As condições que converteram à Rússia Czarista no elo flébil da cadeia imperialista tornaram-se, logo das derrotas do proletariado na Europa, em cláusulas que punham em causa a sua existência.
Foi o encadeamento das derrotas obreiras em países claves da Europa e a Rússia dos Sovietes dilacerada por uma cruel guerra civil que atolou numa desastrosa situação econômica, as que forneceram a aparição da burocratização e onde os ziguezagues que se perceberam foram a resultante do conjunto de forças postas em acção numa política a cada vez mais afastada dos princípios que animaram a revolução.(66)
As circunstâncias tão adversas com as que os dirigentes revolucionários tiveram que acarrear a construção do primeiro estado proletário duradouro só podiam ser solucionadas no terreno internacional da luita de classes mediante duas medidas: trançar o ilhamento que ameaçava com afogar à jovem República com uma estratégia revolucionária a levar pola Internacional Comunista e esclarecer a incógnita entre um mercado capitalista nos campos e a apropriação colectiva dos principais médios de producção nas cidades.
Cumpre sinalar que os processos que deram lugar ao nascimento da burocracia não são devidos a uma traição deliberada dos dirigentes da URSS, nem a uma má vontade, nem a uma luita desaforada polo poder no primeiro Estado operário. Uma análise nessa via seria um corpo estranho ao Marxismo. O filósofo húngaro György Lukács, com a sua formidável inteligência, não tem escapado do sarilho idealista ao ocupar-se do fenômeno estaliniano quando indicou que
“com Estaline não foi de modo nenhum uma questão de erros isolados e casuais, como muitos quiseram crer durante muito tempo. Mais bem, foi uma questão dum sistema errôneo de percepções gradualmente acrescentado”.(67)
Ter-se-ia de primeiras, explicar quais as razões desse sistema “errôneo”, qual a sua articulação com o desenvolvimento histórico-económico soviético e universal e como foi que a urdime de todo o tecido social da União Soviética durante tantos anos aturou tal peso de conceitos falsos (à margem de que mais de doze milhões de vítimas nom constituem um desacerto de jeito algum, mas com segurança, um horrendo crime).(68)
A tese do pensador húngaro explica, melhor do que nada, as escusas com as que justificarem a ditadura burocrática e a sua própria responsabilidade na capitulação defronte ao estalinismo.(69) Segundo, traduz o fenômeno à única personalidade e vontade de Estaline que, como deus ex machina, engendra as idéias errôneas e o sistema que permite a geração dessas percepções erradas.
É arriscado demais e, assim e todo bastante incompatível com o Marxismo, explicar por via psicológica, subjectiva, o “culto da personalidade”(70) e seria de agradecer que os analistas afectos ao psicologismo explicassem os razoamentos polos que tanto sob Estaline como nas épocas após-Estaline os alicerces da degenerescência subsistiram.
A desfiguração burocrática e o fenômeno estalinista estão inseridos, mais bem, nas contradições que toda sociedade em transição tem por obrigação superar em momentos de ilhamento temporal e com um nível de desenvolvimento relativo muito inferior ao alcançado polas grandes potências imperialistas.
Em muitas ocasiões Marx explicara que o feixe de fenômenos visíveis e invisíveis que integram a universalidade conforma um conjunto estruturado por uma lógica interna das contradições no seu conjunto e o movimento destas contradições na sua totalidade. Isto é para a esfera histórica: o funcionamento das sociedades desembrulha-se à margem das escolhas particulares, dos desideratos, filias ou fobias dos indivíduos que compõem essa sociedade:
“Na produção social das suas vidas, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a certo grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a que se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais e determinadas de consciência”(71) e Engels apontara: “se se querem investigar as forças motrizes que—consciente ou inconscientemente, e com muita freqüência inconscientemente— estão detrás destes móveis polos que atuam os homens na história e que constituem as verdadeiras molas supremas da história, não haveria que se fixarem tantos nos móveis de homens ilhados, por muito relevantes que sejam, como nos que movem a grandes massas, a povos em bloco, e, dentro de cada povo, a classes inteiras.”(72)
Razão que não inutiliza o rol da personalidade nos processos históricos. Para o Marxismo o papel que jogam na marcha duma situação determinada os indivíduos sobressalentes pode ser, e às vezes é, indispensável, toda vez que não só reflectem as causas accidentais embora as causas principais que enlaçam as maneiras de fazer e os ritmos de decursos não visíveis prima facie. Ora, nem tão-pouco essas “grandes personalidades” podem actuar ilhadamente à margem dos grupos, das classes e das tensões sociais, pois os indivíduos são necessàriamente tributários das idéias e da história recebidos e do ambiente que os circunda. Lenine considerou que “as acções das «pessoas viventes» no seio de cada uma dessas formações económico-sociais, acções infinitamente diversas e, ao parecer, não susceptíveis de sistematização, foram vulgarizadas e traduzidas em acções de grupos de indivíduos, que se distinguiam entre eles polo papel que desempenhavam no sistema das relações de producção, polas condições de produção e, por conseqüência, polas condições de vida e polos interesses que essas condições determinavam: numa palavra, foram traduzidas às acções das classes, cuja luita determinava o desenrolo da sociedade”,(73) e outra vez Engels, numha carta a W. Borgius em 25 de Janeiro de 1894: “que fosse Napoleão, precisamente este corso, o ditador militar que exigia a República Francesa, esgotada pola sua própria guerra, foi uma casualidade; mas se não houvesse um Napoleon teria chegado outro a ocupar o seu posto, demonstra-o o facto de que sempre que foi necessário um homem: César, Augusto, Cromwell, etc., este homem apareceu.”(74)
A burguesia russa, presonada polo proletariado e incapaz de se desembaraçar da autocracia, estava encaixada entre a revolução socialista ou a reacção monárquica.(75) Não havia já lugar no mundo para um desenvolvimento capitalista tipo americano, nem alemão, nem francês, nem mesmo logo duma revolução burguesa radical. Uma Rússia capitalista seria mais alô dos seus esforços, uma Rússia atrasada e bárbara. O proletariado, então, estava empurrado para realizar a revolução democrático-burguesa convertendo-a em revolução operária, isto é, os proletários tiveram que fazer simultaneamente duas tarefas: acabar com o regime feudal aliando-se com o campesinado para efetuar com ele e ao seu favor a revolução democrático-burguesa que a burguesia fora incapaz de levar ao cabo e, de caminho, a mesma revolução operária. Só levando até o fim a revolução democrático-burguesa com o apoio da imensa maioria das massas lavradoras, o proletariado poderia garantir a sobrevivência da sua revolução. Ensarilhado neste duplo problema é onde se pode compreender a porfia dos principais dirigentes da Revolução de Outubro, nomeadamente Lenine, na imprescindível ligação com o campesinato, como, com efeito, aconteceu e não deixou de sinalar Trotski na sua obra magna, História da revolução russa.(76) Ora, com a distribuição da terra aos camponeses o proletariado ocasionava o desenvolvimento da propriedade privada, isto é, as relações capitalistas no campo. Rosa Luxemburgo indicá-lo-á com singular firmeza:
“A ordem de ocupação de terras entre os lavradores, lançada polos bolcheviques, tinha que conseguir o resultado contrário. Esta palavra de ordem nom é que seja uma medida socialista, mais bem o seu oposto, e põe dificuldades insuperáveis ante o objecto de transformar as relações agrárias num sentido socialista.”(77)
Bem certo é tudo isto, mas também há que sinalar que daquela a argumentação de Rosa Luxemburgo era unilateral quando via só contradições insolúveis, isto é, apenas impossibilidades, no apanhamento da rede da situação real. As leis da dialéctica mostram neste respeito, que no conhecimento da totalidade concreta é onde tem que engastar-se a compressão geral. Alçar o pensamento do concreto (a acção permanente do pensamento para aproximações do mundo concreto) para o abstracto (o progresso teórico de compreensão) e do abstracto para o concreto com um plano geral claro. Eis a notável solução posta por Lenine.(78) A brilhante revolucionária polaca não soube ver que a táctica leninista não vinha significar um fim, embora o iniludível passo nesse enredo peculiar para levar as massas em direcção ao socialismo.
Por outra banda seria injusto de todo creditar em Lenine o pensamento privativo dos esseristas. A lei sobre a socialização da Terra de 19 de Fevereiro de 1918 certificava a abolição da propriedade e a entrega das terras e dos gados privados para uma agricultura colectivizada:
“A exploração das terras tem por objecto desenvolver as explorações agrícolas colectivas — mais vantajosas desde o ponto de mira da economia do trabalho e dos produtos— em atenção à absorção das explorações individuais, com motivo de assegurar a transição para a economia socialista”(79)
As circunstâncias históricas derivaram para outro carreiro, “já em 1905 Lenine fizera a observação de que o campesinato apoiaria a revolução se lhes proporcionar terra”(80). Os lavradores esperavam desde havia muito tempo poder aceder à propriedade individual e Lenine não podia entortar, sem pôr em grave perigo a revolução, esta reivindicação. “A terra para os labregos — lembrando a este propósito uma reflexão de Lukács— mais que uma medida desejada polos bolcheviques, era um dado de facto, que na Rússia revolucionária os campesinos impuseram os próprios bolcheviques”.(81)É por isso que Lenine escreve:
“Esta ideia não é nossa; não somos do parecer com esta ordem, mas acreditamos que o nosso dever é aplicá-la mesmamente porque é a reivindicação da imensa maioria dos camponeses. Idéias e reivindicações da maioria dos trabalhadores têm que ser abandoadas por eles próprios; não se poderia nem ‘anulá-las’ nem ‘transpor’ por riba delas. Nós, os bolcheviques, ajudaremos os lavradores a abandoar as palavras de ordem burguesas, para passar o antes possível e com a máxima facilidade para as palavras de ordem socialistas.”(82)
No processo histórico da agricultura no império czarista, a modernização da estrutura agrária não se produziu no sentido capitalista. Foi o assédio à fortaleza das rendas do campesinato, por causa das pressões fiscais para cobrir as importações industriais, que coadjuvou o ressurgimento de formas de trabalho dependentes, tal as prestações pessoais, periclitadas já na maior parte dos países capitalistas. De outra, o adiantamento dos pagamentos de redenção polo Estado permitiram uma grande acumulação de terras, mas impediram processos de capitalização e modernização dos campos. Os planos industrializadores do derradeiro decênio do século XIX por parte dos diferentes governos dos czares não fizeram mais que consolidar esta situação lastrando enormemente a produtividade que, por sua vez, obrigava a um incremento da superfície cultivada. À roda de 1913 a agricultura ocupava mais do 80% da força de trabalho entanto o conjunto de bens entregues à economia total não alcançava o 50%. Eis a situação quando da chegada do proletariado ao poder em 1917.
Numa sociedade capitalista desenvolvida a perequação das taxas meias de lucro entre capitais joga contra da agricultura por causa duma mais fraca composição orgânica de capital e favorece a acumulação de capital industrial. Num determinado ponto, que variará nas formações sociais conforme determinados factores históricos de acumulação, a transferência tem de supor que a produção no campo, apto por um nível de desenvolvimento idôneo para gerar alimentos suficientes com os que alimentarem às classes urbanas e mais uma stockagem de reposição para manter o circuito, liberte mão de obra com destino a indústria. Paralelamente, o acréscimo industrial fornecerá de aparelhos para satisfazer os requerimentos lavradores.
A situação na Rússia revolucionária, enfraquecida pola guerra mundial e devastada por uma terrível guerra civil só cumpria, bem que a meias, a condição de alimentar às cidades.(83) A perequação da taxa de lucro jogava a favor da agricultura e a acumulação agrária era superior à da industrial estatelada.
Assentado o poder soviético sobre uma bomba interna só lhe cabia esperar que a revolução, num curto espaço temporal, triunfa-se nalgum dos países capitalistas desenvolvidos impelindo o balanço do peso social em favor dos operários na atrasada Rússia, favorecendo ao passo o desembrulhamento dos processos embaraçados no interior da revolução.
Foi o encadeamento das derrotas obreiras em países claves da Europa e a Rússia dos Sovietes dilacerada por uma cruel guerra civil que atolou numa desastrosa situação econômica, as que forneceram a aparição da burocratização e onde os ziguezagues que se perceberam foram a resultante do conjunto de forças postas em acção numa política a cada vez mais afastada dos princípios que animaram a revolução.(66)
As circunstâncias tão adversas com as que os dirigentes revolucionários tiveram que acarrear a construção do primeiro estado proletário duradouro só podiam ser solucionadas no terreno internacional da luita de classes mediante duas medidas: trançar o ilhamento que ameaçava com afogar à jovem República com uma estratégia revolucionária a levar pola Internacional Comunista e esclarecer a incógnita entre um mercado capitalista nos campos e a apropriação colectiva dos principais médios de producção nas cidades.
Cumpre sinalar que os processos que deram lugar ao nascimento da burocracia não são devidos a uma traição deliberada dos dirigentes da URSS, nem a uma má vontade, nem a uma luita desaforada polo poder no primeiro Estado operário. Uma análise nessa via seria um corpo estranho ao Marxismo. O filósofo húngaro György Lukács, com a sua formidável inteligência, não tem escapado do sarilho idealista ao ocupar-se do fenômeno estaliniano quando indicou que
“com Estaline não foi de modo nenhum uma questão de erros isolados e casuais, como muitos quiseram crer durante muito tempo. Mais bem, foi uma questão dum sistema errôneo de percepções gradualmente acrescentado”.(67)
Ter-se-ia de primeiras, explicar quais as razões desse sistema “errôneo”, qual a sua articulação com o desenvolvimento histórico-económico soviético e universal e como foi que a urdime de todo o tecido social da União Soviética durante tantos anos aturou tal peso de conceitos falsos (à margem de que mais de doze milhões de vítimas nom constituem um desacerto de jeito algum, mas com segurança, um horrendo crime).(68)
A tese do pensador húngaro explica, melhor do que nada, as escusas com as que justificarem a ditadura burocrática e a sua própria responsabilidade na capitulação defronte ao estalinismo.(69) Segundo, traduz o fenômeno à única personalidade e vontade de Estaline que, como deus ex machina, engendra as idéias errôneas e o sistema que permite a geração dessas percepções erradas.
É arriscado demais e, assim e todo bastante incompatível com o Marxismo, explicar por via psicológica, subjectiva, o “culto da personalidade”(70) e seria de agradecer que os analistas afectos ao psicologismo explicassem os razoamentos polos que tanto sob Estaline como nas épocas após-Estaline os alicerces da degenerescência subsistiram.
A desfiguração burocrática e o fenômeno estalinista estão inseridos, mais bem, nas contradições que toda sociedade em transição tem por obrigação superar em momentos de ilhamento temporal e com um nível de desenvolvimento relativo muito inferior ao alcançado polas grandes potências imperialistas.
Em muitas ocasiões Marx explicara que o feixe de fenômenos visíveis e invisíveis que integram a universalidade conforma um conjunto estruturado por uma lógica interna das contradições no seu conjunto e o movimento destas contradições na sua totalidade. Isto é para a esfera histórica: o funcionamento das sociedades desembrulha-se à margem das escolhas particulares, dos desideratos, filias ou fobias dos indivíduos que compõem essa sociedade:
“Na produção social das suas vidas, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a certo grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a que se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais e determinadas de consciência”(71) e Engels apontara: “se se querem investigar as forças motrizes que—consciente ou inconscientemente, e com muita freqüência inconscientemente— estão detrás destes móveis polos que atuam os homens na história e que constituem as verdadeiras molas supremas da história, não haveria que se fixarem tantos nos móveis de homens ilhados, por muito relevantes que sejam, como nos que movem a grandes massas, a povos em bloco, e, dentro de cada povo, a classes inteiras.”(72)
Razão que não inutiliza o rol da personalidade nos processos históricos. Para o Marxismo o papel que jogam na marcha duma situação determinada os indivíduos sobressalentes pode ser, e às vezes é, indispensável, toda vez que não só reflectem as causas accidentais embora as causas principais que enlaçam as maneiras de fazer e os ritmos de decursos não visíveis prima facie. Ora, nem tão-pouco essas “grandes personalidades” podem actuar ilhadamente à margem dos grupos, das classes e das tensões sociais, pois os indivíduos são necessàriamente tributários das idéias e da história recebidos e do ambiente que os circunda. Lenine considerou que “as acções das «pessoas viventes» no seio de cada uma dessas formações económico-sociais, acções infinitamente diversas e, ao parecer, não susceptíveis de sistematização, foram vulgarizadas e traduzidas em acções de grupos de indivíduos, que se distinguiam entre eles polo papel que desempenhavam no sistema das relações de producção, polas condições de produção e, por conseqüência, polas condições de vida e polos interesses que essas condições determinavam: numa palavra, foram traduzidas às acções das classes, cuja luita determinava o desenrolo da sociedade”,(73) e outra vez Engels, numha carta a W. Borgius em 25 de Janeiro de 1894: “que fosse Napoleão, precisamente este corso, o ditador militar que exigia a República Francesa, esgotada pola sua própria guerra, foi uma casualidade; mas se não houvesse um Napoleon teria chegado outro a ocupar o seu posto, demonstra-o o facto de que sempre que foi necessário um homem: César, Augusto, Cromwell, etc., este homem apareceu.”(74)
A burguesia russa, presonada polo proletariado e incapaz de se desembaraçar da autocracia, estava encaixada entre a revolução socialista ou a reacção monárquica.(75) Não havia já lugar no mundo para um desenvolvimento capitalista tipo americano, nem alemão, nem francês, nem mesmo logo duma revolução burguesa radical. Uma Rússia capitalista seria mais alô dos seus esforços, uma Rússia atrasada e bárbara. O proletariado, então, estava empurrado para realizar a revolução democrático-burguesa convertendo-a em revolução operária, isto é, os proletários tiveram que fazer simultaneamente duas tarefas: acabar com o regime feudal aliando-se com o campesinado para efetuar com ele e ao seu favor a revolução democrático-burguesa que a burguesia fora incapaz de levar ao cabo e, de caminho, a mesma revolução operária. Só levando até o fim a revolução democrático-burguesa com o apoio da imensa maioria das massas lavradoras, o proletariado poderia garantir a sobrevivência da sua revolução. Ensarilhado neste duplo problema é onde se pode compreender a porfia dos principais dirigentes da Revolução de Outubro, nomeadamente Lenine, na imprescindível ligação com o campesinato, como, com efeito, aconteceu e não deixou de sinalar Trotski na sua obra magna, História da revolução russa.(76) Ora, com a distribuição da terra aos camponeses o proletariado ocasionava o desenvolvimento da propriedade privada, isto é, as relações capitalistas no campo. Rosa Luxemburgo indicá-lo-á com singular firmeza:
“A ordem de ocupação de terras entre os lavradores, lançada polos bolcheviques, tinha que conseguir o resultado contrário. Esta palavra de ordem nom é que seja uma medida socialista, mais bem o seu oposto, e põe dificuldades insuperáveis ante o objecto de transformar as relações agrárias num sentido socialista.”(77)
Bem certo é tudo isto, mas também há que sinalar que daquela a argumentação de Rosa Luxemburgo era unilateral quando via só contradições insolúveis, isto é, apenas impossibilidades, no apanhamento da rede da situação real. As leis da dialéctica mostram neste respeito, que no conhecimento da totalidade concreta é onde tem que engastar-se a compressão geral. Alçar o pensamento do concreto (a acção permanente do pensamento para aproximações do mundo concreto) para o abstracto (o progresso teórico de compreensão) e do abstracto para o concreto com um plano geral claro. Eis a notável solução posta por Lenine.(78) A brilhante revolucionária polaca não soube ver que a táctica leninista não vinha significar um fim, embora o iniludível passo nesse enredo peculiar para levar as massas em direcção ao socialismo.
Por outra banda seria injusto de todo creditar em Lenine o pensamento privativo dos esseristas. A lei sobre a socialização da Terra de 19 de Fevereiro de 1918 certificava a abolição da propriedade e a entrega das terras e dos gados privados para uma agricultura colectivizada:
“A exploração das terras tem por objecto desenvolver as explorações agrícolas colectivas — mais vantajosas desde o ponto de mira da economia do trabalho e dos produtos— em atenção à absorção das explorações individuais, com motivo de assegurar a transição para a economia socialista”(79)
As circunstâncias históricas derivaram para outro carreiro, “já em 1905 Lenine fizera a observação de que o campesinato apoiaria a revolução se lhes proporcionar terra”(80). Os lavradores esperavam desde havia muito tempo poder aceder à propriedade individual e Lenine não podia entortar, sem pôr em grave perigo a revolução, esta reivindicação. “A terra para os labregos — lembrando a este propósito uma reflexão de Lukács— mais que uma medida desejada polos bolcheviques, era um dado de facto, que na Rússia revolucionária os campesinos impuseram os próprios bolcheviques”.(81)É por isso que Lenine escreve:
“Esta ideia não é nossa; não somos do parecer com esta ordem, mas acreditamos que o nosso dever é aplicá-la mesmamente porque é a reivindicação da imensa maioria dos camponeses. Idéias e reivindicações da maioria dos trabalhadores têm que ser abandoadas por eles próprios; não se poderia nem ‘anulá-las’ nem ‘transpor’ por riba delas. Nós, os bolcheviques, ajudaremos os lavradores a abandoar as palavras de ordem burguesas, para passar o antes possível e com a máxima facilidade para as palavras de ordem socialistas.”(82)
No processo histórico da agricultura no império czarista, a modernização da estrutura agrária não se produziu no sentido capitalista. Foi o assédio à fortaleza das rendas do campesinato, por causa das pressões fiscais para cobrir as importações industriais, que coadjuvou o ressurgimento de formas de trabalho dependentes, tal as prestações pessoais, periclitadas já na maior parte dos países capitalistas. De outra, o adiantamento dos pagamentos de redenção polo Estado permitiram uma grande acumulação de terras, mas impediram processos de capitalização e modernização dos campos. Os planos industrializadores do derradeiro decênio do século XIX por parte dos diferentes governos dos czares não fizeram mais que consolidar esta situação lastrando enormemente a produtividade que, por sua vez, obrigava a um incremento da superfície cultivada. À roda de 1913 a agricultura ocupava mais do 80% da força de trabalho entanto o conjunto de bens entregues à economia total não alcançava o 50%. Eis a situação quando da chegada do proletariado ao poder em 1917.
Numa sociedade capitalista desenvolvida a perequação das taxas meias de lucro entre capitais joga contra da agricultura por causa duma mais fraca composição orgânica de capital e favorece a acumulação de capital industrial. Num determinado ponto, que variará nas formações sociais conforme determinados factores históricos de acumulação, a transferência tem de supor que a produção no campo, apto por um nível de desenvolvimento idôneo para gerar alimentos suficientes com os que alimentarem às classes urbanas e mais uma stockagem de reposição para manter o circuito, liberte mão de obra com destino a indústria. Paralelamente, o acréscimo industrial fornecerá de aparelhos para satisfazer os requerimentos lavradores.
A situação na Rússia revolucionária, enfraquecida pola guerra mundial e devastada por uma terrível guerra civil só cumpria, bem que a meias, a condição de alimentar às cidades.(83) A perequação da taxa de lucro jogava a favor da agricultura e a acumulação agrária era superior à da industrial estatelada.
Assentado o poder soviético sobre uma bomba interna só lhe cabia esperar que a revolução, num curto espaço temporal, triunfa-se nalgum dos países capitalistas desenvolvidos impelindo o balanço do peso social em favor dos operários na atrasada Rússia, favorecendo ao passo o desembrulhamento dos processos embaraçados no interior da revolução.
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