinamentos revolucionários embutando-lhe o gume e degradando-a» (Edição russa, Tomo XIV, Capítulo II, pág. 299)
Resta apenas acrescentar a estas proféticas palavras que N. K. Krupskaia teve um dia a coragem de lançá-las à cara da fração de Estaline.
A segunda parte desta tarefa dos epígonos consistiu em voltar o que era a defesa e o desenvolvimento das idéias de Lenine como sendo um conjunto de princípios hostis a Lenine. O mito do «trotskismo» forneceu essa histórica serventia. Fará falta redizer que nunca tencionei nem pretendo criar uma doutrina particular? Em teoria som um aluno de Marx. A respeito dos métodos da revolução, passei pola escola de Lenine. O «trotskismo», se se quiger, é para mim um nome sob o qual os epígonos nomeiam as idéias de Marx e de Lenine, degorantes de se libertarem a todo o custo desses pensamentos, mas não ousando fazê-lo a peito aberto.
Mostra o presente livro uma parte do processo ideológico através do qual alterou a actual direcção da República soviética a sua cobertura teórica, compassada com a demudança da sua natureza social. Mostrarei como as mesmas pessoas manifestaram pareceres diametralmente opostos respeito aos acontecimentos, às idéias e aos mesmos militantes, enquanto Lenine era vivo e após morrer. Diga-se de passagem, que vai contra o meu estilo literário habitual fazer um grande número de citações, mas som obrigado neste livro. Porém, nom se pode deixar de valer de textos e opiniões porque, na emergência, traem à memória evidentes e irrefutáveis provas de denúncia, na luita contra homens políticos que, astuciosa e com atabalhoamento renegam o seu passado mais recente ao passo que lhe juram fidelidade. Se deplorar o leitor desacougado ser obrigado a percorrer uma parte do caminho em pequenos trajectos, que tenha por conta que se tivesse que juntar estas citações, destacar as mais significativas e ordenar o vínculo político necessário entre elas, ter-lhe-ia requerido isso infinitamente mais trabalho do que o de ler com atenção estes documentos fundamentais do combate entre dous campos tão contíguos e, ao mesmo tempo, tão irredutivelmente opostos.
A primeira parte deste livro é uma carta que escrevi na altura do X aniversário da Revolução de Outubro ao Instituto Histórico do Partido e da Revolução. Protestando, o Instituto devolveu o meu manuscrito que, na realidade, era um corpo estranho nos trabalhos de assombrosa falsificação histórica a que se submete esta instituição na sua luita contra o «trotskismo».
Conforma a segunda, quatro discursos que pronunciei perante as mais altas instâncias do partido, de Junho a Outubro de 1927, isto é, no tempo do período de luita ideológica mais árdua entre a oposição e a fracção de Estaline. Se dentre os copiosos documentos destes últimos anos escolhim os estenogramas destes quatro discursos é porque proporcionam, sob uma forma sintética, uma exposição bastante acabada das concepções em contenda e porque, em minha opinião, na sua continuidade cronológica dá ocasião ao leitor para apreender o dramático dinamismo da própria lide. Quero acrescentar ainda que as reiteradas analogias com a Revolução francesa se empregam para facilitar a orientação histórica do leitor latino.
Porções consideráveis no texto dos discursos foram suprimidas para evitar repetições que são, apesar de tudo, mais ou menos inevitáveis. Dou todos os esclarecimentos necessários sob a maneira de notas de introdução aos próprios discursos, pola vez primeira publicados na edição à vista. Na URSS continuam a ser documentos ilegais.
Apresento, para acabar, um pequeno panfleto escrito no exílio em Alma-Ata, em 1928, em resposta a uma carta de repreensão que um adversário bem-intencionado me enviou. Julgo que este documento, cujo manuscrito propagou-se largamente, dá, a todo o livro, o ajuste preciso, iniciando o leitor na noção da última fase da luita que antecedeu directamente a minha expulsão.
Engloba esta obra um passado muito fresco, com o exclusivo objectivo de prendê-lo ao presente. Mais dum debate a que se faz referência ainda não concluiu, mais duma questão ainda não foi resolvida. Mas cada novo dia trará uma demonstração suplementar dos concebimentos em luita. Este livro é dedicado à história actual, isto é, à política. Medita o passado apenas como um preâmbulo directo ao futuro.
Constantinopla, 1 de Maio de 1929.
Tem por objecto grande parte desta obra rebater as incriminações e as grosseiras imputações mentirosas dirigidas pessoalmente contra mim. Qual a razão, pois, que me faculta a importunar a atenção do leitor com estes documentos? Não pode fundamentar por si só a publicação deste livro, o facto de ter estado a minha vida aderida aos acontecimentos da Revolução. Nada haveria de instrutivo na narração desta luita se a pugna da fracção de Estaline contra mim fosse apenas um combate pessoal polo poder, pois na história parlamentar abundam as lides entre grupos e indivíduos em nome do poder. Bem outra é a razão: é que a peleja polo poder dos grupos e dos indivíduos na URSS faz parte indissolúvel das diversas fases da Revolução de Outubro.
Em época alguma o determinismo histórico se patenteia com tanta veemência como nos períodos revolucionários; de facto, este, põe em evidência e eleva os problemas e as contradições das relações de classes ao mais alto grau de acuidade. A lida ideológica torna-se, nesses períodos, a mais directa arma das classes inimigas ou das fracções duma só e mesma classe. Precisamente foi este o carácter que revestiu a luita contra o «trotskismo» na Revolução russa. É, neste caso, tão inequívoco o elo que ata argumentos, por vezes essencialmente escolásticos, à procura de proveito material de certas classes ou camadas sociais, que há chegar o dia em que esta experiência histórica terá de ser objecto dum capítulo exclusivo nos manuais escolares de materialismo histórico.
Devido à doença e morte de Lenine, a Revolução de Outubro divide-se em dous ciclos que se irão dissemelhando um do outro quanto mais nos arredamos dela. Foi o primeiro o da tomada do poder, da instituição e fortalecimento da ditadura do proletariado, da sua defesa militar, nas medidas indispensáveis a que se teve que recorrer para assentar a sua via económica. Nesse momento todo o partido tem a consciência de ser o pilar da ditadura do proletariado; desse conhecimento íntimo é que tira a sua segurança interna.
Caracteriza-se o segundo, pola persistência no país dum crescente número de princípios de dualidade de poder. O proletariado, que conquistou o poder em Outubro, por efeito duma série de causas tanto materiais quanto morais de ordem externa como interna, foi relegado e arredado para segundo plano. Ao lado dele, detrás dele, mesmo por vezes à sua frente, levantam-se outros elementos, outras camadas sociais e fracções de outras classes, que açambarcam uma boa parte, se não do poder, polo menos duma influência sobre este. São essas outras camadas: funcionários do Estado, dos sindicatos profissionais e cooperativas, profissões liberais e intermediários, que compõem um sistema de vasos comunicantes. Estas camadas, ao mesmo tempo, estão desligadas do proletariado ou afastam-se cada vez mais dele, polas suas condições de existência, polos hábitos e modos de pensar. Nessa camada, em definitivo, têm de serem incluídos os funcionários do partido, conforme formam uma casta solidamente constituída que, não tanto polos meios internos do partido, como polos do aparelho do Estado, asseguram a sua própria inamovibilidade.
O poder soviético, pola sua origem e tradições, pola procedência da sua actual força, prossegue a apoiar-se no proletariado, se bem cada vez menos directamente. Mas, através das camadas sociais acima enumeradas, cai cada vez mais na órbita de influência dos interesses burgueses. Esta pressão torna-se tanto mais sensível quanto uma grande porção, não só do aparelho do partido, vem a ser o agente, senão consciente polo menos eficaz, dos concebimentos e das esperanças burguesas. Qualquer que seja a sua falta de vigor interior, a nossa burguesia tem, e com razão, o conhecimento íntimo de ser uma fracção da burguesia mundial e de constituir o mecanismo de transmissão do imperialismo mundial. Mas também a camada inferior burguesa está longe de ser desprezível. Conforme a economia agrícola se desenvolve sobre as bases individuais do mercado, inevitàvelmente abrolha do seu seio uma copiosa pequena burguesia rural. O mujique [camponês] enriquecido, ou o que só pensa enriquecer, e que bate com as barreiras da legislação soviética, é o agente natural dos impulsos latentes bonapartistas. Este facto, provado por toda a evolução da história moderna, foi mais uma vez corroborado pola experiência da República Soviética. Estas são as primeiras causas determinantes dos elementos de dualidade de poder que caracterizam o segundo capítulo da Revolução de Outubro, posterior à morte de Lenine.
Dispensado será manifestar que, mesmo o primeiro período —1917-1923— não é homogéneo de todo em todo. Teve não só movimentos de avanço, mas também recuos. A Revolução fez importantes concessões nesse período também: por um lado à classe camponesa, por outro à burguesia mundial. Brest-Litovsk foi o primeiro retrocesso da Revolução vitoriosa. Depois disso a Revolução reaviou para a frente. Uma séria manobra de retrogradação, por mais parcos que até agora tenham sido os seus resultados práticos foi, no princípio, a política de concessões comerciais e industriais. O maior recuamento foi, no entanto, duma maneira geral, a nova política económica, a NEP. Ao restabelecer o mercado, a NEP, recriou as condições que podem fazer ressuscitar a pequena burguesia. Compendiando, a NEP encerrava as possibilidades de dualidade de poder, contudo inexistentes fora do potencial económico. Desenvolveram só um ímpeto real no segundo capítulo da história de Outubro cujo ponto de partida é geralmente o da doença e morte de Lenine, e princípio da luita contra o «trotskismo».
Escusado será dizer que as concessões, em si mesmas, às classes burguesas não são ainda uma violação da ditadura do proletariado. Em geral, não se deu na história uma dominação quimicamente pura. A burguesia exerce o domínio apoiando-se nas outras classes, submetendo-as, corrompendo-as ou arremedando-as. As reformas sociais em favor dos obreiros, e mais sim, não conformam de maneira alguma uma transgressão à incondicional soberania da burguesia num país. Pode cada capitalista individualmente, decerto, ter a impressão de não ser já o senhor da sua casa — isto é, na sua fábrica — constrangido como é a ter em conta os limites legislativos da sua ditadura económica. Mas estes lindes não têm outra razão que não seja o de segurar e sustentar o domínio de classe no seu conjunto. Os interesses do capitalista isolado a todo o momento entram em contradição com os do Estado capitalista, não só polas questões de legislação social, mas também, no que tem relação com os impostos, a dívida pública, a guerra, a paz, etc. A vantagem continua a ser do conjunto dos interesses da classe. Esta é a única a decidir quais as emendas que pode outorgar sem abalar as bases da sua dominação.
De jeito semelhante põe-se o problema para a ditadura do proletariado. Só poderia existir em meio imaterial uma ditadura de pureza química. O proletariado dirigente é obrigado a contar com as outras classes e, segundo a relação de forças no interior do país ou na areia internacional, a fazer concessões às outras classes para manter a sua dominação. Todo o assunto está em saber quais os limites dados às concessões e qual o grau de conhecimento íntimo com que são feitas.
A nova política económica toldava-se de dous aspectos. Em primeiro lugar, derivava da obriga para o próprio proletariado de fazer uso, com vista à direcção da indústria e, em geral, de toda a economia, dos métodos elaborados polo capitalismo. Em segundo lugar, conforme lhe dava oportunidade para conduzir a economia polas formas de compra e venda que à burguesia lhe são essencialmente próprias, manifestava uma concessão à burguesia e, sobretudo, à pequena burguesia. Devido a uma população rural predominante na Rússia, este segundo aspecto da NEP dimanou duma importância decisiva. Ante a paralisação do desenvolvimento revolucionário nos outros países, a NEP, significando um profundo e duradoiro recuo, era inevitável. Sob a direcção de Lenine aplicámo-la com plena unanimidade. Esta volta para trás foi reconhecida como tal, com pleno conhecimento de todos. O partido, e a classe operária através dele, compreenderam perfeitamente o seu sentido de forma geral. Até certo ponto, a pequena burguesia obteve a possibilidade de acumular. Mas o poder e, por conseqüência, as prerrogativas de precisar as demarcações dessa acumulação continuaram, como antes, nas mãos do proletariado.
Há uma analogia, como já dissemos, entre as reformas sociais que a burguesia dirigente se vê obrigada a fazer no interesse do proletariado e as mercês que faz às classes burguesas o proletariado dirigente. Mas é forçoso assentar esta analogia em quadros históricos bem definidos se queremos evitar erros. Existe desde há séculos o poder burguês, tem um carácter mundial, basea-se numa imensa acumulação de riquezas, arruma um vigoroso conjunto orgánico de instituições, de ligações e de idéias. Séculos de dominação criaram uma qualidade de instinto de dominação que muitas vezes foi, em situações difíceis, um guia seguro para a burguesia. Para o proletariado foram séculos de opressão, os séculos de domínio burguês. A classe dos proletários não tem nem tradições históricas de dominação, nem com maior razão, o instinto de poder. Chegou ao poder num dos países mais pobres e atrasados da Europa. Isso quer dizer que a ditadura do proletariado, na actual etapa e nas condições históricas do tempo presente, está infinitamente menos resguardada do que o poder burguês. Uma política justa, uma consideração acaída dos seus actos e, em particular, das irremediáveis outorgas às classes burguesas são, para o poder soviético, uma questão de vida ou de morte.
Caracteriza-se o capítulo da Revolução de Outubro posterior à morte de Lenine, tanto polo desenvolvimento das forças socialistas como polo ímpeto das capitalistas no interior da economia soviética. A solução depende da sua proporção dinâmica. Assenta mais na evolução quotidiana da vida económica do que na estatística, o controle desta proporção. A profunda crise actual, que paradoxalmente adoptou a forma da penúria de produtos agrícolas num país agrário, é a prova objectiva e certa da fractura das proporções económicas essenciais. Desde o Outono de 1923, no XII Congresso do partido, o autor deste livro tinha avisado para as conseqüências que poderiam advir duma enganosa direcção económica; o atraso da indústria provoca a “tesoura”, isto é, a desproporção entre os preços dos produtos industriais e agrários, facto que, por sua vez, incita a paralisação do desenvolvimento da agricultura. De maneira nenhuma é sinal da irremediabilidade ou, ainda menos, da iminência da queda do regime soviético, o facto de estas conseqüências se terem verificado. Apenas denota –mas de maneira mais imperiosa- a necessidade duma mudança de política económica.
Então a dúvida que se põe é a de saber se a dita direcção é competente para compreender a necessidade duma modificação de política e se, na prática, está em situação de a efectuar. Voltemos, assim, à questão de saber em que grau o poder do Estado se encontra ainda nas mãos do proletariado e do seu partido, isto é, até onde continua a ser o poder da Revolução de Outubro. Dar resposta a priori a esta questão é impossível. Não se rege por princípios mecânicos a política. As forças das classes e dos partidos revelam-se na luita. E ainda está para vir toda a luita. Não pode durar muito a dualidade de poder, quer dizer, a existência paralela do poder ou semi-poder de duas classes antagónicas, como por exemplo, no período de Kerenski. Tal conjuntura tem de achar solução num sentido ou noutro. A asseveração dos anarquistas ou anarquizantes, segundo a qual a URSS é já um país burguês, é rebatida da melhor maneira polo modo de proceder que a própria burguesia interna e estrangeira seguiu a esse respeito. Irem mais alô do que o reconhecimento de elementos de dualidade de poder seria teoricamente falso, perigoso politicamente, mesmo um facto suicida. A questão da dualidade de poder funda-se, portanto, neste momento, em saber quanto se enraizaram as classes burguesas no aparelho do Estado soviético e em que medida enraizaram as idéias e as tendências burguesas no aparelho do partido e do proletariado. Deste grau deriva a liberdade de manobra do partido e a capacidade para a classe obreira de adoptar as medidas precisas de defesa e de ataque.
Não se distingue apenas o segundo capítulo da Revolução de Outubro polo progredimento das posições económicas da pequena burguesia das cidades e dos campos, mas por um encadeamento mais perigoso e agudo de desarmamento teórico e político do proletariado, de par com um acréscimo da segurança a consciência das camadas sociais burguesas. O interesse político das classes pequeno-burguesas em crescimento consistiu e ainda consiste, segundo o estádio por que passam estes processos, em dissimular o mais possível os seus avanços, em disfarçar os seus progressos sob uma aparência soviética protectora, em apresentar as suas conquistas como partes integrantes da edificação socialista. Ao certo alguns progressos, aliás importantes da burguesia, fundamentados na NEP, eram indeclináveis e, por outro lado, necessários para o próprio progresso do socialismo. Mas, exactamente iguais ganhos económicos da burguesia podem atingir toda outra importância e representar um perigo bastante diferente, conforme a classe operária, e, sobretudo o seu partido, tenham uma idéia mais ou menos clara dos decursos e das deslocações que se operam no país e mantenham, mais ou menos com consistência, a direcção nas mãos. A política é uma economia concentrada. A questão económica resolve-se na República soviética, na actual etapa, mais do que nunca, do ponto de vista político.
Não se reduze tanto o vício da política posterior a Lenine em ter feito novas e relevantes concessões às diferentes camadas da burguesia no interior do país, no Ocidente e na Ásia. Foram necessárias ou forçosas algumas destas concessões, polo menos devido a erros prévios. Tais foram as novas permissões, feitas aos kulaks em Abril de 1925: o direito da arrenda da terra e de empregar mão de obra. Foram outras, em si mesmas, erradas, prejudiciais, mesmo funestas. Neste caso está a capitulação perante os agentes burgueses do movimento obreiro britânico e, ainda pior, a rendição perante a burguesia chinesa. Mas o mais notável crime da política posterior a Lenine, a anti-leninista, foi o de expor graves concessões como êxitos do proletariado, os recuos como progressos, o de interpretar a ampliação das dificuldades internas como um avanço vitorioso para uma sociedade socialista nacional.
Esta actuação de desarmamento teórico do partido e de sufocação da espreitadela do proletariado foi encarreirada durante os últimos anos, a coberto da luita contra o «trotskismo». Os alicerces do Marxismo, os métodos essenciais da Revolução de Outubro, as mais notáveis lições de estratégia leninista, foram submetidos a uma rude e veemente revisão, na qual o apressado apuro de ordem e tranqüilidade do renascente pequeno-burguês achou a sua expressão. Tiveram o dom de assanhar acima de tudo as novas camadas sociais conservadoras, a idéia da revolução permanente, isto é, da vinculação indissolúvel e real da República soviética com a marcha da revolução proletária no mundo inteiro, persuadidas intimamente de que a revolução, elevando-as ao primeiro plano, tinha cumprido assim a sua missão.
Leccionam-me, com grande autoridade, os meus críticos das facções social-democrata e democrata, que a Rússia não está «madura» para o socialismo e que Estaline tem toda a razão em reconduzi-la, aos ziguezagues, no rumo do capitalismo. É cousa certa que aquilo a que os social-democratas designam, com real satisfação, o restabelecimento do capitalismo, chama-o Estaline construção do socialismo nacional. Mas como tem em vista o mesmo processo, a variedade terminológica não nos deve encobrir a identidade de fundo. Mesmo aceitando que Estaline leve a cabo a sua tarefa com conhecimento de causa, o que de momento não é o caso, ver-se-ia obrigado apesar de tudo, para adoçar fricções, a dar o nome de socialismo ao capitalismo. Ora, quanto menor ele compreende os problemas históricos essenciais, mais o seu modo de proceder vai seguro neste caminho. A sua cegueira aforra-lhe no caso o recurso à falsidade.
A controvérsia não é, no entanto, de saber se a Rússia é capaz de edificar o socialismo polos seus próprios meios. Para o Marxismo em geral, esta questão não existe. Tudo o que foi dito pola escola estalinista a este respeito é, no plano teórico, do domínio da alquimia e da astrologia. Serve o estalinismo, no melhor das hipóteses, enquanto doutrina, para fazer parte dum museu teórico da história natural. O essencial é se o capitalismo proporciona possibilidades de tirar a Europa do impasse histórico; se é capaz a Índia de libertar-se da escravatura e da miséria sem sair dos quadros dum progresso capitalista pacífico; se a China tem capacidade de atingir, sem revolução e sem guerras, o nível de cultura de América e da Europa; se os Estados-Unidos poderão conter as suas próprias forças produtivas sem abalar a Europa e sem encarreirar para uma terrível catástrofe toda a humanidade. Eis como se põe o argumento do curso posterior da Revolução de Outubro. Se se aceitar que o capitalismo prossegue a ser uma força histórica que progride, com possibilidades para achar as soluções polos seus próprios métodos e meios as propostas essenciais que estão na ordem do dia da história e de fazer prosperar a humanidade mais alguns lances, não se poria, então, a questão de converter a República soviética em país socialista. Deste jeito estaria fatalmente sentenciada à sua destruição a estrutura socialista da Revolução de Outubro, para legar unicamente as conquistas agrárias democráticas. Este recuo da revolução proletária à revolução burguesa seria levado a efeito pola fracção de Estaline, por uma fracção desta fracção, ou seriam necessárias uma ou mais substituições políticas gerais? Estes são problemas que estão em segundo lugar. Manifestei muitas vezes já que a forma política deste movimento regressivo seria, muito possivelmente, o bonapartismo e de maneira nenhuma a democracia. Ora, o indispensável é saber se, enquanto sistema mundial é o capitalismo ainda uma força progressiva. Precisamente nisso é que os nossos opositores social-democratas dão testemunho dum utopismo aflitivo, arcaico, incapaz; dum utopismo reaccionário e não progressista.
A política de Estaline é um «centrismo», isto é, uma tendência que oscila entre a social-democracia e o comunismo. As mais notáveis tentativas «teóricas» da escola de Estaline, que emergiu apenas depois da morte de Lenine, propendem a separar a sorte da República soviética do desenvolvimento revolucionário em geral. Isto equivale a separar a revolução dela própria. O problema teórico dos epígonos, por verbo disso, revestiu a forma duma oposição do «trotskismo» ao leninismo.
Far-se-ia indispensável para fazer desaparecer o carácter internacional do Marxismo, permanecendo-lhe fiel em palavras até nova ordem, voltar as armas, em primeiro lugar, contra os que foram pilares das idéias da Revolução de Outubro e do internacionalismo proletário. Neste caso, o primeiro posto correspondeu a Lenine. Mas Lenine morreu no limiar de dous estádios da Revolução. Por conseqüência não pôde defender a obra da sua vida. Os epigónios pugeram a retalho os seus livros em citações e é com esta arma que combatem o Lenine vivo e ao mesmo tempo erigem-lhe mausoléus, não apenas na Praça Vermelha, mas ainda na própria consciência do partido. Lenine abriu o seu livro O Estado e a Revolução, como se antevisse a fortuna que seria dada em breve às suas idéias, com as seguintes palavras aplicadas ao destino dos grandes revolucionários:
«Procuram convertê-los depois de mortos em ícones inofensivos, canonizá-los por assim dizer, nimbando o seu nome duma auréola de glória para “consolar” as classes oprimidas e para enganá-las, ao mesmo tempo em que se torna infecundo o mais essencial e importante dos seus ensinamentos revolucionários embutando-lhe o gume e degradando-a» (Edição russa, Tomo XIV, Capítulo II, pág. 299)
Resta apenas acrescentar a estas proféticas palavras que N. K. Krupskaia teve um dia a coragem de lançá-las à cara da fração de Estaline.
A segunda parte desta tarefa dos epígonos consistiu em voltar o que era a defesa e o desenvolvimento das idéias de Lenine como sendo um conjunto de princípios hostis a Lenine. O mito do «trotskismo» forneceu essa histórica serventia. Fará falta redizer que nunca tencionei nem pretendo criar uma doutrina particular? Em teoria som um aluno de Marx. A respeito dos métodos da revolução, passei pola escola de Lenine. O «trotskismo», se se quiger, é para mim um nome sob o qual os epígonos nomeiam as idéias de Marx e de Lenine, degorantes de se libertarem a todo o custo desses pensamentos, mas não ousando fazê-lo a peito aberto.
Mostra o presente livro uma parte do processo ideológico através do qual alterou a actual direcção da República soviética a sua cobertura teórica, compassada com a demudança da sua natureza social. Mostrarei como as mesmas pessoas manifestaram pareceres diametralmente opostos respeito aos acontecimentos, às idéias e aos mesmos militantes, enquanto Lenine era vivo e após morrer. Diga-se de passagem, que vai contra o meu estilo literário habitual fazer um grande número de citações, mas som obrigado neste livro. Porém, nom se pode deixar de valer de textos e opiniões porque, na emergência, traem à memória evidentes e irrefutáveis provas de denúncia, na luita contra homens políticos que, astuciosa e com atabalhoamento renegam o seu passado mais recente ao passo que lhe juram fidelidade. Se deplorar o leitor desacougado ser obrigado a percorrer uma parte do caminho em pequenos trajectos, que tenha por conta que se tivesse que juntar estas citações, destacar as mais significativas e ordenar o vínculo político necessário entre elas, ter-lhe-ia requerido isso infinitamente mais trabalho do que o de ler com atenção estes documentos fundamentais do combate entre dous campos tão contíguos e, ao mesmo tempo, tão irredutivelmente opostos.
A primeira parte deste livro é uma carta que escrevi na altura do X aniversário da Revolução de Outubro ao Instituto Histórico do Partido e da Revolução. Protestando, o Instituto devolveu o meu manuscrito que, na realidade, era um corpo estranho nos trabalhos de assombrosa falsificação histórica a que se submete esta instituição na sua luita contra o «trotskismo».
Conforma a segunda, quatro discursos que pronunciei perante as mais altas instâncias do partido, de Junho a Outubro de 1927, isto é, no tempo do período de luita ideológica mais árdua entre a oposição e a fracção de Estaline. Se dentre os copiosos documentos destes últimos anos escolhim os estenogramas destes quatro discursos é porque proporcionam, sob uma forma sintética, uma exposição bastante acabada das concepções em contenda e porque, em minha opinião, na sua continuidade cronológica dá ocasião ao leitor para apreender o dramático dinamismo da própria lide. Quero acrescentar ainda que as reiteradas analogias com a Revolução francesa se empregam para facilitar a orientação histórica do leitor latino.
Porções consideráveis no texto dos discursos foram suprimidas para evitar repetições que são, apesar de tudo, mais ou menos inevitáveis. Dou todos os esclarecimentos necessários sob a maneira de notas de introdução aos próprios discursos, pola vez primeira publicados na edição à vista. Na URSS continuam a ser documentos ilegais.
Apresento, para acabar, um pequeno panfleto escrito no exílio em Alma-Ata, em 1928, em resposta a uma carta de repreensão que um adversário bem-intencionado me enviou. Julgo que este documento, cujo manuscrito propagou-se largamente, dá, a todo o livro, o ajuste preciso, iniciando o leitor na noção da última fase da luita que antecedeu directamente a minha expulsão.
Engloba esta obra um passado muito fresco, com o exclusivo objectivo de prendê-lo ao presente. Mais dum debate a que se faz referência ainda não concluiu, mais duma questão ainda não foi resolvida. Mas cada novo dia trará uma demonstração suplementar dos concebimentos em luita. Este livro é dedicado à história actual, isto é, à política. Medita o passado apenas como um preâmbulo directo ao futuro.
Constantinopla, 1 de Maio de 1929.
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