A propósito da falsificação da História da Revolução de Outubro, da Revolução Proletária e da História do Partido.
Estimados camaradas:
Haveis-me enviado um amplo questionário sobre a minha participação na Revolução de Outubro, pedindo-me para responder às perguntas que me fazeis.
Não creio que poda acrescentar muito mais ao que já foi publicado em vários documentos, discursos, artigos e livros de toda a espécie, particularmente os da minha autoria. Todavia, permito-me perguntar-vos: que sentido pode ter o facto de me interrogardes sobre a minha participação na Revolução de Outubro, se todo o aparelho oficial — com inclusão do vosso — tenta dissimular, fazer desaparecer, ou polo menos adulterar, todos os vestígios desta participação?
Têm-me perguntado assaz vezes dezenas, centenas de camaradas, porque me mantenho em silêncio, porque persisto em me calar em vez de replicar às escandalosas falsificações da história da Revolução de Outubro e da história do nosso Partido, dirigidas contra mim.
De nenhum jeito tenho a intenção de ocupar-me aqui a fundo de todas essas falsificações; para isso seriam necessários vários volumes. Mas, em resposta às vossas perguntas, permitam-me chamar a atenção para uma dezena de exemplos da deformação consciente e rancorosa, à qual se entregam no tempo actual em toda a linha, para apresentar os acontecimentos de ontem, deformação consagrada pola autoridade de toda a espécie de instituições e introduzida mesmamente até nos manuais escolares.
A guerra e a minha chegada a Petrogrado (Maio de 1917)
1. Cheguei a Petrogrado, logo de sair da prisão no Canadá, nos princípios de Maio, dous dias depois da entrada dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários no Governo de coligação.
Os órgãos do Instituto Histórico do Partido, como de resto muitas outras publicações, tentam apresentar a minha acção durante a guerra como uma actividade próxima ao social-patriotismo. Esquecem, na ocorrência, que os meus trabalhos do tempo da guerra («A guerra e a revolução») foram objecto de múltiplas edições durante a vida de Lenine, mesmo foram ensinados nas escolas do Partido e publicadas em diferentes línguas estrangeiras polas secções editoriais da Internacional Comunista.
Tenta-se enganar a nova geração acerca da posição que mantive durante a guerra. Essa geração desconhece que a luita revolucionária internacional contra a guerra me valeu a condenação à prisão na Alemanha, nos fins do 1914, por causa do meu livro em alemão: «A guerra e a Internacional»; a expulsão da França, onde militei com os futuros fundadores do Partido Comunista; a prisão em Espanha, onde estabelecera relações com os futuros comunistas; a expulsão de Espanha para os Estados Unidos. A nova geração também ignora que em Nova Iorque realizei uma acção revolucionária internacionalista, e que participei com os bolcheviques na redacção do jornal «Novii Mir», onde publiquei uma análise leninista das primeiras fases da Revolução de Fevereiro. A ponto de regressar da América à Rússia fui desembarcado polas autoridades britânicas; que passei um mês num campo de concentração do Canadá, com seiscentos ou oitocentos marinheiros alemães que aliciei para Liebeknecht e Lenine (muitos deles participaram depois na guerra civil na Alemanha e dos quais, ainda hoje, continuo a receber cartas).
2. A propósito da informação que deu o Governo inglês sobre as causas da minha detenção no Canadá, o Pravda de Lenine dizia:
«Nota da Redacção: Poder-se-á dar crédito por um só instante à informação recebida polo Governo inglês e segundo o qual Trotski, ANTIGO PRESIDENTE do Conselho dos deputados obreiros de Petrogrado em 1905 e revolucionário desinteressado que consagrou DEZENAS DE ANOS da sua vida à Revolução, teria tido qualquer relação com um plano do «Governo alemão»? É verdadeiramente uma calúnia descarada, inaudita, cínica, dirigida contra um revolucionário!» (Pravda, n.º 34, 16.4.1917)
Que bem soam agora estas palavras, precisamente no momento em que se cobre de infames calúnias a oposição, que não se distinguem em nada das lançadas em 1917 contra os bolcheviques!
3. Nas notas que figuram no XIV volume das Obras de Lenine, publicado em 1921, diz-se:
«desde o começo da guerra imperialista, [Trotski] tomou uma posição nitidamente internacionalista»(Pág. 482)
Poder-se-iam reproduzir numerosas citações deste género e ainda mais categóricas. Os críticos de todos os jornais do Partido — russos e estrangeiros — indicaram dezenas e centenas de vezes, acerca do meu livro «A Guerra e a Revolução», que, examinando toda a minha conduta durante a guerra, era necessário reconhecer e compreender que as minhas divergências com Lenine tinham um carácter secundário, que a linha geral era revolucionária e que ela me aproximava constantemente do bolchevismo, não só em palavras, mas também em actos.
Enquanto aos meus actuais detractores, não me vou dar ao trabalho de aprofundar aqui as suas biografias políticas, sobretudo durante a guerra.
4. Procura-se encontrar tardiamente apoio em certas observações políticas um tanto acerbas, que Lenine me dirigiu, especialmente durante a guerra. Lenine não tolerava nem reticências nem ambigüidades. Tinha razão em voltar duas ou três vezes à carga sempre que o pensamento político lhe parecia incompletamente expresso ou equívoco. Mas uma cousa é um golpe político dado em polémica num determinado momento, e outra é a apreciação global duma postura política.
Em 1918 ou em 1919, certo R... publicou, na América, uma recolhida dos artigos de Lenine e meus escritos durante a guerra, e especialmente os que escrevi sobre a questão controversa dos Estados Unidos da Europa. Qual foi então a atitude de Lenine? Este escreveu isto:
«O camarada americano R... fez muito bem publicando um grosso volume que reúne numerosos artigos de Trotski e meus, dando assim um esboço da história da Revolução russa.»(Vol. XVIII, pg. 96)
5. Não quero falar acerca da atitude da maioria dos meus detractores actuais no começo da Revolução de Fevereiro. Poder-se-iam contar muitas cousas interessantes a este respeito sobre os Skvortsov-Stepanov, os Iaroslavski e muitos outros. Mas limitar-me-ei a dizer algumas palavras sobre o camarada Melnitchanski que, na Imprensa, tentou levantar um falso testemunho sobre a minha atitude em Maio e Junho de 1917.
Na América todos conheciam Melnitchanski como menchevique. Na luita que sustentaram bolcheviques e internacionalistas-revolucionários contra o social-patriotismo e o centrismo, Melnitchanski não tomou nenhuma parte. Manteve-se silencioso em todas as questões deste género. Persistiu nesta atitude mesmo durante o seu internamento no campo de concentração canadiano, onde por mero acaso, como de resto outros, foi encerrado com Chudnovski e comigo. Chudnovski e eu nunca puxemos Melnitchanski ao corrente dos planos que fazíamos, quanto à nossa acção futura. Mas, obrigados a viver lado a lado no mesmo acampamento, decidimo-nos a perguntar-lhe subitamente se, uma vez na Rússia, trabalharia com os mencheviques ou com os bolcheviques. Deve dizer-se, em honra de Melnitchanski, que nos respondeu: «com os bolcheviques». E só depois desta resposta nos decidimos a falar-lhe como um camarada em idéias.
Releia-se o que Melnitchanski escreveu a este respeito em 1924 e 1925. Todos os que conheceram e observaram Melnitchanski na América, não podem agora senão encolher os ombros. Mas para quê falar da América? Basta ouvir qualquer discurso de Melnitchanski para nele reconhecer o funcionário oportunista, mais familiarizado com o «purcellismo» do que com o leninismo.
6. À chegada do nosso grupo a Petrogrado fomos recebidos na estação de Finlândia, em nome do Comitê Central do Partido Bolchevique, por Feodorov, membro do Comitê Central. Abertamente expôs no seu discurso o problema das etapas futuras da Revolução: a ditadura do proletariado e a via socialista do desenvolvimento. Sublinhei o meu completo acordo com esta maneira de formular as tarefas da Revolução. Mais tarde Feodorov explicou-me que a principal parte do seu discurso tinha sido formulada de acordo com Lenine ou, mais exactamente ainda, a pedido de Lenine, que, escusado é dizer, considerava essa questão como a mais decisiva para a possibilidade duma colaboração.
7. Tenho de sinalar que não entrei na organização dos bolcheviques logo após a minha chegada do Canadá. Porquê? Seria porque existiam divergências entre nós? Tenta-se agora inventá-las. Mas os que faziam parte, em 1917, do núcleo central dos bolcheviques sabem que, desde o primeiro dia, não se fez a menor alusão a qualquer das minhas divergências com Lenine.
À minha chegada a Petrogrado, ou melhor, desde que saí do combóio na estação de Finlândia, soube por camaradas, vindos ao meu encontro, que existia em Petrogrado uma organização de internacionalistas-revolucionários (denominada organização «inter-bairros») que retardava a fusão com os bolcheviques. De facto, vários dos dirigentes desta organização faziam depender da minha chegada a resolução desta questão. Uritski, A. Ioffé, Lunatcharski, Iuremiev, Karakám, Vladimirov, Manuilski, Pozerm e Litkens participavam, entre outros, desta organização que englobava cerca de 3.000 operários de Petrogrado.
Nas notas do XIV volume das Obras de Lenine, esta organização é caracterizada da seguinte maneira:
«A respeito da guerra, os membros da «inter-bairros» adoptavam o ponto de vista internacionalista e, pola sua táctica, aproximaram-se dos bolcheviques.»(Pág. 488-489)
Desde os primeiros dias da minha chegada declarei, primeiro a Kamenev e depois à redacção do Pravda, na presença de Lenine, Zinoviev e Kamenev, que estava disposto a entrar imediatamente na organização bolchevique visto não haver qualquer espécie de desacordo, mas que era necessário trazer o mais depressa possível ao Partido a «inter-bairros». Recordo-me que alguém me perguntou como, na minha opinião, se poderia operar a fusão (isto é, tratava-se de saber quem, da «inter-bairros», entraria para a redacção do Pravda, para o Comitê Central, etc.). Respondi que, para mim, esta questão não tinha nenhuma importância política, desde o momento em que não existiam divergências entre nós.
Na «inter-bairros», encontravam-se elementos que retardavam a fusão devido às condições que punham. Como sempre em semelhantes circunstâncias, acumularam-se antigos agravos, certa desconfiança, etc., entre o Comitê do Partido de Petrogrado e a «inter-bairros». Foi isso e só isso que retardou a fusão.
8. O camarada Raskolnikov gastou não pouco papel nestes últimos tempos para opor a minha linha à de Lenine em 1917. Tornar-se-ia demasiado enfadonho transcrever citações, visto que, ao fim e ao cabo, não se distinguem de outras falsificações do mesmo género.
Mas talvez não seja inútil lembrar as palavras que o mesmo Raskolnikov escreveu anteriormente acerca deste período:
«Os ecos das divergências do período de antes da guerra tinham desaparecido completamente. Entre a táctica de Lenine e de Trotski não existia diferença. Esta aproximação, já esboçada durante a guerra, concretizou-se muito nitidamente desde o regresso de Leão Davidovitch (Trotski) à Rússia. Após os seus primeiros discursos, todos nós, velhos leninistas, tínhamos sentido que ele era dos nossos.» («Nas prisões de Kerenski», «Proletarskaia Revoliutsia» nº 10-22, 1923, pág. 150-152)
Estas palavras não foram escritas para demonstrar nem desmentir o que quer que seja, mas para simplesmente contar como as cousas se passaram. Posteriormente, Raskolnikov mostrou que também sabe contar o que nunca aconteceu. Quando da reedição dos seus artigos, publicados pola Secção Histórica do Partido, Raskolnikov omitiu cuidadosamente a relação do que se tinha realmente passado, substituindo-a por outra inteiramente imaginária.
Talvez não devesse deter-me no caso do camarada Raskolnikov, mas o exemplo é escandaloso por demais.
Na crítica do terceiro volume das minhas obras («Krassnaïa Nov.», nº 7/8, 1924, págs. 395-401) Raskolnikov pergunta:
«Qual era, em 1917, a posição pessoal do camarada Trotski?»
E responde:
«Trotski considerava-se ainda como membro do mesmo Partido que os mencheviques Tseretelli e Skovelev.»
E mais adiante:
«O camarada Trotski não tinha ainda fixado a sua atitude a respeito do bolchevismo e do menchevismo. Daquela, Trotski ocupava uma posição vacilante, incerta, intermédia.»
Perguntaram-se, o mais seguro, como se pode conciliar essas declarações, impudentes de todo, com os escritos do mesmo Raskolnikov atrás reproduzidos: «os ecos das divergências do período de antes da guerra tinham desaparecido completamente». Se Trotski não tinha fixado a sua atitude em relação aos bolcheviques e aos mencheviques, como pode suceder que «todos nós, velhos leninistas, tínhamos sentido que ele era dos nossos?».
E isto não é tudo. Num artigo do próprio Raskolnikov, publicado em 1923, na revista «Proletarskaia Revoliutsia», n.º 5, págs. 71-72, sob o título: «As jornadas de Julho», diz-se:
«Leão Davidovitch (Trotski) ainda não pertencia formalmente ao nosso Partido, mas na realidade, desde o seu regresso da América, trabalhou constantemente no seu seio. Em todo o caso, depois do seu primeiro discurso no Soviete, todos o encarávamos como um dos chefes do nosso Partido.»
Parece que isto é suficientemente claro e que é difícil tirar daqui outra interpretação. Mas, que fazer? Cada dia a sua pena. E que pena! Um ódio sistematicamente organizado, apoiado em ordens e circulares.
Para que a conduta de Raskolnikov — que de resto caracteriza não a própria pessoa, mas todo um sistema de direcção e de educação — se nos revele em toda a sua beleza, necessito fazer uma citação mais completa do seu artigo: «Nas prisões de Kerenski». Eis o que ali é dito:
«Trotski tinha um imenso respeito por Vladimir Ilitch. Colocava-o mais alto do que a todos os contemporâneos que lhe tinha sido dado conhecer na Rússia e no estrangeiro. Na forma como Trotski falava de Lenine, sentia-se o carinho do discípulo. Nessa altura, Lenine contava trinta anos de acção militante ao serviço do proletariado, e Trotski vinte anos. Os vestígios das divergências do período de antes da guerra tinham desaparecido completamente. Entre a táctica de Lenine e a de Trotski não havia qualquer diferença.
Esta aproximação, já esboçada durante a guerra, tinha-se concretizado nitidamente desde o regresso de Leão Davidovitch à Rússia. Desde os seus primeiros discursos, todos nós, velhos leninistas, tínhamos sentido que ele era dos nossos.»
Escusado será dizer que o testemunho de Raskolnikov sobre a atitude de Trotski para com Lenine não impede de modo algum inventar «uma carta de Trotski a Tchkeidzé» para a documentação dos jovens membros do Partido.
Devo acrescentar que, por causa do seu trabalho, Raskolnikov viu-me freqüentemente durante o ano de 1917, conduziu-me a Kronstadt, pediu-me várias vezes conselho e teve freqüentes conversas comigo no cárcere e fora dele. As suas memórias são, a este respeito, um precioso testemunho, enquanto que as suas correcções «ulteriores» não passam do produto dum trabalho de falsificação, executado por encomenda.
Antes de deixarmos Raskolnikov, vejamos como descreve nas suas memórias, a leitura de requisitório do juiz Ermolenko a respeito do ouro alemão:
«Durante a leitura do requisitório, lançávamos nós de quando em vez observações irónicas; mas, quando a voz impassível do juiz de instrução chegou ao nome, querido entre todos, do camarada Lenine, Trotski não pôde conter-se: deu uma punhada na mesa, ergueu-se e indignado declarou que se recusava a escuitar tão cobardes e falsas alegações. Não podendo conter a nossa indignação perante uma tão evidente falsificação, todos nós, sem excepção, apoiamos calorosamente o camarada Trotski.»
É um sentimento muito natural a revolta «perante falsificação tão evidente». Mas, resulta e abunda bem, sem deixar de desprezar as pequenas falsificações do próprio Raskolnikov, (também bastante evidentes) que se deve inquirir: «Qual é a atitude de Raskolnikov do hoje, que passou pola escola estalinista, a respeito da recente invenção de Ermolenko sobre o oficial de Wrangel e a maquinação contra-revolucionária?»
Maio – Outubro de 1917
9. Durante os meses de Maio, Junho e Julho de 1917 vários documentos dos bolcheviques foram escritos por mim ou sob a minha direcção, e com especificação a declaração da fracção bolchevique ao Congresso dos Sovietes sobre a ofensiva militar em preparação (1.º Congresso dos Sovietes), a carta do Comitê Central do Partido Bolchevique ao Comitê Central Executivo durante as jornadas de Julho, etc. Reencontrei várias resoluções bolcheviques de então, das quais são autor ou que participei na sua redacção. Todos os camaradas sabem que nos discursos que pronunciei em todos os meetings constantemente me identifiquei com os bolcheviques.
10. Um qualquer dos «historiadores Marxistas» novo estilo recentemente se esforçou por descobrir divergências entre Lenine e eu a respeito das jornadas de Julho. Cada um se esforça por contribuir com o seu óbolo para que lhes seja restituído multiplicado! É necessário vencer-se a repugnância para desmentir tais falsificações! Deixarei de parte as lembranças, para limitar-me a apelar aos documentos. Numa declaração dirigida ao Governo provisório, escrevi:
«1.º — Compartilho da posição de princípio de Lenine, Zinoviev e Kamenev que desenvolvi no Vperiod e, duma maneira geral, em todos os meus discursos públicos.
2.º — O facto de eu não colaborar no Pravda e de não me aderir à organização bolchevique, justifica-se não pola existência de divergências políticas, mas pola nossa actividade política passada, que hoje já perdeu toda a importância». Trotski, «Obras Completas», vol. III, 1.ª parte, pp. 165-166)
11. Após as jornadas de Julho, a presidência socialista-revolucionária-menchevique do Comitê Central Executivo convocou uma sessão deste último. Convidou-me a fracção bolchevique da sessão como relator sobre a situação actual e as tarefas do Partido. Isto aconteceu antes da unificação formal e apesar de designadamente se encontrar em Petrogrado Estaline. Os «historiadores Marxistas» da nova escola não existiam ainda, e os bolcheviques que ali se tinham reunido unanimemente aprovaram as idéias essenciais do meu relatório acerca das jornadas de Julho e das tarefas do Partido. Vestígios disso acham-se na Imprensa e, especialmente, nas memórias de N. I. Muralov.
12. Sabe-se que Lenine não pecava por excesso de confiança nos indivíduos, quando se tratava das posturas ideológicas ou da atitude política a observar em condições difíceis, e que estava muito longe, em particular, de ser benévolo com os revolucionários que anteriormente se encontravam fora do Partido Bolchevique. Precisamente foram as jornadas de Julho que destruíram os últimos vestígios das antigas barreiras. Na sua carta ao Comitê Central acerca da lista dos candidatos bolcheviques à Assembléia Constituinte, Vladimir Ilitch escrevia:
«É totalmente inadmissível que haja um número tao grande de candidatos escolhidos entre pessoas pouco experimentados e que aderiram recentemente ao nosso Partido (J. Larim, por exemplo)... É preciso rever urgentemente a lista e rectificá-la...
É claro que... ninguém pensaria em discutir uma candidatura como a de L. D. Trotski, por exemplo, visto que: 1.º — desde a sua chegada, Trotski tem demonstrado uma posição internacionalista; 2.º — combateu entre os membros da «inter-bairros» a favor da fusão; 3.º — durante as graves jornadas de Julho mostrou-se à altura da sua tarefa e devotado partidário do Partido do proletariado revolucionário. Claro que não se pode dizer o mesmo duma quantidade de recentes membros do Partido que figuram na lista...» — (O primeiro Comitê bolchevique legal de Petrogrado em 1917, Secção Histórica do Partido, Leninegrado, pp. 305-306)
13. A questão da nossa atitude em relação ao pré-Parlamento foi discutida na ausência de Lenine. Eu tomei a palavra na qualidade de relator dos bolcheviques partidários do boicote. Como se sabe, a maioria da fracção bolchevique da Assembléia democrática de Moscovo pronunciou-se contra o boicote. Lenine apoiou decididamente a minoria. Eis o que escreveu ao Comitê Central a este respeito:
«É necessário boicotar o pré-Parlamento. É indispensável entrar para o Soviete dos deputados operários, soldados e camponeses, entrar nos Sindicatos e, enfim, ir até as massas. É preciso chamá-las à luita. É preciso dar-lhes uma palavra de ordem clara e justa, expulsar o bando bonapartista de Kerenski, com o seu pretenso pré-Parlamento, desta Duma Tsereteli—Buliguinski. Mesmo depois do caso Kornilov, os mencheviques e os socialistas-revolucionários não aceitaram o nosso compromisso de entregar pacificamente o poder aos Sovietes (nos quais ainda não tínhamos a maioria); preferiam cair de novo no lameiral das vergonhosas e vis combinações com os cadetes. Abaixo os mencheviques e os socialistas-revolucionários! Combatamo-los implacavelmente! Expulsêmo-los impiedosamente de todas as organizações revolucionárias! Não às conversações, não às relações com esses amigos de “Kichkine”, dos grandes latifundiários kornilovistas e dos capitalistas!Sábado, 23 de Setembro.
Trotski declarou-se pola boicotagem. Bravo, camarada Trotski! O boicote foi vencido na fracção bolchevique que assistiu à Assembléia Democrática.
Viva a boicotagem!» (Proletarskaia Revoliutsia, n.º 3, 1924)
14. A respeito da minha participação na Revolução de Outubro, Lenine diz no volume XIV das suas Obras:
«Quando o Soviete de Petrogrado passou para as mãos dos bolcheviques, [Trotski] foi eleito seu presidente e, como tal, organizou e dirigiu a insurreição de 25 de Outubro.» (Pg. 482.)
Que a Secção Histórica do Partido — se não a actual, a Secção futura — desenguedelhe o que há de verdadeiro ou de falso no apreçamento de Lenine. O que eu podo dizer, em todo o caso, é que o camarada Estaline, nos últimos anos, negou categoricamente a exatidão desta asserção. Eis as suas declarações:
«Devo dizer que o camarada Trotski não desempenhou nem pôde desempenhar nenhum papel particular na insurreição de Outubro; que, na qualidade de presidente do Soviete de Petrogrado, limitava-se a executar a vontade das instâncias autorizadas do Partido, que dirigiram todos os passos do camarada Trotski.»(1*)
E mais adiante:
«O camarada Trotski, homem relativamente novo para o nosso Partido no período de Outubro, não desempenhou nem pudo desempenhar, durante o período de Outubro, nenhum papel particular, quer no Partido quer na insurreição de Outubro.»(2*)(Estaline: «A propósito do trotskismo. Trotskismo ou Leninismo», pp. 68-69.)
É bem certo que com este testemunho, Estaline esquecia o que ele próprio dizia o 6 de Novembro de 1918, isto é, por ocasião do primeiro aniversário da Revolução, quando os factos e os acontecimentos ainda estavam frescos na memória de todos. Já nessa altura, Estaline realizava ao meu respeito a obra que agora desenvolveu em tão grande escala. Mas, daquela, era obrigado a actuar com muita mais prudência e dissimulação. Eis o que escrevia no Pravda (n.º 241) sob o título: «O papel dos mais destacados militantes do Partido»:
«Todo o trabalho de organização prática da insurreição efectuou-se sob a direcção imediata de Trotski, presidente do Soviete de Petrogrado. Pode-se dizer com segurança que a rápida adesão da guarnição do Soviete e a hábil organização do trabalho do Comitê Militar Revolucionário deve-as o Partido, antes de tudo e, sobretudo, ao camarada Trotski».
Estas palavras, que daquela não foram sem dúvida escritas como elogios exagerados — polo contrário, o propósito de Estaline era muito diferente: queria, com o seu artigo, «prevenir» que se exagerasse o papel de Trotski (para isso é que o artigo foi escrito!), mas não vale a pena determos nisso — parecem hoje absolutamente incríveis, sobretudo escritas por Estaline. Mas não era então possível adoptar outra linguagem. Há muito tempo alguém dixo que um homem sincero tem o mérito de nunca se contradizer, mesmo que a sua memória o atraiçoe, enquanto que um homem desleal, falso e sem escrúpulos deve lembrar sempre o que dissera no passado para não se cobrir de vergonha.
15. Com a ajuda dos Iaroslavski, o camarada Estaline esforça-se por elaborar uma nova história sobre da organização da insurreição de Outubro, apoiando-se na criação, junto do Comitê Central, «dum centro prático para a organização e a direcção da insurreição», do qual Trotski não fazia parte. Ora, também não fazia parte Lenine dessa Comissão. Por isso só, este facto mostra que a Comissão não podia ter senão uma importância secundária de organização. Não desempenhou nenhum papel independente. Forja-se actualmente a lenda desta Comissão unicamente porque Estaline foi membro dela. Compunha-a «Esverdlov, Estaline, Dzerjinski, Bubnov, Uritski.» Qualquer que seja a repugnância que se sinta ao remexer as imundícies, como actor relativamente próximo e testemunha dos acontecimentos do período, seja-me permitido dar o seguinte detalhe:
É evidente que o papel de Lenine não precisa ser aclarado. Nessa altura eu via freqüentemente a Esverdlov, a quem pedia conselho e colaboradores. O camarada Kamenev que, como se sabe, ocupava então uma posição especial — posição cuja falsidade ele próprio reconhecera há já muito tempo — tomou, no entanto, uma parte das mais activas nos acontecimentos da Revolução. A noite decisiva do 25 para o 26 de Outubro, passámo-la juntos, no local do Comitê Militar Revolucionário, respondendo aos pedidos telefónicos e dando ordens. Mas, apesar de todos os esforços da minha memória, é-me de todo impossível lembrar em que consistia o papel de Estaline durante esta jornada decisiva. Não me dirigi a ele uma só vez, quer para um conselho quer para lhe pedir apoio. Não manifestou nenhuma iniciativa nem formulou a menor proposta pessoal. E a este respeito nenhum «historiador Marxista» da nova fornada poderá faltar à verdade.
Aditamento necessário
No decorrer dos últimos anos, Estaline e Iaroslavski fizeram penosos esforços para demonstrar que o «centro prático para a organização e direcção da insurreição», criado polo Comitê Central e composto por Esverdlov, Estaline, Bubnov, Uritski e Dzerjinski, realmente dirigiu a insurreição. Estaline sublinha o facto de que Trotski não era membro do mesmo. Mas, ai! eis que, graças a uma evidente negligência dos historiadores estalinistas, encontramos no Pravda de 2 de Novembro de 1927 (isto é, depois de escrita a presente carta) num extracto das actas do Comitê Central de 16 a 19 de Outubro de 1927, o seguinte:
«O Comitê Central organiza um centro militar revolucionário composto polos camaradas Esverdlov, Estaline, Bubnov, Uritski e Dzerjinski. ESTE CENTRO FAZ PARTE INTEGRANTE DO COMITÊ REVOLUCIONÁRIO DOS SOVIETES.»
O Comitê Revolucionário dos Sovietes é precisamente o Comitê Militar Revolucionário. Para a direcção da insurreição não existia outro órgão soviético. Por conseguinte, esses cinco camaradas designados polo Comitê Central deviam completar o Comitê Militar Revolucionário, cujo presidente era Trotski. É evidente demais que não era mester designar Trotski, pola segunda vez, visto que ele já era o presidente desta organização. Como é difícil corrigir a história tardiamente! (11 de Novembro de 1927.)
A História da Revolução de Outubro
Em Brest-Litovsk escrevi um folheto sobre a Revolução de Outubro. Deste livro fizeram-se numerosas edições em diversos idiomas. Ninguém nunca me dixo que tenha omitido dados importantes, nem que não tenha referido em parte alguma ao órgão dirigente principal da insurreição: o «Centro Militar Revolucionário», de que eram membros Estaline e Bubnov. Se eu tão mal conhecia a história da Revolução de Outubro, porque foi que ninguém me advertiu desse erro? Porquê, então, nos primeiros anos da Revolução foi impunemente utilizado o meu livro como manual em todas as escolas do Partido?
Mas há mais ainda. Em 1922, o Buró de Organização do Comitê Central considerava que a história da Revolução de Outubro era-me conhecida de abundo. Eis disso uma confirmação muito breve, mas eloqüente:
«Num. 14.302Moscovo, 24 de Maio de 1922Ao camarada Trotski:
Vimos comunicar-lhe, gostosamente, o seguinte extracto da acta da sessão do Buró de Organização do Comitê Central de 22 de Maio de 1922, n.º 21:
Fica encarregado o camarada Iakovlev da redacção, para o 1.º de Outubro, sob a direcção do camarada Trotski, dum manual da história da Revolução de Outubro.
O secretário (secção de propaganda)(Assinatura)».
Esta carta é de Maio de 1922. O meu livro sobre a Revolução de Outubro, e o que respeita à de 1905, publicados antes desta data em várias edições, deviam ser muito bem conhecidos do Buró de Organização, já então presidido por Estaline. Contudo, o Buró de Organização julgava necessário encarregar-me da edição dum manual sobre a Revolução de Outubro. Porquê? Como justificar isto? Visivelmente porque os olhos de Estaline e dos estalinistas não se abriram para o «trotskismo» senão depois de se fecharem para sempre os olhos de Lenine.
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